quarta-feira, 30 de novembro de 2022

A IMPORTÂNCIA DA EDUCAÇÃO DO PENSAMENTO PARA UM TRABALHO MEDIÚNICO PROFÍCUO[1]

 


Carlos Gomes – Núcleo Espírita Fraternidade e Amor – NEFA, Itajubá, MG - 24/05/2017

 

— RESUMO —

Este artigo tem por objetivo apresentar algumas pesquisas em relação ao pensamento, de acordo com a ciência e o espiritismo. A escolha do tema justifica-se pela dificuldade de alguns grupos mediúnicos em realizar um trabalho de qualidade. Assim, tendo em vista que a comunicação mediúnica se dá via pensamento, pensou-se em discutir o assunto. Para esse propósito foi utilizado como metodologia a revisão bibliográfica, selecionando alguns autores que pesquisam o assunto como Miguel Nicolelis, José e Maria de Lourdes Andreeta, Mauro Maldonato, Hermínio Miranda, Suely Caldas Schubert, dentre outros. Autores espíritas e não espíritas. Ao se realizar a leitura de forma qualitativa constata-se que ainda há muitas dúvidas sobre a formação do pensamento e sua transmissão. No entanto, alguns pontos em comum podem ser observados, como o fato de o pensamento ser emitido em forma de ondas e vibrações e, ainda, ser capaz de sintonizar-se com outras ondas. Esse fato leva à conclusão de que, para um trabalho mediúnico profícuo cabe ao médium procurar melhorar sua faixa vibratória, lendo sempre livros doutrinários, observando as suas faculdades e se auto corrigindo. Deve recolher-se na oração e preocupar-se com o seu aperfeiçoamento e abnegação, com a cultura e o desinteresse, para que sejam mais sutilizados os pensamentos e aguçando as percepções mediúnicas.

 

Palavras-chave: pensamento, mediunidade, espiritismo.

 

INTRODUÇÃO

O século atual tem sido considerado o século da comunicação ou da informação. Nunca se falou com tanta gente, de tão variadas regiões e em tão pouco espaço de tempo. A tecnologia vem pesquisando formas cada vez mais avançadas de facilitar o processo de comunicação. De acordo com Hoyos Guevara (2007) em uma sociedade cada vez mais digitalizada, parece que alimentar o cérebro de informação passa a ser tão natural como alimentar o físico para desempenhar as funções fisiológicas.

No entanto, há uma forma de comunicação tão antiga quanto o próprio homem e que necessita ser investigada e compreendida, a comunicação via pensamento. Com toda essa tecnologia apresentada o homem ainda não compreende como se forma o pensamento, nem tampouco que a comunicação mental seja possível. Faltam à ciência, instrumentos para averiguar esse processo.

Sob o ponto de vista espiritual, o Espiritismo, codificado por Allan Kardec há 160 anos vem apresentar elementos científicos que contribuem para essa questão. Hoje já existem vários pesquisadores nessa área, com a edição de vários livros sobre o assunto.

O neurocientista Miguel Nicolelis é um dos pesquisadores nessa área e revelou que ainda não se conseguiu chegar a uma abrangente teoria do pensar. Ainda se atribui ao neurônio, como célula do sistema nervoso, a responsabilidade sobre o processamento de sinais de comunicação em todo o sistema, mas não consegue, por si só, emitir sequer um pensamento ou mesmo gerar um comportamento.

Para a ciência materialista, reducionista e cartesiana, as conexões neurais (sinapses) seriam as responsáveis pela formação do pensamento. Entretanto, em livros didáticos de fisiologia médica, autores como Arthur Guyton e outros, admitem não ser possível ainda conhecer os mecanismos neurais do pensamento e da memória.

Pesquisadores espíritas como Hermínio Miranda, não acreditam que o pensamento seja gerado no cérebro e pelo cérebro. Para ele o pensamento apenas percorre os circuitos cerebrais, como um reflexo, não como origem.

Diante da presente discussão e sabendo-se que uma reunião mediúnica acontece utilizando-se tão somente dos pensamentos dos médiuns em conexão com os pensamentos dos Espíritos comunicantes, pensou-se em discutir essa questão no presente artigo, mesmo porque, alguns dirigentes de trabalhos mediúnicos relatam certa dificuldade em relação à equipe de trabalhadores que, em geral, não tem correspondido ao que se espera de um trabalho mediúnico de qualidade.

Estabelece-se assim a seguinte questão:

A partir do estudo do pensamento, como utilizá-lo de forma eficaz, mormente para um trabalho mediúnico?

A metodologia utilizada foi a revisão bibliográfica, em livros que abordam pesquisas da ciência tradicional e da ciência espírita com autores como Miguel Nicolelis, Fritijof Capra, Mauro Maldonato, Núbor Facure, Hermínio Miranda, Allan Kardec, dentre outros.

O objetivo do trabalho é apresentar a formação do pensamento no indivíduo, sob a perspectiva científica e espiritual, bem como a forma de qualificá-lo para que se torne uma boa via de conexão com outros pensamentos, tornando o trabalho mediúnico mais profícuo.

Procurou-se dividir o artigo nos seguintes itens: o pensamento, segundo a ciência, trazendo alguns conceitos científicos; recentes pesquisas científicas, incluindo a questão quântica; a visão espírita do pensamento, segundo alguns pesquisadores; a importância do pensamento em um trabalho mediúnico; finalizando com a função do médium na qualificação dos pensamentos, as considerações finais e referências bibliográficas.

 

 O Pensamento segundo a Ciência

“Penso, logo existo”, disse Descartes em seu livro “Discurso do Método”, publicado em 1637, dando início ao racionalismo científico que tem, desde então, influenciado gerações e gerações no mundo ocidental, colocando a razão humana como única forma de existência. Uma visão reducionista que, por mais pesquisa se realize, ainda não consegue dar todas as respostas aos fenômenos da natureza, mormente no que se refere à vida.

Segundo Nicolelis (2011), os avanços científicos e clínicos obtidos durante o século passado, aplicando a visão reducionista, não conseguiram atingir o mais cobiçado de todos os objetivos da neurociência: uma abrangente teoria do pensar. Para ele, enquanto o neurônio individual constitui a unidade anatômica como elemento básico de processamento de sinais do sistema nervoso, ele não é capaz, por si só, de gerar nenhum comportamento e, em última análise, nem sequer um pensamento.

 Para Andreeta (2010), mesmo dispondo de técnicas e aparelhagens sofisticadas, os cientistas ainda não conseguiram desvendar satisfatoriamente a questão do relacionamento entre o cérebro e a mente.

Toda essa discussão tem origem em 1810 quando Gall publica sua “Anatomia e Fisiologia do Sistema Nervoso em geral e do Cérebro em especial”. Nesse momento surge, efetivamente, a ciência do cérebro. Ele atribui assim ao encéfalo, mais particularmente aos hemisférios cerebrais, a sede de todas as faculdades intelectuais e morais.

Ainda hoje a discussão dos neurocientistas gira em torno dos neurônios como a base para o pensamento. Chegam a afirmar que a unidade neural do pensamento são os neurônios, e o conjunto de neurônios ou a rede neural são os responsáveis por influenciar os comportamentos e por produzir processos cognitivos, como raciocínio, abstração, memória, atenção, entre outras funções. Assim, as conexões neurais (sinapses) seriam as responsáveis pela formação do pensamento.

Dessa forma, o córtex cerebral (a porção mais superficial do cérebro, conhecida também como substância cinzenta) desempenharia os papeis principais do pensamento, pois é ali que eles seriam elaborados e se tornariam conscientes.

Os livros acadêmicos que se utilizam da pesquisa científica moderna, apresentam dificuldade em discutir o fenômeno da consciência, dos pensamentos e da aprendizagem, porque, ainda não é possível conhecer os mecanismos neurais do pensamento e da memória (Guyton & Hall, 2002).

Como ciência de investigação objetiva, as evidências encontradas apontam que a destruição de grandes porções do córtex cerebral não impede a pessoa de ter pensamentos, mas reduz a profundidade dos pensamentos e, também, o grau de percepção do ambiente.

Segundo esses autores, o pensamento é a consequência de um ‘padrão’ de estimulação de muitas partes do sistema nervoso ao mesmo tempo e com uma sequência definida, provavelmente envolvendo de modo mais importante o córtex, o tálamo, o sistema límbico e a formação reticular superior do tronco encefálico. Essa é a chamada teoria holística do pensamento.

