Allan Kardec
Exibindo-se como não o tinha
feito em nenhuma outra época e se apresentando como supremo regulador dos
destinos morais da Humanidade, o materialismo teve por efeito apavorar as
massas pelas consequências inevitáveis de suas doutrinas para a ordem social. Por
isto mesmo provocou, em favor das ideias espiritualistas, uma enérgica reação,
que deve provar-lhe que está longe de ter simpatias tão gerais quanto supõe, e
que se ilude singularmente se espera um dia impor suas leis ao mundo.
Seguramente as crenças espiritualistas
dos tempos passados são insuficientes para este século; elas não estão no nível
intelectual de nossa geração; sobre muitos pontos estão em contradição com os
dados positivos da Ciência; deixam no espírito um vazio incompatível com a
necessidade do positivo, que domina na sociedade moderna; além disso, cometem o
erro imenso de se imporem pela fé cega e de proscreverem o livre-exame. Daí,
sem a menor dúvida, o desenvolvimento da incredulidade no maior número; é muito
evidente que se os homens não fossem alimentados, desde a infância, senão por ideias
susceptíveis de serem confirmadas mais tarde pela razão, não haveria
incrédulos. Quantas pessoas, reconduzidas à crença pelo Espiritismo, nos
disseram: Se sempre nos tivessem apresentado Deus, a alma e a vida futura de
maneira racional, jamais teríamos duvidado!
Pelo fato de um princípio
receber uma aplicação má ou falsa, segue-se que se deva rejeitá-lo? Isto
acontece com coisas espirituais, como com a legislação de todas as instituições
sociais: é necessário apropriá-las aos tempos, sob pena de sucumbir. Mas em vez
de apresentar algo de melhor que o velho espiritualismo clássico, o
materialismo preferiu tudo suprimir, o que o dispensava de procurar, e parecia
mais cômodo àqueles a quem importuna a ideia de Deus e do futuro. Que pensariam
de um médico que, achando que o regime de um convalescente não é bastante
substancial para o seu temperamento, lhe prescrevesse não comer absolutamente
nada?
O que é de admirar é encontrar
na maioria dos materialistas da escola moderna esse espírito de intolerância
levado aos últimos limites, logo eles que reivindicam sem cessar o direito de
liberdade de consciência. Seus próprios correligionários políticos acham-se sem
graça diante deles, assim que fazem profissão de espiritualismo, como o Sr.
Jules Favre, a propósito de seu discurso na Academia (Figaro de 8 de
maio de 1868), e como o Sr. Camille
Flammarion, afrontosamente ridicularizado e denegrido, num outro jornal,
cujo nome esquecemos, porque ousou provar Deus pela Ciência. Segundo o autor
dessa diatribe, não se pode ser sábio senão com a condição de não crer em Deus;
Chateaubriand não passa de um mísero escritor e velho caduco. Se homens de tão
incontestável mérito são tratados com tão pouco respeito, os espíritas não
devem se lamentar por serem troçados a respeito de suas crenças.
Há neste momento, da parte de
certo partido, uma oposição furibunda contra as ideias espiritualistas em
geral, nas quais o Espiritismo se acha naturalmente englobado. O que ele busca
não é um Deus melhor e mais justo, é o Deus-matéria, menos constrangedor,
porque não tem que lhe dar contas. Ninguém contesta a esse partido o direito de
ter a sua opinião, de discutir as opiniões contrárias, mas o que não se lhe
poderia conceder é a pretensão, no mínimo singular para homens que se
apresentam como apóstolos da liberdade, de impedir que os outros creiam à sua
maneira e de discutir as doutrinas que não partilham. Intolerância por
intolerância, uma não vale mais que a outra.
Um dos melhores protestos que
temos lido contra as tendências materialistas foi publicado no jornal Droit,
sob o título de: O materialismo e o direito. A questão aí é tratada com
notável profundeza e perfeita lógica, do duplo ponto de vista da ordem social e
da jurisprudência. Sendo a causa do espiritualismo a do Espiritismo, aplaudimos
a enérgica defesa da primeira, mesmo quando aí se faz abstração da segunda. Eis
por que pensamos que os leitores da Revista verão com prazer a
reprodução desse artigo.
(Extraído do
jornal Droit, de 14 de maio de 1868)
A geração presente atravessa uma crise intelectual, com
a qual não se deve inquietar além da medida, mas seria imprudência deixar o seu
desenlace ao acaso. Desde que a Humanidade pensa, acredita-se na alma,
princípio imaterial, distinto dos órgãos que o servem; faziam-na até imortal.
