quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

PAIXÕES[1]




Miramez

Visto que o princípio das paixões está na Natureza, ele é mau em si mesmo?
Não, a paixão está no excesso acrescentado à vontade, porque o princípio foi dado ao homem para o bem, e as paixões podem levá-lo a grandes coisas, sendo o abuso que delas se faz que causa o mal.
Questão 907/Livro dos Espíritos

As paixões em si constituem força poderosa que podem levar o homem a grandes realizações.
É bom que se saiba do valor dos princípios das paixões, que não deixam de ser força a ativar o amor e a caridade, o bem em todos os ângulos da vida. O que se acrescenta nelas de exagero é que as coloca como sentimentos inferiores, tornando o homem malfeitor.
A Doutrina dos Espíritos nos leva a compreender todas as forças que podem cercar a personalidade, dando meios às almas para compreender como usar todas essas possibilidades benfeitoras que o bem sempre conduz. A paixão está no excesso que a vontade delibera. O mundo e as criaturas precisam muito de esclarecimento e, principalmente, dos ensinamentos do Evangelho, compreendendo que, por ele, se educarão melhor todos os seus sentimentos.
O princípio das paixões, que foi colocado no homem, como origem desse sentimento, o foi para impulsionar o bem, pela força do amor. Entretanto, isso foi mal compreendido pela ignorância e o uso ultrapassa o que não deveria.
É bom que observemos com mais profundidade que as paixões se desenvolveram exageradamente em todos os setores da atividade humana. As religiões fizeram-se instrumentos das paixões para adorar a Deus por variadas formas, capazes de fazer o ser humano esquecer o próprio Criador. Jesus, sabendo disto, disse com presteza, desta maneira registrada por João, no capítulo quatro, versículo vinte e um:
Disse-lhe Jesus: Mulher, podes crer-me, que a hora vem, quando nem neste monte, nem em Jerusalém adorareis o Pai.
O Mestre cortou pela raiz a paixão dos incompreendidos, pedindo para adorarem a Deus em Espírito e verdade, orando secretamente, na intimidade do coração. As imagens de escultura, os deuses forjados pelos homens e os lugares sagrados, desapareceram com Jesus, porque Ele nos mostra que o Supremo Senhor se encontra dentro da consciência de cada um.
Se começas a apaixonar-te pelo bem, medita no amor verdadeiro; se te apaixonares pela caridade, consulta o bom senso; se te apaixonas pelo trabalho, busca a razão, para o equilíbrio das tuas forças. Não deixes que as paixões atinjam a inferioridade, para que não respondas por seres envolvido por elas, criando para os teus caminhos dificuldades maiores. Lembra-te de que as paixões podem levar-te a grandes realizações, se elas forem disciplinadas pelo conhecimento em Cristo. Aprende a ter conduta reta, pois a vida é reta em todos os ângulos.
Confia na natureza, que ela evidencia corresponder a essa confiança, a cada momento.
A paixão em si não complica a nossa vida; ela nos faz mal no campo do excesso. Apaixonemo-nos pela alegria, mas não nos deixemos tomar pelo escândalo. A vida é harmonia e fé. Vivendo nas linhas do Cristo, teremos uma tranquilidade imperturbável no coração e na consciência.




[1] Filosofia Espírita- Volume 18 – João Nunes Maia

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

CÓDIGO PENAL DA VIDA FUTURA[1]