Para Maldonato (2006), os conhecimentos atuais não têm condições de explicar a mente em termos de leis físicas; nem em seu conjunto, nem em seus processos isoladamente. Para esse autor existe um afastamento profundo entre o conhecimento do mundo físico e os próprios limites da mente. Sendo assim, o tipo de explicação apresentada pelas ciências físicas não pode ser aplicado aos eventos mentais.

Jonhson (1994), por sua vez, aponta que o cérebro tem sido comparado a um computador. Cada neurônio recebe impulsos elétricos através dos dendritos, cujas milhares de ramificações minúsculas levam sinais para dentro do corpo da célula. Se os sinais excitatórios excederem os inibitórios, o neurônio é estimulado, enviando seu próprio impulso através do prolongamento chamado axônio. Este alimenta, através de junções chamadas sinapses, os dendritos de outras células. Um simples neurônio pode receber sinais de milhares de outros neurônios; seu axônio pode se ramificar repetidamente, enviando sinais para mais outros milhares.

Segundo esse autor, o que se sabe é que o cérebro quando exposto a um novo acontecimento, um único padrão de neurônio é ativado de algum modo. Dentro da vasta rede de células do cérebro, uma constelação é estimulada. Considerada sua unidade anatomofisiológica, estima-se que no cérebro humano exista aproximadamente 15 bilhões destas células, responsáveis por todas as funções do sistema através de trilhões de sinapses.

Facure (2001) explica que o fluxo do pensamento é contínuo, produzindo ideias e imagens que atingem a consciência numa profusão como ondas de maior ou menor intensidade. Certos estados emocionais aumentam significativamente o fluxo do pensamento. A meditação ou a simples reflexão aquieta a mente e o pensamento parece flutuar lentamente.

Miranda (2010) não acredita que o pensamento seja gerado no cérebro e pelo cérebro. Para ele o pensamento apenas percorre seus circuitos a velocidade ultra luminosas, praticamente instantâneas. Ele afirma que o cérebro não trabalha com substâncias materiais e sim com impulsos de energia, embora possa comandar a produção de substâncias em diferentes partes do organismo.

No entanto, embora as pesquisas realizadas pela ciência caminhem no sentido de relacionar o pensamento ao funcionamento dos neurônios, no cérebro, não há ainda evidências suficientes para se comprovar que essa seja a sua origem. Talvez essa dificuldade esteja no fato apontado por Boaventura de Souza Santos (2006) de que ainda nos alimentamos do modelo racional dominante da ciência moderna desde a revolução científica do século XVI.

 Para esse autor aquilo que não é quantificável não é relevante para a ciência. Conhecer significa, então, dividir e classificar para depois determinar relações sistemáticas entre o que se separou. Esse modelo é também totalitário, na medida em que nega o caráter racional a todas as formas de conhecimento que se não pautarem pelos seus princípios epistemológicos e pelas suas regras metodológicas.

 

O que há de novo na Ciência

Para os conhecimentos antigos (Andreeta, 2010) a consciência é uma energia em vibração. A consciência seria, assim, um instrumento da manifestação de uma Consciência Maior. Fisicamente o autor conceitua consciência como um conjunto de valores e conhecimentos que se expressam através de campos de energias organizadas. Assim sendo, o conceito ensinado pelos antigos e demonstrado atualmente pela Física Quântica é de que a Consciência Cósmica se manifesta no mundo físico através dos seres humanos, através da vontade consciente de um observador.

A partir do advento da Física Quântica e da explicação de que o mundo é quântico Andreeta (2010) conclui que a consciência humana passou a ser mais importante do que a matéria, propriamente dita. Para essa ciência a mente parece ser a origem de tudo que está manifestado.

A Física Quântica surge a partir dos resultados experimentais obtidos no início do século XX que mostravam que a luz possuía um estranho comportamento quando incidia sobre a matéria. Nesses experimentos a luz parecia se comportar como um feixe de partículas, não como uma onda como previam os conhecimentos tradicionais.

Andreeta (2010) explica que a luz se movimenta de um lado a outro em forma de onda, mas, quando interage com a matéria, apresenta sua face corpuscular. Assim, é preciso admitir que elementos de dimensões mais sutis possam interferir nos fenômenos físicos. O planeta está constantemente sendo bombardeado por pacotes de energia, os quanta, e que são trocados constantemente uns com os outros, com tamanhos e frequências diferentes.

O mundo, de acordo com as novas descobertas, é formado, em sua essência, por ondas. É preciso voltar os olhares para esse novo mundo e para novas formas de pensar desde então. O mundo passa a ser classificado como quântico.

 Outra descoberta importante citada pelo autor é que “todos os corpos materiais possuem as suas frequências próprias de vibração e entram em ressonância com uma onda externa quando essa possui a mesma frequência. Todos os corpos, portanto, emitem e recebem a mesma frequência de vibração.” (ibid., p. 110).

Zohar (2004) acredita que a consciência humana desempenha um papel criativo na formação da realidade física. Ela também afirma que a teoria quântica deverá finalmente contribuir para uma nova visão de mundo, com suas próprias e distintas dimensões epistemológicas, morais e espirituais.

Para a autora, a visão de mundo cartesiana foi necessária ao cultivo da física de Newton e a todo progresso tecnológico que seguiu em sua esteira, mas numa cultura pós-cristã ela é filosófica e espiritualmente estéril.

Quanto à consciência, Zohar (2004) reforça que aqueles que estão procurando uma sede fixa para ela presumem que sua fonte deve estar na capacidade funcional do cérebro em si. Havendo, então, um vínculo necessário entre os estados físicos do cérebro e a consciência ou os estados mentais, embora a natureza exata dessa ligação ainda seja um dos grandes mistérios tanto da ciência, quanto da filosofia.

Supõe a autora que haja um elo vital entre o processo do pensamento e o processo quântico, entre nós e os elétrons. Para ela a dualidade mente-corpo (mente-cérebro) no homem é um reflexo da dualidade onda-partícula, que é subjacente a tudo que existe. Assim, o ser humano seria um minúsculo microcosmo do ser cósmico.

Capra (2003) anuncia que está surgindo uma concepção unificada da vida, da mente e da consciência. Para ele a consciência humana encontra-se inextricavelmente ligada ao mundo social da cultura e dos relacionamentos interpessoais.

O autor afirma ainda que nos últimos anos, o estudo da mente a partir da perspectiva sistêmica floresceu e se tornou um grande campo interdisciplinar de estudos, chamados de ciência da cognição, que transcende as estruturas tradicionais da biologia, da psicologia e da epistemologia. Com os resultados desses estudos, a nova concepção sobre cognição envolveria todo o processo da vida, incluindo a percepção, as emoções e o comportamento.

O que há em comum entre as pesquisas apresentadas é que a mente, o pensamento, seria transmitido através de ondas, que se associam com outras ondas mentais, as quais se encontram em sintonia vibratória. Embora sua origem ainda necessite de mais pesquisas, os seus efeitos já podem ser comprovados.

 

 O que diz o Espiritismo

Denis (2012) ressalta que o pensamento se exterioriza por radiações em harmonia com a sua própria natureza. Que adquirem maior potência e brilho à medida que essas radiações são mais elevadas.

Ele destaca também que quando um Espírito deseja se comunicar com um encarnado, ele aciona, por suas forças intuitivas, o aparelho vibratório que nele existe. Havendo equilíbrio nos fenômenos a comunhão dos pensamentos será realizada. O pensamento do Espírito, antes de penetrar o cérebro do médium, contorna-o, e, somente quando encontra um ponto vulnerável, é que faz vibrar suas células.

Para Franco (2015) o pensamento não procede do cérebro, sua função é a de registrá-lo e externá-lo. O pensamento é a exteriorização da mente, que independe da matéria e se origina no Espírito. O Espírito expressa o pensamento em todas as direções e utiliza-se do cérebro para comunicar suas ideias com as outras pessoas.

Cerqueira Filho (2010) diz que o pensamento é a estrutura profunda, originado na mente do Espírito, decodificado de uma forma superficial, por meio verbal, que é a mensagem, as palavras usadas para decodificar o pensamento. A energia mental é um atributo do Espírito que, no entanto, necessita do cérebro para se manifestar.