Acreditava-se numa Providência, criadora e senhora dos seres e das coisas, no
bem, no justo, na liberdade do arbítrio humano, numa vida futura que, para
valer mais do que o mundo em que estamos, não precisa, como diz o poeta, senão
existir. Modernos doutores, que começam a tornar-se barulhentos, mudaram tudo
isto. O homem é por eles reconduzido à dignidade do animal, e este reduzido a
um agregado material. A matéria e as propriedades da matéria, tais seriam os
únicos objetos possíveis da ciência humana; o pensamento não seria senão um
produto do órgão que é a sua sede, e o homem, quando as moléculas orgânicas que
constituem a sua pessoa se desagregam e voltam aos elementos, pereceria
inteiramente.
Se as doutrinas materialistas jamais devessem ter a sua
hora de triunfo, os jurisconsultos filósofos – é preciso que se diga para sua
honra – seriam os primeiros vencidos. Que teriam a fazer suas regras e suas
leis num mundo no qual a lei da matéria fosse toda a lei? As ações humanas não
podem ser senão fatos automáticos, se o homem for todo matéria. Mas, então,
onde estará a liberdade? E se a liberdade não existir, onde está a moral? A que
título uma autoridade qualquer poderia pretender dominar a expansão fatal de
uma força toda física e necessariamente legítima, desde que é fatal? O
materialismo arruína a lei moral e, com a lei moral, o direito, a ordem civil
toda inteira, isto é, as condições da existência da Humanidade. Tais consequências
imediatas, inevitáveis, certamente merecem que nelas se pense. Vejamos, pois,
como se reproduz esta velha doutrina materialista, que não se viu despontar,
até o presente, senão nos piores dias.
Quase sempre houve materialistas, teóricos ou práticos,
quer por desvio do senso comum, quer para justificar baixos hábitos de viver. A
primeira razão de ser do materialismo está na imperfeição da inteligência
humana. Cícero disse em termos muito duros, que não há tolice que não tenha
encontrado algum filósofo para defendê-la: Nihil tam absurde dici potest
quod non dicatur ab aliquo philosophorum. A segunda razão de ser está nas
más inclinações do coração humano. O materialismo prático, que se reduz a
algumas máximas vergonhosas, sempre apareceu nas épocas de decomposição moral
ou social, como as da Regência e do Diretório. Na maioria das vezes, quando
houve pretensões mais elevadas, o materialismo filosófico foi uma reação contra
as exigências exageradas das doutrinas ultra-espiritualistas ou religiosas. Mas
em nossos dias ele se produz com um caráter novo; chama-se científico. A
história natural seria toda a ciência do homem; nada existiria do que ela não
tem por objeto e, como não tem por objeto o espírito, o espírito não existe.
Para quem queira pensar no caso, com efeito o
materialismo é mesmo um perigo, não da ciência verdadeira, mas da ciência
incompleta e presunçosa; é uma planta má que cresce em seu solo. De onde vêm as
tendências materialistas, mais ou menos acentuadas, de tantos sábios? De sua
constante ocupação em estudar e manipular a matéria? Talvez um pouco. Mas elas
vêm sobretudo de seus hábitos de espírito, da prática exclusiva de seu mérito
experimental. O método científico pode reduzir-se nestes termos: Não
recolher senão fatos, deduzir muito prudentemente a lei desses fatos, banir
absolutamente todas as pesquisas das causas. Não é de admirar, depois
disto, que inteligências de visão curta, débeis nalgum sentido, deformadas,
como nos tornamos todos, por um mesmo trabalho intelectual ou físico muito contínuo,
desconheçam a existência dos fatos morais, aos quais não convém a aplicação de
seu instrumento lógico e, por uma transmissão insensível, passam da ignorância
metódica à negação.
Entretanto, se este método exclusivamente experimental
pode achar-se em erro, é bem no estudo do homem, ser duplo, espírito e matéria,
cujo organismo mesmo não pode ser senão o produto e o instrumento da força
oculta, mas essencialmente una, que o anima. Não se quer ver no organismo
humano mais que um agregado material! Por que cindir o homem e não querer,
metodicamente, nele considerar senão um princípio, se há dois? É possível
gabar-se, ao menos, de assim explicar todos os fenômenos da vida? O
materialismo fisiológico, que prepara o materialismo filosófico, mas que a ele
não conduz necessariamente, a cada passo é ferido de impotência. A vida, digam
o que disserem, é um movimento, o movimento da alma informando o corpo; e a
alma é, assim, a mola que move e transporta, por uma ação desconhecida e
inconsciente, os elementos dos corpos vivos. Trazendo sistematicamente o estudo
do homem físico às condições do estudo dos corpos organizados; não vendo nas
forças vivas de cada parte do organismo senão propriedades da matéria;
localizando essas forças em cada uma dessas partes; não considerando a vida
senão como uma manifestação física, um resultado, quando ela talvez seja um
princípio; afastando a unidade do princípio de vida como uma hipótese, quando
pode ser uma realidade, cai-se, sem dúvida, no materialismo fisiológico, para
depois escorregar rapidamente no materialismo filosófico; mas se conclui por
uma enunciação e um exame incompleto dos fatos; acreditou-se marchar apenas
apoiado na observação, e afastou-se o fato capital que domina e determina todos
os fatos particulares.