O Espiritismo não vem, pois, com sua autoridade privada, formular um código de fantasia; a sua lei, no que respeita ao futuro da alma, deduzida das observações do fato, pode resumir-se nos seguintes pontos:
1º — A alma ou Espírito sofre na vida espiritual as consequências de todas as imperfeições que não conseguiu corrigir na vida corporal. O seu estado, feliz ou desgraçado, é inerente ao seu grau de pureza ou impureza.
2º — A completa felicidade prende-se à perfeição, isto é, à purificação completa do Espírito. Toda imperfeição é, por sua vez, causa de sofrimento e de privação de gozo, do mesmo modo que toda perfeição adquirida é fonte de gozo e atenuante de sofrimentos.
3º — Não há uma única imperfeição da alma que não importe funestas e inevitáveis consequências, como não há uma só qualidade boa que não seja fonte de um gozo.
A soma das penas é, assim, proporcionada à soma das imperfeições, como a dos gozos à das qualidades.
A alma que tem dez imperfeições, por exemplo, sofre mais do que a que tem três ou quatro; e quando dessas dez imperfeições não lhe restar mais que metade ou um quarto, menos sofrerá.
De todo extintas, então a alma será perfeitamente feliz.
Também na Terra, quem tem muitas moléstias, sofre mais do que quem tenha apenas uma ou nenhuma. Pela mesma razão, a alma que possui dez perfeições, tem mais gozos do que outra menos rica de boas qualidades.
4º — Em virtude da lei do progresso que dá a toda alma a possibilidade de adquirir o bem que lhe falta, como de despojar-se do que tem de mau, conforme o esforço e vontade próprios, temos que o futuro é aberto a todas as criaturas.
Deus não repudia nenhum de seus filhos, antes recebe-os em seu seio à medida que atingem a perfeição, deixando a cada qual o mérito das suas obras.
5º — Dependendo o sofrimento da imperfeição, como o gozo da perfeição, a alma traz consigo o próprio castigo ou prêmio, onde quer que se encontre, sem necessidade de lugar circunscrito.
O inferno está por toda parte em que haja almas sofredoras, e o céu igualmente onde houver almas felizes.
6º — O bem e o mal que fazemos decorrem das qualidades que possuímos. Não fazer o bem quando podemos é, portanto, o resultado de uma imperfeição. Se toda imperfeição é fonte de sofrimento, o Espírito deve sofrer não somente pelo mal fez como pelo bem que deixou de fazer na vida terrestre.
7º — O Espírito sofre pelo mal que fez, de maneira que, sendo a sua atenção constantemente dirigida para as consequências desse mal, melhor compreende os seus inconvenientes e trata de corrigir-se.
8º — Sendo infinita a justiça de Deus, o bem e o mal são rigorosamente considerados, não havendo uma só ação, um só pensamento mau que não tenha consequências fatais, como não há uma única ação meritória, um só bom movimento da alma que se perca, mesmo para os mais perversos, por isso que constituem tais ações um começo de progresso.
9º — Toda falta cometida, todo mal realizado é uma dívida contraída que deverá ser paga; se o não for em uma existência, sê-lo-á na seguinte ou seguintes, porque todas as existências são solidárias entre si. Aquele que se quita numa existência não terá necessidade de pagar segunda vez.
10º — O Espírito sofre, quer no mundo corporal, quer no espiritual, a consequência das suas imperfeições. As misérias, as vicissitudes padecidas na vida corpórea, são oriundas das nossas imperfeições, são expiações de faltas cometidas na presente ou em precedentes existências.
Pela natureza dos sofrimentos e vicissitudes da vida corpórea, pode julgar-se a natureza das faltas cometidas em anterior existência, e das imperfeições que as originaram.
11º — A expiação varia segundo a natureza e gravidade da falta, podendo, portanto, a mesma falta determinar expiações diversas, conforme as circunstâncias, atenuantes ou agravantes, em que for cometida.
12º — Não há regra absoluta nem uniforme quanto à natureza e duração do castigo: — a única lei geral é que toda falta terá punição, e terá recompensa todo ato meritório, segundo o seu valor.
13º — A duração do castigo depende da melhoria do Espírito culpado. Nenhuma condenação por tempo determinado lhe é prescrita. O que Deus exige por termo de sofrimentos é um melhoramento sério, efetivo, sincero, de volta ao bem.
Deste modo o Espírito é sempre o árbitro da própria sorte, podendo prolongar os sofrimentos pela pertinácia no mal, ou suavizá-los e anulá-los pela prática do bem.