Schubert (2010) explica que, quando se pensa são emitidas vibrações que traduzem os desejos daquele que pensa, tendências e impulsos, vibrações que entram em sintonia com outros que se encontram na mesma faixa. Porque os seres humanos encontram-se imersos num imenso oceano de pensamentos e vibrações, ao qual dá-se nome de psicosfera do planeta.

No livro “Entre a Terra e o Céu” (FEB, 2015) há uma explicação espiritual de que o corpo do Espírito é constituído de matéria rarefeita, sendo regido pelos centros de força que, vibrando em sintonia uns com os outros, com o influxo da mente, criam um campo eletromagnético, no qual o pensamento vibra em um circuito fechado. Assim sendo, cada ser vibra em determinada onda, e, dependendo da mente, maior ou menor será o influxo vibratório do pensamento. Esse influxo está sempre de acordo com as experiências adquiridas e arquivadas no Espírito.

Pires (1995) conceitua mente como um centro espiritual de controle e comunicação, que se manifesta através do cérebro. As ideias e sentimentos são permutadas com pessoas que vivem juntas e com espíritos afins. Ele cita a descoberta da antimatéria e dos universos paralelos, que reforçam essa ideia dizendo que o mundo material e o antimaterial se interpenetram.

Em se tratando de comunicação mediúnica o autor afirma que as vibrações psíquicas do Espírito, irradiadas do seu corpo energético, atingem o corpo energético (períspirito) do médium, estabelecendo-se a empatia entre ambos. Essa indução acontece de forma tão intensa que os pensamentos e as emoções do Espírito refletem-se no comportamento mediúnico.

 

A importância do Pensamento em um Trabalho Mediúnico

Em O Livro dos Espíritos, capítulo IX, de acordo com as informações recebidas, Kardec afirma que os Espíritos influem em nossos pensamentos, de tal forma que há situações em que são eles que nos dirigem. Essa afirmação foi obtida dos próprios Espíritos:

Vossa alma é um Espírito que pensa; não ignorais que muitos pensamentos vos ocorrem, a um só tempo, sobre o mesmo assunto, e frequentemente bastante contraditórios. Pois bem; nesse conjunto há sempre os vossos e os nossos, e é isso o que vos deixa na incerteza, porque tendes em vós duas ideias que se combatem. (KARDEC, 2001).

Kardec (1992) faz uma analogia entre as ondas e raios sonoros existentes no ar, com as ondas e raios de pensamento existentes na substância etérea ou nos fluidos, no qual todo o universo encontra-se imerso. Sendo assim, o pensamento seria capaz de criar imagens fluídicas, que se refletem no envoltório do Espírito, como num vidro. Por isso um Espírito pode “ler” o que o outro está pensando, e ver o que não é perceptível aos olhos do corpo.

Ainda segundo esse autor, os fluidos são influenciados pelo pensamento, podendo estar impregnados de qualidades boas ou más, de acordo com a vibração, pureza ou impureza dos sentimentos. Os fluidos que cercam os maus Espíritos são viciados, enquanto que aqueles que recebem a influência dos bons Espíritos são puros.

O pensamento do Espírito encarnado age sobre os fluidos espirituais como o dos Espíritos desencarnados; ele se transmite de Espírito a Espírito pela mesma via, e, segundo seja bom ou mau, saneia ou vicia os fluidos circundantes. (KARDEC, 1992, p. 249).

A partir dessa afirmativa é importante enfatizar que os fluidos do ambiente são modificados pela projeção dos pensamentos do Espírito. Sendo assim, numa reunião de pessoas são irradiados pensamentos diversos. Se o conjunto é harmonioso, a impressão é agradável, se é discordante, a impressão é penosa.

Kardec (1992) explica também que o homem procura as reuniões homogêneas ou simpáticas, onde sabe que pode haurir novas forças morais, recuperando, inclusive, as perdas fluídicas, que tem pela irradiação diária dos seus pensamentos, assim como recupera, pelos alimentos, as perdas do corpo material.

Cada indivíduo (Kardec, 1989) caminha com um grupo de companheiros invisíveis, de acordo com seu caráter, gostos e comportamento. Quando o médium participa de uma reunião mediúnica, leva consigo esses companheiros que influenciam a assembleia e as comunicações. Por isso o autor reforça que uma reunião perfeita seria aquela em que todos os membros, imbuídos de igual amor ao bem e à caridade, conduzissem com eles os bons Espíritos.

Uma reunião é um ser coletivo, cujas qualidades e propriedades são as resultantes de todas as dos seus membros, e formam como um feixe; ora, esse feixe terá tanto mais força quanto for mais homogêneo. (KARDEC, 1989, p. 392)

Assim, para que uma reunião mediúnica alcance resultados sérios e úteis, deve primar pela homogeneidade de pensamentos. Para isso faz-se mister o recolhimento e a comunhão de pensamentos. Nessas reuniões a afinidade dos pensamentos do médium com o Espírito comunicante é fundamental. Caso contrário, o médium pode alterar as respostas e assimilá-las às suas próprias ideias e inclinações.

 

O Papel do Médium na Qualificação dos Pensamentos

Miranda (1998) esclarece que, embora as reuniões mediúnicas contem com a proteção e o amparo de Espíritos de boa vontade, não se pode esquecer da parte que compete aos encarnados. Segundo ele, o que garante a estabilidade de um bom grupo mediúnico é o equilíbrio psíquico, emocional dos seus membros.

O autor enfatiza o papel do pensamento do médium em seu procedimento diário, porque forma uma “atmosfera psíquica” em volta de cada um. Em consequência disso, o médium deve estar em constante vigilância consigo mesmo e com os seus pensamentos.

Miranda (1998) adverte também que o médium, mais do que qualquer outro, precisa estar vigilante, atento, ligado a algum grupo de trabalho sério, lendo sempre livros doutrinários, observando suas faculdades e se auto corrigindo. Ele é um ser humano ultrassensível, de psicologia complexa, incumbido de interpretar e transmitir o pensamento de um desencarnado, podendo suas faculdades sofrer várias influências.

Xavier e Vieira (1973), sob a inspiração do Espírito André Luiz alertam sobre o fato do desconhecimento, no mundo, da Lei do Campo Mental, que rege a moradia energética do Espírito, possibilitando às criaturas assimilarem as influências afins. Sendo assim, um médium nunca agirá à feição de um autômato, mas como uma consciência limitada às suas possibilidades e às disposições da própria vontade.

Admitida ao círculo da atividade espiritual, recolherá na oração o reflexo condicionado específico para exteriorizar as oscilações mentais próprias, no rumo da entidade desencarnada que mais de perto lhe comungue as ideações. (XAVIER, VIEIRA, 1973, p.132)

Quanto mais o médium se preocupar com o seu aperfeiçoamento e abnegação, com a cultura e o desinteresse, mais lhe serão sutilizados os pensamentos, aguçando as percepções mediúnicas.

Os autores afirmam que a conjugação de ondas mentais surge em todos os fatos mediúnicos. A mente do médium passa a emitir as oscilações que lhe são próprias, às quais se entrosam aquelas da entidade comunicante, com vistas a certos fins.

Quase toda a exteriorização fisiológica no intercâmbio pertence ao médium, cujos traços característicos assinalam as manifestações. O pensamento do médium age e reage com os pensamentos do Espírito comunicante, irradiando para este seu estado psíquico que varia de acordo com seu estado emocional e de conduta a que se afeiçoe.

No estágio atual em que o ser humano se encontra o seu pensamento sempre capta vibrações subalternas que o assaltam, levando-o à fadiga e à irritação. Essas ondas podem vir de Espíritos desencarnados, que se encontram em posição de angústia e que se afinizam com eles ou dos próprios encarnados que se encontrem desequilibrados.

Para isso forçoso é utilizarem-se do mecanismo da prece, para elevar suas próprias vibrações para planos mais sublimados, a fim de recolherem as ideias transformadoras de Espíritos amigos e benevolentes, que contribuem com a evolução de todos os seres.

 

Métodos da Pesquisa

Para a execução dessa pesquisa foi escolhido o método de revisão bibliográfica. Procurou-se, a partir da leitura de livros e artigos a respeito do tema a fundamentação teórica.