O materialismo da nova escola não é, pois, um resultado
demonstrado do estudo; é uma opinião preconcebida. O fisiologista não admite o
espírito; mas que há de admirável? É uma causa, e ele se pôs no estudo com um
método que lhe interdita precisamente a pesquisa das causas. Não queremos
submeter a causa do espiritualismo a uma questão de fisiologia controvertida, e
sobre a qual nos poderiam recusar em bom direito. O sentido íntimo me revela a
existência da alma com uma autoridade bem diversa. Ainda que o materialismo
fisiológico fosse tão verdadeiro quanto é discutível, nem por isso nossas
convicções espiritualistas ficariam menos inteiras. Fortalecido pelo testemunho
do senso íntimo, confirmado pelo assentimento de mil gerações que se sucederam
na Terra, repetiríamos o velho adágio: A verdade não destrói a verdade,
e esperaríamos que a conciliação se fizesse com o tempo. Mas, de que peso não
nos sentimos aliviados quando vemos que, para negar a alma e dar esta
declaração como um resultado da Ciência, o sábio, por confissão própria, partiu
metodicamente dessa ideia de que a alma não existe!
Lemos muitos livros de fisiologia, em geral muito mal
escritos; o que nos chamou a atenção foi o vício constante dos raciocínios do
fisiologista organicista, quando sai do seu assunto para se fazer filósofo. Vemos
constantemente tomar um efeito por uma causa, uma faculdade por uma substância,
um atributo por um ser, confundir as existências e as forças etc., e raciocinar
em consequência. Dir-se-ia uma aposta. Algumas vezes ele transpõe distâncias
incríveis sem desconfiar do caminho que faz. Que espírito exato e claro, por
exemplo, jamais pôde compreender esse pensamento tão conhecido de Cabanis e de
Broussais, que “o cérebro produz, secreta o pensamento?” Outras vezes, o
homem positivo, o homem da ciência, o homem da observação e dos fatos, nos dirá
seriamente que o cérebro “armazena as ideias.” Ainda um pouco, ele as
desenhará. É metáfora ou mixórdia?
Jamais será pedido à ciência natural que tome partido
pró ou contra a alma humana; mas por que ela não se resolve a ignorar o que não
é objeto de suas investigações? Com que direito ousa jurar que não há nada
depois dela, após ter decretado não querer vê-la? Por que não guarda um pouco
dessa reserva, que nos convém tão bem a todos, sobretudo aos que têm a
pretensão de não avançar senão com certeza? Com que autoridade o anatomista
poderá declarar que a alma não existe, porque não a encontrou sob o seu
escalpelo? Pelo menos começou ele a demonstrar rigorosamente, cientificamente,
por experiências e por fatos, segundo o método que preconiza, que o seu
escalpelo pode atingir tudo, até mesmo um princípio imaterial?
Seja como for com todas estas questões, o materialismo,
dizendo-se científico, sem por isto valer mais, se espalha à luz do dia e nos
deixa ver o que seria o direito materialista. Ai! O estado social materialista
nos ofereceria um bem triste e vergonhoso espetáculo. Antes de mais, uma coisa
é certa: se o homem não existe senão por seu organismo, essa massa material e automática,
em que doravante se tornará todo homem, provido de um encéfalo para secretar ideias,
será irresponsável por todos os movimentos que produzir[2].
Com ela não será preciso que o encéfalo de uma outra massa material se decida a
secretar ideias de justiça ou de injustiça; porque essas ideias de justiça ou
de injustiça só são aplicáveis a uma força livre, existente por si mesma, capaz
de querer e de se abster. Não se contesta a torrente ou a avalanche.