Uma condenação por tempo predeterminado teria o duplo inconveniente de continuar o martírio do Espírito renegado, ou de libertá-lo do sofrimento quando ainda permanecesse no mal. Ora, Deus, que é justo, só pune o mal enquanto existe, e deixa de o punir quando não existe mais[2]; por outra, o mal moral, sendo por si mesmo causa de sofrimento, fará este durar enquanto subsistir aquele, ou diminuirá de intensidade à medida que ele decresça.
14º — Dependendo da melhoria do Espírito a duração do castigo, o culpado que jamais melhorasse sofreria sempre, e, para ele, a pena seria eterna.
15º — Uma condição inerente à inferioridade dos Espíritos é não lobrigarem o termo da provação, acreditando-a eterna, como eterno lhes parece deva ser um tal castigo[3].
16º — O arrependimento, conquanto seja o primeiro passo para a regeneração, não basta por si só; são precisas a expiação e a reparação.
Arrependimento, expiação e reparação constituem, portanto, as três condições necessárias para apagar os traços de uma falta e suas consequências. O arrependimento suaviza os travos da expiação, abrindo pela esperança o caminho da reabilitação; só a reparação, contudo, pode anular o efeito destruindo-lhe a causa. Do contrário, o perdão seria uma graça, não uma anulação.
17º — O arrependimento pode dar-se por toda parte e em qualquer tempo; se for tarde, porém, o culpado sofre por mais tempo. Até que os últimos vestígios da falta desapareçam, a expiação consiste nos sofrimentos físicos e morais que lhe são consequentes, seja na vida atual, seja na vida espiritual após a morte, ou ainda em nova existência corporal.
A reparação consiste em fazer o bem àqueles a quem se havia feito o mal. Quem não repara os seus erros numa existência, por fraqueza ou má vontade, achar-se-á numa existência ulterior em contato com as mesmas pessoas que de si tiverem queixas, e em condições voluntariamente escolhidas, de modo a demonstrar-lhes reconhecimento e fazer-lhes tanto bem quanto mal lhes tenha feito. Nem todas as faltas acarretam prejuízo direto e efetivo; em tais casos a reparação se opera, fazendo-se o que se deveria fazer e foi descurado; cumprindo os deveres desprezados, as missões não preenchidas; praticando o bem em compensação ao mal praticado, isto é, tornando-se humilde se se tem sido orgulhoso, amável se se foi austero, caridoso se se tem sido egoísta, benigno se se tem sido perverso, laborioso se se tem sido ocioso, útil se se tem sido inútil, frugal se se tem sido intemperante, trocando em suma por bons os maus exemplos perpetrados. E desse modo progride o Espírito, aproveitando-se do próprio passado[4].
18º — Os Espíritos imperfeitos são excluídos dos mundos felizes, cuja harmonia perturbariam. Ficam nos mundos inferiores a expiarem as suas faltas pelas tribulações da vida, e purificando-se das suas imperfeições até que mereçam a encarnação em mundos mais elevados, mais adiantados moral e fisicamente. Se se pode conceber um lugar circunscrito de castigo, tal lugar é, sem dúvida, nesses mundos de expiação, em torno dos quais pululam Espíritos imperfeitos, desencarnados à espera de novas existências que lhes permitam reparar o mal, auxiliando-os no progresso.
19º — Como o Espírito tem sempre o livre-arbítrio, o progresso por vezes se lhe torna lento, e tenaz a sua obstinação no mal. Nesse estado pode persistir anos e séculos, vindo por fim um momento em que a sua contumácia se modifica pelo sofrimento, e, a despeito da sua jactância, reconhece o poder superior que o domina.
Então, desde que se manifestam os primeiros vislumbres de arrependimento, Deus lhe faz entrever a esperança. Nem há Espírito incapaz de nunca progredir, votado a eterna inferioridade, o que seria a negação da lei de progresso, que providencialmente rege todas as criaturas.
20º — Quaisquer que sejam a inferioridade e perversidade dos Espíritos, Deus jamais os abandona. Todos têm seu anjo de guarda (guia) que por eles vela, na persuasão de suscitar-lhes bons pensamentos, desejos de progredir e, bem assim, de espreitar-lhes os movimentos da alma, com o que se esforçam por reparar em uma nova existência o mal que praticaram. Contudo, essa interferência do guia faz-se quase sempre ocultamente e de modo a não haver pressão, pois que o Espírito deve progredir por impulso da própria vontade, nunca por qualquer sujeição.
O bem e o mal são praticados em virtude do livre-arbítrio, e, conseguintemente, sem que o Espírito seja fatalmente impelido para um ou outro sentido.
Persistindo no mal, sofrerá as consequências por tanto tempo quanto durar a persistência, do mesmo modo que, dando um passo para o bem, sente imediatamente benéficos efeitos.