Esta metodologia tem caráter qualitativo e apresenta como objetivo selecionar conceitos resultantes de pesquisas, procurando no presente contexto, realizar reflexões sobre o problema em questão.

 

Considerações Finais

Após a leitura de diferentes autores na área pode-se concluir que ainda são necessárias mais pesquisas sobre o tema, pois, os próprios pesquisadores afirmam que o mecanismo de formação dos pensamentos ainda é desconhecido pela ciência, mesmo com os avanços da neurociência nos últimos tempos.

Enquanto a ciência tradicional, cartesiana e reducionista continua explicando o pensamento através do funcionamento dos neurônios e suas conexões (ou sinapses), há outros pesquisadores afirmando que o estudo da mente transcende as estruturas tradicionais da biologia, da psicologia e da epistemologia.

Com o advento da física quântica, novos olhares foram acrescentados à explicação sobre a formação do pensamento. Para essa ciência a mente parece ser a origem de tudo que está manifestado. A partir dessa descoberta admite-se que elementos de dimensões mais sutis possam interferir nos fenômenos físicos. O mundo passa a ser formado, em sua essência, por ondas, permitindo com que todos os corpos emitam e recebam frequências vibratórias.

Para o Espiritismo a mente se origina no Espírito e independe da matéria para se manifestar. O cérebro teria a função de registrá-lo, não de originá-lo. Essa doutrina afirma, ainda, que existe na Terra uma camada formada pelo conjunto de pensamentos e vibrações, denominada psicosfera. As vibrações oriundas do pensamento de cada indivíduo, circulando nessa camada, entrariam em sintonia com outros de mesma faixa vibratória.

Mesmo que a ciência não tenha a resposta final sobre o pensamento, é possível identificar alguns pontos em comum, principalmente no que diz respeito a sua imaterialidade e sua emissão por meio de ondas e vibrações, sendo capaz de sintonizar com outras ondas.

O pensamento, de acordo com o Espiritismo, é capaz de criar imagens fluídicas, que se refletem no envoltório do Espírito, encarnado ou não. Sendo assim, numa reunião de pessoas são irradiados pensamentos diversos. Se o conjunto é harmonioso, a impressão é agradável, se é discordante, a impressão é penosa.

Para a questão formulada nesse artigo, conclui-se que o médium, por formar uma “atmosfera psíquica” em volta de si, deve, por consequência, estar em constante vigilância consigo mesmo e com os seus pensamentos. Cabe aos médiuns procurar ligar-se a algum grupo de trabalho sério, lendo sempre livros doutrinários, observando suas faculdades e se auto corrigindo.

 O médium deve também conscientizar-se de que é um ser humano ultrassensível, de psicologia complexa, incumbido de interpretar e transmitir o pensamento de um desencarnado, podendo suas faculdades sofrer várias influências.

No compromisso de uma atividade espiritual, deve recolher-se na oração e preocupar-se com o seu aperfeiçoamento e abnegação, com a cultura e o desinteresse, para que sejam mais sutilizados os pensamentos, aguçando as percepções mediúnicas. Eis aí a forma, apresentada pelos próprios Espíritos, de se educar os pensamentos para um trabalho mediúnico profícuo.

 

Literatura

§  ANDREETA, José P. e ANDREETA, Maria de Lourdes. Princípios Herméticos comSciência: um compreensível mergulho no mundo quântico em que vivemos e nos conhecimentos milenares sobre o nosso universo. São Paulo: ProLíbera, 2010.

§  CAPRA, F. As Conexões Ocultas: ciência para uma vida sustentável. Trad. Marcelo B. Cipolla. 3ª ed. São Paulo: Cultrix, 2003.

§  CERQUEIRA FILHO, Alírio de. Energia Mental e Autocura. Santo André, SP: EBM Editora, 2010.

§  DENIS, L. O Espiritismo e as forças radiantes. Trad. Cícero Pimentel. 2ª ed. Rio de Janeiro: CELD, 2012.

§  FACURE, Núbor O. O Cérebro e a mente: uma conexão espiritual. São Paulo: FE Editora Jornalística Ltda., 2001

§  FRANCO, D. (Joanna de Ângelis, Espírito). Autodescobrimento: uma busca interior. 17ª ed. Salvador: LEAL, 2015 (série psicológica, vol. 6)

§  GUYTON, Arthur C. e HALL, John E. Fisiologia Médica. Trad. Charles A. Esbérard e outros. 10ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2002.

§  HOYOS GUEVARA, Arnold J.de e DIB, Vitória C. Da sociedade do conhecimento à sociedade da consciência. São Paulo: Saraiva, 2007.

§  JOHNSON, G. Nos palácios da Memória. Trad. Conceição C. Gimenez. São Paulo: Siciliano, 1994

§  KARDEC, A. O Livro dos Médiuns. Trad. Salvador Gentile. 9ª ed. Araras, SP: IDE, 1989.

§  ____________A Gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Trad. Salvador Gentile. Araras, SP: IDE, 1992.

§  ___________ O Livro dos Espíritos. Trad. José Herculano Pires. 62ª ed. São Paulo: LAKE, 2001

§  MALDONATO, Mauro A mente plural: biologia, evolução e cultura. Trad. Roberta Barni. São Paulo: Unimarco, 2006.

§  MIRANDA, Hermínio C. Diálogo com as Sombras: teoria e prática da doutrinação. 12ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1998.

§  ___________________ Alquimia da Mente. 3ª ed. Bragança Paulista, SP: Três de outrubro, 2010.

§  NICOLELIS, Miguel. Muito Além do nosso Eu: a nova neurociência que une cérebro e máquinas e como ela pode mudar nossas vidas. São Paulo: Cia das Letras, 2011.

§  PIRES, J. Herculano. O Espírito e o Tempo: introdução antropológica ao espiritismo. 7ª ed. Sobradinho, DF:: EDICEL, 1995

§  SCHUBERT, Suely Caldas. Os Poderes da Mente. 3ª ed. São Paulo: ed. Bezerra de Menezes, 2010.

§  SOUSA SANTOS, Boaventura. Um discurso sobre as ciências. 4ª ed. São Paulo: Cortez, 2006.

§  XAVIER, Chico e VIEIRA, Valdo. Mecanismos da Mediunidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 1973.

§  XAVIER, Chico e LUIZ, André (espírito). Entre a Terra e o Céu. 27ª ed. Brasília: FEB, 2015.

§  ZOHAR, Danah O Ser Quântico: uma visão revolucionária da natureza humana e da consciência, baseada na nova física. Trad. Maria Antônia Van Acker 14. ed. São Paulo: Best Seller, 2004.

terça-feira, 29 de novembro de 2022

O MATERIALISMO E O DIREITO[1]

 


Allan Kardec

 

Exibindo-se como não o tinha feito em nenhuma outra época e se apresentando como supremo regulador dos destinos morais da Humanidade, o materialismo teve por efeito apavorar as massas pelas consequências inevitáveis de suas doutrinas para a ordem social. Por isto mesmo provocou, em favor das ideias espiritualistas, uma enérgica reação, que deve provar-lhe que está longe de ter simpatias tão gerais quanto supõe, e que se ilude singularmente se espera um dia impor suas leis ao mundo.

Seguramente as crenças espiritualistas dos tempos passados são insuficientes para este século; elas não estão no nível intelectual de nossa geração; sobre muitos pontos estão em contradição com os dados positivos da Ciência; deixam no espírito um vazio incompatível com a necessidade do positivo, que domina na sociedade moderna; além disso, cometem o erro imenso de se imporem pela fé cega e de proscreverem o livre-exame. Daí, sem a menor dúvida, o desenvolvimento da incredulidade no maior número; é muito evidente que se os homens não fossem alimentados, desde a infância, senão por ideias susceptíveis de serem confirmadas mais tarde pela razão, não haveria incrédulos. Quantas pessoas, reconduzidas à crença pelo Espiritismo, nos disseram: Se sempre nos tivessem apresentado Deus, a alma e a vida futura de maneira racional, jamais teríamos duvidado!