Então a liberdade, isto é, a vontade de agir ou não
agir, não existirá aqui, nem tampouco o direito. Nesse estado, todas as forças
terão um pleno e absoluto poder de expansão. Tudo será legítimo, lícito,
permitido, mesmo ordenado, digamos; porque é claro que tudo faz que não seja o
ato de uma vontade livre, que não se produz como um ato moralmente obrigatório
ou moralmente proibido; é um fato obrigado, que bem pode vir chocar-se com um fato
contrário do mesmo caráter, mas que cai como todos os fatos físicos, sob o
império inelutável das leis naturais.
Basta expor tais ideias para lhes fazer justiça. É o sistema
de Espinoza, que muito resolutamente estabeleceu o princípio do direito da
força. Os fortes, diz Espinoza, são feitos para subjugar os fracos, como os
peixes para nadar e os maiores para comer os menores. No sistema materialista,
o que seria chamado direito não poderia ter um princípio diferente. Mas que
homem dotado de senso ousaria confessar tal sistema que, por si só, bastaria para
refutar o materialismo, pois que dele decorre necessariamente? Querem,
entretanto, que esse princípio da força se ache, de fato, limitado por si
mesmo? Nada será ganho, ou quase nada, com esse flagrante desmentido do
princípio. Admitamos, se quiserem, que a substância pensante (continuamos a
falar a língua dos materialistas) se combine nos indivíduos para regularizar
essa expansão da força; a que chegará? No máximo a um conjunto de regras que
terão por base o interesse e, ainda, como não há outras leis senão as leis da
matéria, essa legislação não terá nenhum caráter obrigatório; cada um poderá
infringi-la se sua matéria pensante lhe aconselhar e se sua força lhe permitir.
Assim, nesta singular doutrina, não se teria nem mesmo um estado social
construído sobre o plano da triste sociedade de Hobbes.
Não falamos ainda senão das condições primeiras de todo
estado social. Mas, em toda sociedade civil, consagra-se a propriedade
individual; contrata-se, vende-se, aluga-se, associa-se etc. O casamento funda
a família; daí nasce toda uma ordem nova de relações. Pela educação do lar e
pela educação pública, perpetuam-se as tradições. Assim se forma o espírito
nacional e se desenvolve a civilização. Nossa sociedade materialista terá o seu
direito civil? Impossível supô-lo, porquanto o direito civil, em seu conjunto,
tem por princípio a justiça, e a justiça não pode ser senão uma palavra, ou uma
contradição, numa doutrina que só conhece a matéria e as propriedades da
matéria. Chega-se assim, inevitavelmente, a concluir (a menos que delirando a
propósito) que o estado civil da sociedade materialista é o estado de bestialidade.
Nada dizemos em demasia quando avançamos que o materialismo
é destrutivo, não de tal moral, mas de toda moral; não de tal estado civil, mas
de todo estado civil, de toda sociedade. É preciso recuar com ele além das
regiões da barbárie, além da selvageria. Deve-se proscrevê-lo por isto? Que
Deus não o permita. Reconhecido o seu caráter, não pediríamos, nada obstante,
que o seu ensino fosse interditado; nós o defenderíamos, se necessário, contra
toda restrição pela força, desde que o professor não falasse senão em seu
próprio nome. A liberdade nos é tão cara (os leitores deste jornal o sabem);
traz consigo tais benefícios; temos tal confiança no bom-senso público, que não
conceberíamos nenhuma inquietação por ver toda cátedra, toda tribuna aberta a todas
as ideias.
Mas a questão já não se apresentaria nos mesmos termos
se acontecesse que o professor falasse numa cátedra do Estado, retribuída pelo
orçamento. Com ou sem razão, o Estado ensina. Pode ensinar doutrinas cujas consequências
mais imediatas sejam destrutivas do Estado? Ficará ao arbítrio do professor
fazer o Estado endossar todas as doutrinas que puder conceber? A questão não é
simples. Os professores do Estado são funcionários públicos; seu ensino não
pode ser e não é senão um ensino oficial. O estado é responsável pelo que
dizem; responde perante a juventude e as famílias. Se com as grandes
palavras de independência do professorado recusássemos seu controle,
far-nos-íamos opressores do Estado, pela mais hipócrita das opressões, porque
levaríamos à sua conta doutrinas que ele desaprova.
Sem dúvida a autoridade superior deve aos seus professores,
muitas vezes envelhecidos pelo estudo, cuidados, considerações e uma grande
confiança, como deve aos seus generais, aos seus administradores e aos seus
magistrados; mas ela não lhes deve o sacrifício do mandato, quando é de
presumir-se que comande o país. O professor não é mais independente do Estado do
que o general que pretendesse comandar uma insurreição.
H. Thiercelin
Nenhum comentário:
Postar um comentário