OBSERVAÇÃO — Erro seria supor que, por efeito da lei de progresso, a certeza de atingir cedo ou tarde a perfeição e a felicidade pode estimular a perseverança no mal, sob a condição do ulterior arrependimento: primeiro porque o Espírito inferior não se apercebe do termo da sua situação; e segundo porque, sendo ele o autor da própria infelicidade, acaba por compreender que de si depende o fazê-la cessar; que por tanto tempo quanto perseverar no mal será infeliz; finalmente, que o sofrimento será intérmino se ele próprio não lhe der fim. Seria, pois, um cálculo negativo, cujas consequências o Espírito seria o primeiro a reconhecer. Com o dogma das penas irremissíveis é que se verifica, precisamente, tal hipótese, visto como é para sempre interdita qualquer ideia de esperança, não tendo pois o homem interesse em converter-se ao bem, para ele sem proveito.
Diante dessa lei, cai também a objeção extraída da presciência divina, pois Deus, criando uma alma, sabe efetivamente se, em virtude do seu livre-arbítrio, ela tomará a boa ou a má estrada; sabe que ela será punida se fizer o mal; mas sabe também que tal castigo temporário é um meio de fazê-la compreender o erro, cedo ou tarde entrando no bom caminho. Pela doutrina das penas eternas conclui-se que Deus sabe que essa alma falirá e, portanto, que está previamente condenada a torturas infinitas.
21º — A responsabilidade das faltas é toda pessoal, ninguém sofre por erros alheios, salvo se a eles deu origem, quer provocando-os pelo exemplo, quer não os impedindo quando poderia fazê-lo.
Assim, o suicida é sempre punido; mas aquele que por maldade impele outro a cometê-lo, esse sofre ainda maior pena.
22º — Conquanto infinita a diversidade de punições, algumas há inerentes à inferioridade dos Espíritos, e cujas consequências, salvo pormenores, são pouco mais ou menos idênticas.
A punição mais imediata, sobretudo entre os que se acham ligados à vida material em detrimento do progresso espiritual, faz-se sentir pela lentidão do desprendimento da alma; nas angústias que acompanham a morte e o despertar na outra vida, na consequente perturbação que pode dilatar-se por meses e anos.
Naqueles que, ao contrário, têm pura a consciência e na vida material já se acham identificados com a vida espiritual, o trespasse é rápido, sem abalos, quase nula a turbação de um pacífico despertar.
23º — Um fenômeno mui frequente entre os Espíritos de certa inferioridade moral é o acreditarem-se ainda vivos, podendo esta ilusão prolongar-se por muitos anos, durante os quais eles experimentarão todas as necessidades, todos os tormentos e perplexidades da vida.
24º — Para o criminoso, a presença incessante das vítimas e das circunstâncias do crime é um suplício cruel.
25º — Espíritos há mergulhados em densa treva; outros se encontram em absoluto insulamento no Espaço, atormentados pela ignorância da própria posição, como da sorte que os aguarda. Os mais culpados padecem torturas muito mais pungentes por não lhes entreverem um termo.
Alguns são privados de ver os seres queridos, e todos, geralmente, passam com intensidade relativa pelos males, pelas dores e privações que a outrem ocasionaram. Esta situação perdura até que o desejo de reparação pelo arrependimento lhes traga a calma para entrever a possibilidade de, por eles mesmos, pôr um termo à sua situação.
26º — Para o orgulhoso relegado às classes inferiores, é suplício ver acima dele colocados, cheios de glória e bem--estar, os que na Terra desprezara. O hipócrita vê desvendados, penetrados e lidos por todo o mundo os seus mais secretos pensamentos, sem que os possa ocultar ou dissimular; o sátiro, na impotência de os saciar, tem na exaltação dos bestiais desejos o mais atroz tormento; vê o avaro o esbanjamento inevitável do seu tesouro, enquanto que o egoísta, desamparado de todos, sofre as consequências da sua atitude terrena; nem a sede nem a fome lhe serão mitigadas, nem amigas mãos se lhe estenderão às suas mãos súplices; e pois que em vida só de si cuidara, ninguém dele se compadecerá na morte.
27º — O único meio de evitar ou atenuar as consequências futuras de uma falta, está no repará-la, desfazendo-a no presente. Quanto mais nos demorarmos na reparação de uma falta, tanto mais penosas e rigorosas serão, no futuro, as suas consequências.
28º — A situação do Espírito, no mundo espiritual, não é outra senão a por si mesmo preparada na vida corpórea.