Pelo fato de um princípio receber uma aplicação má ou falsa, segue-se que se deva rejeitá-lo? Isto acontece com coisas espirituais, como com a legislação de todas as instituições sociais: é necessário apropriá-las aos tempos, sob pena de sucumbir. Mas em vez de apresentar algo de melhor que o velho espiritualismo clássico, o materialismo preferiu tudo suprimir, o que o dispensava de procurar, e parecia mais cômodo àqueles a quem importuna a ideia de Deus e do futuro. Que pensariam de um médico que, achando que o regime de um convalescente não é bastante substancial para o seu temperamento, lhe prescrevesse não comer absolutamente nada?

O que é de admirar é encontrar na maioria dos materialistas da escola moderna esse espírito de intolerância levado aos últimos limites, logo eles que reivindicam sem cessar o direito de liberdade de consciência. Seus próprios correligionários políticos acham-se sem graça diante deles, assim que fazem profissão de espiritualismo, como o Sr. Jules Favre, a propósito de seu discurso na Academia (Figaro de 8 de maio de 1868), e como o Sr. Camille Flammarion, afrontosamente ridicularizado e denegrido, num outro jornal, cujo nome esquecemos, porque ousou provar Deus pela Ciência. Segundo o autor dessa diatribe, não se pode ser sábio senão com a condição de não crer em Deus; Chateaubriand não passa de um mísero escritor e velho caduco. Se homens de tão incontestável mérito são tratados com tão pouco respeito, os espíritas não devem se lamentar por serem troçados a respeito de suas crenças.

Há neste momento, da parte de certo partido, uma oposição furibunda contra as ideias espiritualistas em geral, nas quais o Espiritismo se acha naturalmente englobado. O que ele busca não é um Deus melhor e mais justo, é o Deus-matéria, menos constrangedor, porque não tem que lhe dar contas. Ninguém contesta a esse partido o direito de ter a sua opinião, de discutir as opiniões contrárias, mas o que não se lhe poderia conceder é a pretensão, no mínimo singular para homens que se apresentam como apóstolos da liberdade, de impedir que os outros creiam à sua maneira e de discutir as doutrinas que não partilham. Intolerância por intolerância, uma não vale mais que a outra.

Um dos melhores protestos que temos lido contra as tendências materialistas foi publicado no jornal Droit, sob o título de: O materialismo e o direito. A questão aí é tratada com notável profundeza e perfeita lógica, do duplo ponto de vista da ordem social e da jurisprudência. Sendo a causa do espiritualismo a do Espiritismo, aplaudimos a enérgica defesa da primeira, mesmo quando aí se faz abstração da segunda. Eis por que pensamos que os leitores da Revista verão com prazer a reprodução desse artigo.

 

(Extraído do jornal Droit, de 14 de maio de 1868)

A geração presente atravessa uma crise intelectual, com a qual não se deve inquietar além da medida, mas seria imprudência deixar o seu desenlace ao acaso. Desde que a Humanidade pensa, acredita-se na alma, princípio imaterial, distinto dos órgãos que o servem; faziam-na até imortal. Acreditava-se numa Providência, criadora e senhora dos seres e das coisas, no bem, no justo, na liberdade do arbítrio humano, numa vida futura que, para valer mais do que o mundo em que estamos, não precisa, como diz o poeta, senão existir. Modernos doutores, que começam a tornar-se barulhentos, mudaram tudo isto. O homem é por eles reconduzido à dignidade do animal, e este reduzido a um agregado material. A matéria e as propriedades da matéria, tais seriam os únicos objetos possíveis da ciência humana; o pensamento não seria senão um produto do órgão que é a sua sede, e o homem, quando as moléculas orgânicas que constituem a sua pessoa se desagregam e voltam aos elementos, pereceria inteiramente.

Se as doutrinas materialistas jamais devessem ter a sua hora de triunfo, os jurisconsultos filósofos – é preciso que se diga para sua honra – seriam os primeiros vencidos. Que teriam a fazer suas regras e suas leis num mundo no qual a lei da matéria fosse toda a lei? As ações humanas não podem ser senão fatos automáticos, se o homem for todo matéria. Mas, então, onde estará a liberdade? E se a liberdade não existir, onde está a moral? A que título uma autoridade qualquer poderia pretender dominar a expansão fatal de uma força toda física e necessariamente legítima, desde que é fatal? O materialismo arruína a lei moral e, com a lei moral, o direito, a ordem civil toda inteira, isto é, as condições da existência da Humanidade. Tais consequências imediatas, inevitáveis, certamente merecem que nelas se pense. Vejamos, pois, como se reproduz esta velha doutrina materialista, que não se viu despontar, até o presente, senão nos piores dias.

Quase sempre houve materialistas, teóricos ou práticos, quer por desvio do senso comum, quer para justificar baixos hábitos de viver. A primeira razão de ser do materialismo está na imperfeição da inteligência humana. Cícero disse em termos muito duros, que não há tolice que não tenha encontrado algum filósofo para defendê-la: Nihil tam absurde dici potest quod non dicatur ab aliquo philosophorum. A segunda razão de ser está nas más inclinações do coração humano. O materialismo prático, que se reduz a algumas máximas vergonhosas, sempre apareceu nas épocas de decomposição moral ou social, como as da Regência e do Diretório. Na maioria das vezes, quando houve pretensões mais elevadas, o materialismo filosófico foi uma reação contra as exigências exageradas das doutrinas ultra-espiritualistas ou religiosas. Mas em nossos dias ele se produz com um caráter novo; chama-se científico. A história natural seria toda a ciência do homem; nada existiria do que ela não tem por objeto e, como não tem por objeto o espírito, o espírito não existe.

Para quem queira pensar no caso, com efeito o materialismo é mesmo um perigo, não da ciência verdadeira, mas da ciência incompleta e presunçosa; é uma planta má que cresce em seu solo. De onde vêm as tendências materialistas, mais ou menos acentuadas, de tantos sábios? De sua constante ocupação em estudar e manipular a matéria? Talvez um pouco. Mas elas vêm sobretudo de seus hábitos de espírito, da prática exclusiva de seu mérito experimental. O método científico pode reduzir-se nestes termos: Não recolher senão fatos, deduzir muito prudentemente a lei desses fatos, banir absolutamente todas as pesquisas das causas. Não é de admirar, depois disto, que inteligências de visão curta, débeis nalgum sentido, deformadas, como nos tornamos todos, por um mesmo trabalho intelectual ou físico muito contínuo, desconheçam a existência dos fatos morais, aos quais não convém a aplicação de seu instrumento lógico e, por uma transmissão insensível, passam da ignorância metódica à negação.

Entretanto, se este método exclusivamente experimental pode achar-se em erro, é bem no estudo do homem, ser duplo, espírito e matéria, cujo organismo mesmo não pode ser senão o produto e o instrumento da força oculta, mas essencialmente una, que o anima. Não se quer ver no organismo humano mais que um agregado material! Por que cindir o homem e não querer, metodicamente, nele considerar senão um princípio, se há dois? É possível gabar-se, ao menos, de assim explicar todos os fenômenos da vida? O materialismo fisiológico, que prepara o materialismo filosófico, mas que a ele não conduz necessariamente, a cada passo é ferido de impotência. A vida, digam o que disserem, é um movimento, o movimento da alma informando o corpo; e a alma é, assim, a mola que move e transporta, por uma ação desconhecida e inconsciente, os elementos dos corpos vivos. Trazendo sistematicamente o estudo do homem físico às condições do estudo dos corpos organizados; não vendo nas forças vivas de cada parte do organismo senão propriedades da matéria; localizando essas forças em cada uma dessas partes; não considerando a vida senão como uma manifestação física, um resultado, quando ela talvez seja um princípio; afastando a unidade do princípio de vida como uma hipótese, quando pode ser uma realidade, cai-se, sem dúvida, no materialismo fisiológico, para depois escorregar rapidamente no materialismo filosófico; mas se conclui por uma enunciação e um exame incompleto dos fatos; acreditou-se marchar apenas apoiado na observação, e afastou-se o fato capital que domina e determina todos os fatos particulares.

O materialismo da nova escola não é, pois, um resultado demonstrado do estudo; é uma opinião preconcebida. O fisiologista não admite o espírito; mas que há de admirável? É uma causa, e ele se pôs no estudo com um método que lhe interdita precisamente a pesquisa das causas. Não queremos submeter a causa do espiritualismo a uma questão de fisiologia controvertida, e sobre a qual nos poderiam recusar em bom direito. O sentido íntimo me revela a existência da alma com uma autoridade bem diversa. Ainda que o materialismo fisiológico fosse tão verdadeiro quanto é discutível, nem por isso nossas convicções espiritualistas ficariam menos inteiras. Fortalecido pelo testemunho do senso íntimo, confirmado pelo assentimento de mil gerações que se sucederam na Terra, repetiríamos o velho adágio: A verdade não destrói a verdade, e esperaríamos que a conciliação se fizesse com o tempo. Mas, de que peso não nos sentimos aliviados quando vemos que, para negar a alma e dar esta declaração como um resultado da Ciência, o sábio, por confissão própria, partiu metodicamente dessa ideia de que a alma não existe!

Lemos muitos livros de fisiologia, em geral muito mal escritos; o que nos chamou a atenção foi o vício constante dos raciocínios do fisiologista organicista, quando sai do seu assunto para se fazer filósofo. Vemos constantemente tomar um efeito por uma causa, uma faculdade por uma substância, um atributo por um ser, confundir as existências e as forças etc., e raciocinar em consequência. Dir-se-ia uma aposta. Algumas vezes ele transpõe distâncias incríveis sem desconfiar do caminho que faz. Que espírito exato e claro, por exemplo, jamais pôde compreender esse pensamento tão conhecido de Cabanis e de Broussais, que “o cérebro produz, secreta o pensamento?” Outras vezes, o homem positivo, o homem da ciência, o homem da observação e dos fatos, nos dirá seriamente que o cérebro “armazena as ideias.” Ainda um pouco, ele as desenhará. É metáfora ou mixórdia?

Jamais será pedido à ciência natural que tome partido pró ou contra a alma humana; mas por que ela não se resolve a ignorar o que não é objeto de suas investigações? Com que direito ousa jurar que não há nada depois dela, após ter decretado não querer vê-la? Por que não guarda um pouco dessa reserva, que nos convém tão bem a todos, sobretudo aos que têm a pretensão de não avançar senão com certeza? Com que autoridade o anatomista poderá declarar que a alma não existe, porque não a encontrou sob o seu escalpelo? Pelo menos começou ele a demonstrar rigorosamente, cientificamente, por experiências e por fatos, segundo o método que preconiza, que o seu escalpelo pode atingir tudo, até mesmo um princípio imaterial?

Seja como for com todas estas questões, o materialismo, dizendo-se científico, sem por isto valer mais, se espalha à luz do dia e nos deixa ver o que seria o direito materialista. Ai! O estado social materialista nos ofereceria um bem triste e vergonhoso espetáculo. Antes de mais, uma coisa é certa: se o homem não existe senão por seu organismo, essa massa material e automática, em que doravante se tornará todo homem, provido de um encéfalo para secretar ideias, será irresponsável por todos os movimentos que produzir[2]. Com ela não será preciso que o encéfalo de uma outra massa material se decida a secretar ideias de justiça ou de injustiça; porque essas ideias de justiça ou de injustiça só são aplicáveis a uma força livre, existente por si mesma, capaz de querer e de se abster. Não se contesta a torrente ou a avalanche.

Então a liberdade, isto é, a vontade de agir ou não agir, não existirá aqui, nem tampouco o direito. Nesse estado, todas as forças terão um pleno e absoluto poder de expansão. Tudo será legítimo, lícito, permitido, mesmo ordenado, digamos; porque é claro que tudo faz que não seja o ato de uma vontade livre, que não se produz como um ato moralmente obrigatório ou moralmente proibido; é um fato obrigado, que bem pode vir chocar-se com um fato contrário do mesmo caráter, mas que cai como todos os fatos físicos, sob o império inelutável das leis naturais.

Basta expor tais ideias para lhes fazer justiça. É o sistema de Espinoza, que muito resolutamente estabeleceu o princípio do direito da força. Os fortes, diz Espinoza, são feitos para subjugar os fracos, como os peixes para nadar e os maiores para comer os menores. No sistema materialista, o que seria chamado direito não poderia ter um princípio diferente. Mas que homem dotado de senso ousaria confessar tal sistema que, por si só, bastaria para refutar o materialismo, pois que dele decorre necessariamente? Querem, entretanto, que esse princípio da força se ache, de fato, limitado por si mesmo? Nada será ganho, ou quase nada, com esse flagrante desmentido do princípio. Admitamos, se quiserem, que a substância pensante (continuamos a falar a língua dos materialistas) se combine nos indivíduos para regularizar essa expansão da força; a que chegará? No máximo a um conjunto de regras que terão por base o interesse e, ainda, como não há outras leis senão as leis da matéria, essa legislação não terá nenhum caráter obrigatório; cada um poderá infringi-la se sua matéria pensante lhe aconselhar e se sua força lhe permitir. Assim, nesta singular doutrina, não se teria nem mesmo um estado social construído sobre o plano da triste sociedade de Hobbes.

Não falamos ainda senão das condições primeiras de todo estado social. Mas, em toda sociedade civil, consagra-se a propriedade individual; contrata-se, vende-se, aluga-se, associa-se etc. O casamento funda a família; daí nasce toda uma ordem nova de relações. Pela educação do lar e pela educação pública, perpetuam-se as tradições. Assim se forma o espírito nacional e se desenvolve a civilização. Nossa sociedade materialista terá o seu direito civil? Impossível supô-lo, porquanto o direito civil, em seu conjunto, tem por princípio a justiça, e a justiça não pode ser senão uma palavra, ou uma contradição, numa doutrina que só conhece a matéria e as propriedades da matéria. Chega-se assim, inevitavelmente, a concluir (a menos que delirando a propósito) que o estado civil da sociedade materialista é o estado de bestialidade.

Nada dizemos em demasia quando avançamos que o materialismo é destrutivo, não de tal moral, mas de toda moral; não de tal estado civil, mas de todo estado civil, de toda sociedade. É preciso recuar com ele além das regiões da barbárie, além da selvageria. Deve-se proscrevê-lo por isto? Que Deus não o permita. Reconhecido o seu caráter, não pediríamos, nada obstante, que o seu ensino fosse interditado; nós o defenderíamos, se necessário, contra toda restrição pela força, desde que o professor não falasse senão em seu próprio nome. A liberdade nos é tão cara (os leitores deste jornal o sabem); traz consigo tais benefícios; temos tal confiança no bom-senso público, que não conceberíamos nenhuma inquietação por ver toda cátedra, toda tribuna aberta a todas as ideias.

Mas a questão já não se apresentaria nos mesmos termos se acontecesse que o professor falasse numa cátedra do Estado, retribuída pelo orçamento. Com ou sem razão, o Estado ensina. Pode ensinar doutrinas cujas consequências mais imediatas sejam destrutivas do Estado? Ficará ao arbítrio do professor fazer o Estado endossar todas as doutrinas que puder conceber? A questão não é simples. Os professores do Estado são funcionários públicos; seu ensino não pode ser e não é senão um ensino oficial. O estado é responsável pelo que dizem; responde perante a juventude e as famílias. Se com as grandes palavras de independência do professorado recusássemos seu controle, far-nos-íamos opressores do Estado, pela mais hipócrita das opressões, porque levaríamos à sua conta doutrinas que ele desaprova.

Sem dúvida a autoridade superior deve aos seus professores, muitas vezes envelhecidos pelo estudo, cuidados, considerações e uma grande confiança, como deve aos seus generais, aos seus administradores e aos seus magistrados; mas ela não lhes deve o sacrifício do mandato, quando é de presumir-se que comande o país. O professor não é mais independente do Estado do que o general que pretendesse comandar uma insurreição.

 

H. Thiercelin



[1] Revista Espírita – Agosto/1868 – Allan Kardec

[2] Como o fígado não é responsável pela bile que secreta.

segunda-feira, 28 de novembro de 2022

SUELY CALDAS SCHUBERT

 


Suely Caldas Schubert nasceu em Carangola, Minas Gerais, em 9 de dezembro de 1938.  Residia em Juiz de Fora, no mesmo Estado. Seus pais e avós maternos e paternos eram espíritas. A mediunidade surgiu muito cedo em sua vida, a ela se dedicando por mais de sessenta anos, especialmente no âmbito da mediunidade e da divulgação do Espiritismo.

Dizia que a mediunidade só lhe trouxe alegrias.