Mais tarde, outra encarnação se lhe faculta para novas provas de expiação e reparação, com maior ou menor proveito, dependentes do seu livre-arbítrio; e se ele não se corrige, terá sempre uma missão a recomeçar, sempre e sempre mais acerba, de sorte que pode dizer-se que aquele que muito sofre na Terra, muito tinha a expiar; e os que gozam uma felicidade aparente, em que pesem aos seus vícios e inutilidades, pagá-la-ão mui caro em ulterior existência.
Nesse sentido foi que Jesus disse: — “Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados”. (O
Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V.)
29º — Certo, a misericórdia de Deus é infinita, mas não é cega. O culpado que ela atinge não fica exonerado, e, enquanto não houver satisfeito à justiça, sofre a consequência dos seus erros. Por infinita misericórdia, devemos ter que Deus não é inexorável, deixando sempre viável o caminho da redenção.
30º — Subordinadas ao arrependimento e reparação dependentes da vontade humana, as penas, por temporárias, constituem concomitantemente castigos e remédios auxiliares à cura do mal. Os Espíritos, em prova, não são, pois, quais galés por certo tempo condenados, mas como doentes de hospital sofrendo de moléstias resultantes da própria incúria, a compadecerem-se com meios curativos mais ou menos dolorosos que a moléstia reclama, esperando alta tanto mais pronta quanto mais estritamente observadas as prescrições do solícito médico assistente. Se os doentes, pelo próprio descuido de si mesmos, prolongam a enfermidade, o médico nada tem que ver com isso.
31º — Às penas que o Espírito experimenta na vida espiritual ajuntam-se as da vida corpórea, que são consequentes às imperfeições do homem, às suas paixões, ao mau uso das suas faculdades e à expiação de presentes e passadas faltas. É na vida corpórea que o Espírito repara o mal de anteriores existências, pondo em prática resoluções tomadas na vida espiritual. Assim se explicam as misérias e vicissitudes mundanas que, à primeira vista, parecem não ter razão de ser. Justas são elas, no entanto, como espólio do passado — herança que serve à nossa romagem para a perfectibilidade[5].
32º — Deus, diz-se, não daria prova maior de amor às suas criaturas, criando-as infalíveis e, por conseguinte, isentas dos vícios inerentes à imperfeição? Para tanto fora preciso que Ele criasse seres perfeitos, nada mais tendo a adquirir, quer em conhecimentos, quer em moralidade. Certo, porém, Deus poderia fazê-lo, e se o não fez é que em sua sabedoria quis que o progresso constituísse lei geral. Os homens são imperfeitos, e, como tais, sujeitos a vicissitudes mais ou menos penosas. E pois que o fato existe, devemos aceitá-lo.
Inferir dele que Deus não é bom nem justo, fora insensata revolta contra a lei.
Injustiça haveria, sim, na criação de seres privilegiados, mais ou menos favorecidos, fruindo gozos que outros porventura não atingem senão pelo trabalho, ou que jamais pudessem atingir. Ao contrário, a justiça divina patenteia-se na igualdade absoluta que preside à criação dos Espíritos; todos têm o mesmo ponto de partida e nenhum se distingue em sua formação por melhor aquinhoado; nenhum cuja marcha progressiva se facilite por exceção: os que chegam ao fim, têm passado, como quaisquer outros, pelas fases de inferioridade e respectivas provas.
Isto posto, nada mais justo que a liberdade de ação a cada qual concedida. O caminho da felicidade a todos se abre amplo, como a todos as mesmas condições para atingi-la. A lei, gravada em todas as consciências, a todos é ensinada. Deus fez da felicidade o prêmio do trabalho e não do favoritismo, para que cada qual tivesse seu mérito.
Todos somos livres no trabalho do próprio progresso, e o que muito e depressa trabalha, mais cedo recebe a recompensa.
O romeiro que se desgarra, ou em caminho perde tempo, retarda a marcha e não pode queixar-se senão de si mesmo.
O bem como o mal são voluntários e facultativos: livre, o homem não é fatalmente impelido para um nem para outro.
33º — Em que pese à diversidade de gêneros e graus de sofrimentos dos Espíritos imperfeitos, o código penal da vida futura pode resumir-se nestes três princípios:
1º — O sofrimento é inerente à imperfeição.
2º — Toda imperfeição, assim como toda falta dela promanada, traz consigo o próprio castigo nas consequências naturais e inevitáveis: assim, a moléstia pune os excessos e da ociosidade nasce o tédio, sem que haja mister de uma condenação especial para cada falta ou indivíduo.
3º — Podendo todo homem libertar-se das imperfeições por efeito da vontade, pode igualmente anular os males consecutivos e assegurar a futura felicidade.