Eu nunca tive nenhuma dor, nenhum sofrimento que eu atribuí à mediunidade. Eu não sei viver a minha vida sem o trabalho mediúnico. Mas acima de tudo está a doutrina”. Evidenciava que “o Espiritismo, o Evangelho do Cristo à luz da Doutrina Espírita está em primeiro lugar na minha vida.

Realizou diversas palestras, tendo participado de seminários no Brasil e no Exterior. Tinha uma forma peculiar de expor a Doutrina, que brotava de seus lábios, atestando que a trazia em seu coração, pujante. Aplaudida pelo conteúdo de suas exposições, buscada para os autógrafos em seus livros, era uma criatura peculiar.

Ela era uma pessoa muito especial. E, mais de uma vez, no café da manhã, ou em breve contato um pouco mais íntimo, ela demonstrava sua forma mais do que peculiar, que nos fazia rir.

Recordamos de um momento em que lhe dissemos que iríamos captar imagens suas, em fotos oficiais, para que, de futuro, pudéssemos utilizar em cartazes ou banners de suas conferências.

Sempre bem penteada, arrumada, com seu sorriso espontâneo, ela se deixou fotografar repetidas vezes. E, quando a fotógrafa concluiu, Suely a olhou e disse: Olhe, por favor, capriche no meu visual. Use aquele negócio, o Pet Shop.

Era assim a amiga. Podia não lembrar da fisionomia de alguém que conhecera há alguns anos e não via há muito tempo, mas não esquecia da correta citação doutrinária que precisasse utilizar para apresentar, com propriedade, a temática que se propunha.

Foi uma das fundadoras da Sociedade Espírita Joanna de Ângelis, em 1986, em Juiz de Fora. Atuou durante quarenta anos na Aliança Municipal Espírita, onde exerceu diversos cargos. Dedicou-se à Doutrina com conhecimento, amor e seriedade.

Suely falava que o pouco que sabe se deve à leitura, sendo uma leitora compulsiva. Da ávida dedicação aos livros e à busca por conhecimento veio certamente a boa prática da escrita. Autora de dezenas de livros, entre suas obras destacamos: “Dimensões Espirituais do Centro Espírita”; “O Semeador de Estrelas”; “Obsessão/Desobsessão: Profilaxia e Terapêutica Espíritas”; “Os Poderes da Mente”; “Transtornos Mentais: uma leitura Espírita”; “Mentes interconectadas e a Lei de Atração”; “Nas fronteiras da Nova Era”; “Testemunhos de Chico Xavier e Divaldo Franco: uma vida com os Espíritos”. Retratava personalidades que trabalhavam o bem, tal como a própria autora que escrevia sua biografia de amor ao longo desta existência.

Seu mais recente livro, “Chico Xavier e Emmanuel – dores e glórias”, estava com lançamento previamente agendado e foi mantido para o dia 13 de maio, pela Federação Espírita Brasileira, nos traz Chico Xavier como objeto de estudo e meta de proceder, em uma prazerosa leitura sobre a mediunidade. Uma obra que, sobretudo neste momento, nos traz ainda mais próxima a figura de Suely, tão devotada à causa espírita e à Casa FEB de onde foi diretora, amiga e dedicada colaboradora.

Palestrante dedicada, visitava o Paraná, desde junho de 1988, quando ofereceu sua palavra em Ponta Grossa e depois em Curitiba, retornando anualmente para conferências, palestras, seminários pelo Interior e Capital.

Já se tornara praxe que ela fizesse a avant-première na semana da Conferência Estadual Espírita, com palestra matutina no Teatro da Federação Espírita do Paraná – FEP.

Suely Caldas Schubert partiu, nesta tarde de 12 de maio de 2021. Aqui choramos a sua partida, mas guardamos a certeza de que há alegria na Espiritualidade, para a sua recepção.

Falaram na oportunidade Geraldo Campetti Sobrinho, pela Federação Espírita Brasileira; Andrea Marshall e Marcelo Netto, pela Leal Publisher, da Flórida; Jussara Korngold, pela Federação Espírita dos Estados Unidos; Luiz Henrique da Silva, pela Federação Espírita do Paraná; Gisele Risso e Laudelino Risso, presidente e segundo vice da 10ª União Regional Espírita.

Lincoln Barros de Sousa, membro do Conselho Federativo Estadual/FEP declamou um poema, de sua autoria, construído a partir dos títulos das suas obras, que foi, de imediato, disponibilizado a todos os participantes, no chat.

 

Fontes:

§  http://www.feparana.com.br/topico/?topico=2720

§  https://www.febnet.org.br/portal/2021/05/13/a-suely-caldas-schubert-nossa-eterna-gratidao/

sábado, 26 de novembro de 2022

A GENTE VAI EMBORA[1]

 


Publicado por Fernanda Tomás

 

A GENTE VAI EMBORA… e fica tudo aí, os planos a longo prazo e as tarefas de casa, as dívidas com o banco, as parcelas do carro novo que a gente comprou pra ter status.

A GENTE VAI EMBORA… sem sequer guardar as comidas na geladeira, tudo apodrece, a roupa fica no varal.

A GENTE VAI EMBORA… se dissolve e some toda a importância que pensávamos que tínhamos, a vida continua, as pessoas superam e seguem suas rotinas normalmente.

A GENTE VAI EMBORA… as brigas, as grosserias, a impaciência, serviram para nos afastar de quem nos trazia felicidade e amor.

A GENTE VAI EMBORA… e todos os grandes problemas que achávamos que tínhamos se transformam em um imenso vazio, não existem problemas. Os problemas moram dentro de nós. As coisas têm a energia que colocamos nelas e exercem em nós a influência que permitimos.

A GENTE VAI EMBORA… e o mundo continua normal , como se a nossa presença ou ausência não fizesse a menor diferença. Na verdade, não faz. Somos pequenos, porém, prepotentes. Vivemos nos esquecendo de que a morte anda sempre à espreita.

A GENTE VAI EMBORA… pois é. É bem assim: Piscou, a vida se vai… O cachorro é doado e se apega aos novos donos. Os viúvos se casam novamente, andam de mãos dadas e vão ao cinema.

A GENTE VAI EMBORA… e somos rapidamente substituídos no cargo que ocupávamos na empresa. As coisas que sequer emprestávamos são doadas, algumas jogadas fora. Quando menos se espera…

A GENTE VAI EMBORA. Aliás, quem espera morrer?

Se a gente esperasse pela morte, talvez a gente vivesse melhor.

Talvez a gente colocasse nossa melhor roupa hoje, talvez a gente comesse a sobremesa antes do almoço. Talvez a gente esperasse menos dos outros…

Se a gente esperasse pela morte, talvez perdoasse mais, risse mais, saísse à tarde para ver o mar, o pôr do sol, talvez a gente quisesse mais tempo e menos dinheiro.

Quem sabe, a gente entendesse que não vale a pena se entristecer com as coisas banais, ouvisse mais música e dançasse mesmo sem saber.

O tempo voa. A partir do momento que a gente nasce, começa a viagem veloz com destino ao fim – e ainda há aqueles que vivem com pressa! Sem se dar o presente de reparar que cada dia a mais é um dia a menos, porque…

A GENTE VAI EMBORA o tempo todo, aos poucos e um pouco mais a cada segundo que passa.

 

O QUE VOCÊ ESTÁ FAZENDO COM O POUCO TEMPO que lhe resta?

sexta-feira, 25 de novembro de 2022

A RESPEITO DA INTERRUPÇÃO DA GESTAÇÃO DE UMA CRIANÇA[1]

 

Flávio Mussa Tavares, médico[2]

 

Cabe a um responsável pela preservação dos princípios doutrinários de uma instituição religiosa emitir opinião oficial a respeito de temas em evidência em determinada época. O assunto que hoje sobressai em redes sociais e mídia em geral é a celeuma, criada a respeito da decisão judicial, favorável a interrupção da gestação de uma criança que fora vítima de abuso sexual em sua própria casa, praticado por parente próximo.

De um lado, falaram os defensores dos direitos da criança molestada por quatro anos, que culminou com uma gravidez, quando possivelmente nem havia ocorrido a menarca. Estes defendem o aborto legal.

De outro lado, gritaram líderes religiosos de todos os matizes, inclusive espíritas (o que nos interessa) alegando defender o direito à vida, declarando a ilegalidade do aborto.