A cada um segundo as suas obras, no Céu como na Terra: — tal é a lei da Justiça Divina.





[1] O Céu e o Inferno ou Justiça Divina Segundo o Espiritismo – Allan Kardec
[2] Vede cap. VI, nº 25, citação de Ezequiel.
[3] Perpétuo é sinônimo de eterno. Diz-se o limite das neves perpétuas; o eterno gelo dos polos; também se diz o secretário perpétuo da Academia, o que não significa que o seja ad perpetuam, mas unicamente por tempo ilimitado. Eterno e perpétuo se empregam, pois, no sentido de indeterminado. Nesta acepção pode dizer-se que as penas são eternas, para exprimir que não têm duração limitada; eternas, portanto, para o Espírito que lhes não vê o termo.
[4] A necessidade da reparação é um princípio de rigorosa justiça, que se pode considerar verdadeira lei de reabilitação moral dos Espíritos. Entretanto, essa doutrina religião alguma ainda a proclamou. Algumas pessoas repelem-na porque acham mais cômodo o poder quitarem-se das más ações por um simples arrependimento, que não custa mais que palavras, por meio de algumas fórmulas; contudo, crendo-se, assim, quites, verão mais tarde se isso lhes bastava. Nós poderíamos perguntar se esse princípio não é consagrado pela lei humana, e se a justiça divina pode ser inferior à dos homens? E mais, se essas leis se dariam por desafrontadas desde que o indivíduo que as transgredisse, por abuso de confiança, se limitasse a dizer que as respeita infinitamente. Por que hão de vacilar tais pessoas perante uma obrigação que todo homem honesto se impõe como dever, segundo o grau de suas forças? Quando esta perspectiva de reparação for inculcada na crença das massas, será um outro freio aos seus desmandos, e bem mais poderoso que o inferno e respectivas penas eternas, visto como interessa à vida em sua plena atualidade, podendo o homem compreender a procedência das circunstâncias que a tornam penosa, ou a sua verdadeira situação.
[5] Vede 1ª Parte, cap. V, “O purgatório”, nº 3 e seguintes; e, após, 2ª Parte, cap. VIII, “Expiações terrestres”. Vede, também, O Evangelho segundo o Espiritismo, cap. V, “Bem-aventurados os aflitos”.

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

UMA TENTAÇÃO[1]




Conhecemos pessoalmente uma senhora, médium dotada de notável faculdade tiptológica: obtém facilmente e, o que é bastante raro, quase constantemente, coisas de precisão, como nome de lugares e de pessoas em diversas línguas, datas e fatos particulares, em presença dos quais a incredulidade foi confundida mais de uma vez.
Essa senhora, inteiramente devotada à causa do Espiritismo, consagra todo o tempo disponível ao exercício de sua faculdade, com o objetivo de propaganda, e isto com um desinteresse tanto mais louvável quanto a sua posição de fortuna chega muito perto da mediocridade. Como o Espiritismo, para ela, é uma coisa séria, começa sempre por uma prece, dita com o maior recolhimento, para atrair o concurso dos Espíritos bons, rogar a Deus que afaste os maus, e termina assim: Se eu for tentada a abusar, seja no que for, da faculdade que Deus houve por bem me conceder, peço-lhe que ma retire, antes que seja desviada de seu objetivo providencial.
Certo dia, um rico estrangeiro – foi ele mesmo que nos narrou o fato – procurou essa senhora para lhe pedir que desse uma comunicação. Ele não tinha a menor noção do Espiritismo e ainda menos a crença. Pondo a carteira sobre a mesa, disse-lhe: Senhora, eis aqui dez mil francos que vos dou, se disserdes o nome da pessoa em quem estou pensando. Basta isto para mostrar aonde chegava o seu conhecimento da doutrina. A respeito, fez-lhe a médium observações que todo espírita verdadeiro faria em semelhante caso. Mesmo assim, tentou, mas nada obteve. Ora, logo depois da partida desse senhor ela recebeu, para outras pessoas, comunicações muito mais difíceis e complicadas do que a que ele lhe havia pedido.
Para esse senhor o fato deveria ser, conforme lhe dissemos, uma prova da sinceridade e da boa-fé da médium, porque os charlatães sempre têm recursos à sua disposição, quando se trata de ganhar dinheiro. Mas do fato resultam vários ensinamentos de outra gravidade. Os Espíritos quiseram provar-lhe que não é com dinheiro que os fazem falar, quando não querem; além disso, provaram que se não tinham respondido à pergunta, não fora por impossibilidade da parte deles, já que disseram, depois, coisas mais difíceis a pessoas que nada ofereciam. A lição era maior ainda para o médium; era demonstrar-lhe sua absoluta impotência sem o concurso deles e lhe ensinar a humildade, porque, se os Espíritos tivessem estado às suas ordens, se bastasse a sua vontade para fazê-los falar, era o caso de exercer o poder agora ou jamais.
Eis aí uma prova manifesta em apoio do que dissemos na Revista Espírita de fevereiro último, a propósito do Sr. Home, sobre a impossibilidade em que se acham os médiuns de contar com uma faculdade que poderia faltar-lhes no momento em que lhes fosse necessária. Aquele que possui um talento e que o explora está sempre certo de tê-lo à sua disposição, porque é inerente à sua pessoa; mas a mediunidade não é um talento; só existe pelo concurso de terceiros; se esses terceiros se recusam, não há mais mediunidade. A aptidão pode subsistir, mas o seu exercício está anulado. Um médium sem a assistência dos Espíritos é como um violinista sem violino.
O senhor em questão admirou-se que, tendo vindo para se convencer, os Espíritos não se tivessem prestado para tanto; a isto lhe respondemos que, se pode ser convencido, sê-lo-á por outros meios, que nada lhe custarão. Os Espíritos não quiseram que ele pudesse dizer que fora convencido a peso de ouro, porque se o ouro fosse necessário para convencer, o que fariam os que não podem pagar? É para que a crença possa penetrar nos mais humildes redutos que a mediunidade não é um privilégio; acha-se em toda parte, a fim de que todos, pobres e ricos, possam ter a consolação de se comunicar com os parentes e amigos do além-túmulo.
Os Espíritos não quiseram que ele fosse convencido dessa maneira, porque o barulho que isto tivesse provocado teria falseado sua própria opinião e a de seus amigos quanto ao caráter essencialmente moral e religioso do Espiritismo. Eles não o quiseram no interesse do médium e dos médiuns em geral, cuja cupidez esse resultado teria superexcitado, porquanto diriam que se tiveram êxito naquela circunstância, podiam tê-lo igualmente em outras. Não é a primeira vez que foram feitas ofertas semelhantes, que prêmios são oferecidos, mas sempre sem sucesso, levando-se em conta que os Espíritos não dão o seu concurso nem se entregam a quem paga melhor.
Se essa senhora tivesse tido êxito, teria aceitado ou recusado? Ignoramos, porque dez mil francos são bastante sedutores, sobretudo em certas posições. Em todo o caso, a tentação foi grande. E quem sabe se a recusa não teria sido seguida de um pesar, que lhe tivesse atenuado o mérito? Notemos que, em sua prece, ela pede a Deus que lhe retire sua faculdade antes que seja tentada a desviá-la de seu objetivo providencial. Pois bem! Sua prece foi atendida; a mediunidade lhe foi retirada para esse caso especial, a fim de lhe poupar o perigo da tentação e todas as consequências lamentáveis que se lhe teriam seguido, primeiro para ela própria, e depois pelo efeito deletério que isto teria produzido.
Mas não é só contra a cupidez que os médiuns devem resguardar-se. Como os há em todas as camadas da sociedade, a maioria está acima desta tentação; mas há um perigo muito maior, pois a ele todos estão expostos: o orgulho, que põe a perder tão grande número. É contra esse escolho que as mais belas faculdades muitas vezes vêm aniquilar-se. O desinteresse material não tem proveito se não for acompanhado pelo mais completo desinteresse moral. Humildade, devotamento, desinteresse e abnegação são as qualidades do médium amado pelos Espíritos bons.