O médico Henri Siegerist, em 1929 foi pioneiro ao enquadrar muitos problemas de saúde como dependentes de realidades sociais. No Brasil, a partir da década de 1970, iniciaram-se os estudos de saúde coletiva, especialmente com Sérgio Arouca, de quem tive a honra de ser aluno.

Como, porém, se pode delimitar um problema no domínio da saúde pública? Na década de 1970, em vários países e também no Brasil, questionou-se o reducionismo da supremacia biológica no campo da saúde coletiva e iniciou-se um gradual entendimento da complexidade dos temas da saúde humana como simultaneamente sociais e biológicos. Foi criado, desse modo, a Saúde Pública, ou seja, o conjunto de medidas a ser tomado pelo estado para garantir o bem estar físico, mental e social da população. Desse modo, toda questão que envolve uma população em determinado espaço e tempo, é uma questão de saúde pública e o estado tem o dever constitucional de adotar medidas tanto preventivas quanto corretivas de interesse geral. É o caso das doenças infecciosas, que são de interesse tanto social quanto médico, poluição, desmatamento, doenças sexualmente transmissíveis, abuso de drogas, suicídio, sexualidade, incluindo a gravidez na infância e juventude etc.

Abordar a sexualidade na educação infantil é do campo da prevenção, o aborto em crianças e adolescentes vítima de estupro, é do campo da medida corretiva.

Desse modo, o estado laico deve incluir nos currículos escolares a educação sexual, que possa preparar nossas crianças a não se tornarem vítimas de abusadores, prevenir o início precoce da vida sexual, bem como prevenir-se de doenças sexualmente transmissíveis. Paripasso, o mesmo estado laico deve oferecer meios de corrigir as situações que não foram devidamente evitadas, que no caso de gravidez na infância, devido ao risco de morte materna, significa interrupção da gestação.

Saindo da órbita social e penetrando na órbita religiosa e especialmente espírita, após inúmeros textos publicados nas mídias por representantes de instituições federativas espíritas e até da Associação Médico Espírita do Brasil, todas citando as mesmas fontes doutrinárias da codificação e de obras psicografas por médiuns notáveis, observou-se algo inusitado. A despeito dos mesmos subsídios, houve conclusões absolutamente díspares.

Na década de 1970, Francisco Cândido Xavier, um médium de reconhecimento internacional, psicografou jovens desencarnados prematuramente. Destaco um deles, por escrever algo de interesse no tema: Augusto César Netto. Em um de seus livros, “Falou e Disse”, no capítulo 7 ele conversa sobre Sexo. Relata em linguagem de gíria paulista, :

Vem uma espécie de dança do índio. A pessoa faz que vai, diz que não vai e, por vezes, acaba indo. E se surge aquele jogo de ninguém ganha, o cara abre o pé naquela que matou o guarda e a mocinha aguenta o talo, porque esse negócio de reencarnação é fácil pra cachorro […] “Mas trazendo o caso para o nosso chão terrestre, é preciso reconhecer que, nas transas do sexo desequilibrado, não há pílula que impeça a chegada do invasor que com o tempo se transforma em agente de prova e cura, juízo e reajuste”.

Diante dessa passagem, Caio Ramacciotti, que publicou o livro, endereçou antes uma pergunta a Chico Xavier, a respeito da possibilidade de uma reencarnação não programada, que a repassou ao seu mentor Emmanuel. Este respondeu no capítulo 8:

Indubitavelmente, em matéria de filhos, no Plano Físico, a lei das afinidades quase pode ser considerada por fator determinante da chamada hereditariedade psicológica. E partindo do exemplo de reencarnação de alcoolistas, diz: “Quando isso ocorre, é justo considerar que por muito se esforcem os Instrutores Espirituais, encarregados de cooperar na execução de certo plano de reencarnações para determinado grupo familiar, nem sempre conseguem evitar a intromissão de um ou mais de um dos alcoólatras desencarnados, porquanto se ajustam eles de tal modo às forças genésicas de um dos parceiros do compromisso sexual que acabam na condição de filhos deles”.

A relevância dessa opinião é de que existem reencarnações não programadas e se um dependente químico, atrai um espírito dependente químico e intruso, provavelmente, um pedófilo, poderia também estar acompanhado de outros pedófilos que seriam, de improviso, recorporificados num útero infantil.

Voltando ao domínio da saúde pública, espíritas, católicos e protestantes são convidados a compreender que o estado laico prescinde de suas considerações, de seus pontos de vista para tomar medidas preventivas ou corretivas. Estas medidas são parte de um conjunto de leis definidas na Constituição e em documentos específicos, como o Estatuto da Criança e do Adolescente.

O estado laico não está mercê das perspectivas de cada agrupamento religioso.

Assim, quando uma criança engravida, existe uma questão de Saúde Pública e de seus agentes. Se o caso for judicializado, cumpra-se.

Então de que valem os preceitos doutrinários, no caso do Espiritismo reencarnacionista, que não vê na concepção o início de uma vida nova e nem na desencarnação o fim dela?

Os preceitos espíritas da preexistência e da sobrevivência da alma são estatutos para serem seguidos por seus profitentes. Nenhum grupo religioso tem o direito de propor seu protocolo para os que não comungam a mesma crença. Nem órgãos federativos espíritas e nem agremiações médico-espíritas estão aptos a redigir notas com juízo de valor sobre situações que estão além de suas fronteiras.

O que cabe às famílias espíritas, pelo princípio da razoabilidade é, em vivenciando situação semelhante, agir de acordo com a sua consciência. Se uma família espírita for surpreendida com o fato de ter uma criança grávida, vítima de estupro e considerar com o obstetra, que vale o risco em nome da vida do feto, não há como impedir essa decisão. Contrapartida, essa mesma família não tem o direito de julgar outra família que segue as orientações médicas com protocolos científicos para interromper a gestação.

O espírita é um ser social. O espiritismo é uma doutrina progressista. Não somos fundamentalistas. Não podemos usar premissas verdadeiras, como textos doutrinários, para produzir conclusões falsas, isto é, gerando juízos de valor sobre as crianças, as maiores vítimas, sobre suas famílias, advogados, juízes e médicos.

O nosso único e impreterível dever é amparar a todos. As vítimas que estiverem vivenciando diferentes lutos, os algozes que podem estar em momento de remorso tóxico e os envolvidos nas medidas corretivas, a todos acolhendo e esclarecendo com nossos princípios renovadores.

Que o Nosso Senhor Jesus Cristo a todos nos abençoe nestes momentos graves de transição que estamos vivendo.

 

 

Nota do Editor:

Embora não possamos transformar o episódio, triste, muito triste, da criança estuprada e engravidada num campo de “duelo mental” com confrades espíritas ou de quaisquer outro campo de crença que divirjam de nosso pensamento, creio ser este o melhor dos cinco ou seis textos que li em relação a esse caso tão doloroso.

Não há, porém, que se “parabenizar” o irmão Flávio por estar tão somente dando seu importante contributo com consistência, respeito e coerência doutrinária cristã espírita acerca do episódio, justamente por ser este um capítulo triste de nosso conturbado cenário social e seus dramas.

Esse fato, como sabemos, culminou com o aborto legal ocorrido em Pernambuco. Reflexionando então sobre o cenário de personagens envolvidos no episódio – a própria menina, seu algoz, os médicos, os juristas que determinaram o abortamento legal e seguro e o espírito vida que poderia (ou não) estar vinculado a esse útero – cabe a nós a postura do Cristo: orar por todos e confiar na conjugação de dois fatores que nunca se impõem isoladamente: Misericórdia Divina, aliada à justeza das Leis Magnânimas da Vida.

Ao irretocável texto do doutor Flávio Mussa Tavares, ousadamente acrescentaria uma última lição de Emmanuel, apenas para reforço de ideias:

“Nenhum culto, que se prenda a Deus pela devoção e por determinados deveres religiosos, tem o direito de interferir nos movimentos transitórios do Estado”.  (do livro “Emmanuel”, editora FEB).

Nota de Juvan Neto, editor do jornal Espaço Espírita.



[2] Diretor Doutrinário da Escola Jesus Cristo – Instituição Espírita de Cultura e Caridade.   Campos – RJ.