[1] Revista Espírita – Março/1864 – Allan Kardec

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

Jésus Gonçalves[1]




Jésus Gonçalves, nascido em 12/07/1902 em Borebi-SP (próximo à Agudos), ficou órfão de mãe aos 3 anos e seu pai era uma humilde lavrador.
Aos 14 anos empregou-se como trabalhador braçal na Fazenda Boa Vista, de Ângelo Pinheiro Machado. Nesta época começou a aprender música e junto com outros companheiros animavam as quermesses e bailes com a "Bandinha de Borebi".
Aos 17 anos foi para Bauru, onde frequentou o Colégio São José, mas não chegou ao menos a tirar o diploma do Ginásio.
Casou-se aos 20 anos com Theodomira de Oliveira, que era viúva e já tinha 2 filhas. Mesmo assim ainda tiveram mais 4 filhos. Nesta época empregava-se como Tesoureiro da Prefeitura.
Em 1930 sua esposa desencarna por causa de uma tuberculose. Apesar das enormes dificuldades em criar suas 6 crianças continuava a tocar e fazia parte da Banda da Prefeitura de Bauru como clarinetista.
Atuava também como Diretor e ator de teatro na cidade. Apesar de seu pouco estudo apreciava a poesia e prosa, colaborando ativamente nos jornais "Correio da Noroeste" e "Correio de Bauru".
Casou-se novamente, com Anita Vilela, vizinha que lhe ajudava a cuidar das crianças, mas, aos 27 anos foi acometido pela Hanseníase (Lepra). Anita era estudiosa da doutrina espírita e tentava, em vão, esclarecer a mente materialista do ateu Jésus.
Nestes tempos os doentes eram obrigados a abandonar seus empregos e viverem isolados da sociedade, trancados em suas casas ou então em leprosários. Como faria então para cuidar de sua esposa e das crianças? Aposentado prematuramente passa a viver em uma moradia cedida temporariamente pela Câmara Municipal. Apesar disso continua a escrever para o "Correio da Noroeste".
Seu compadre, João Martins Coube, cedeu-lhe o usufruto de um sítio, onde Jésus passou a cultivar melancias e outras frutas. Mas, em Agosto de 1933, o Serviço Sanitário recolhe-o, afastando-o do convívio de sua família, e internou-o no Asilo-Colônia Aymorés.
Por ter sido um homem resignado foi sempre líder, tolerante e calmo. Fundou o jornal interno "O Momento", a "Jazz Band de Aymorés" e a equipe de futebol. Por não receberem grupos artísticos no asilo, fundou também o grupo teatral interno.
Jésus sofria muito com problemas no fígado, buscava a transferência para o Hospital Padre Bento em Guarulhos. Mas suas cartas paravam nas mãos do Diretor do Sanatório Aymorés, que não queria perder seu mais ativo e dinâmico interno. Em 1937 conseguiu a transferência mas não conseguiu chegar até lá, as dores no fígado o obrigaram a parar em Itú, e ali ficou no Hospital de Pirapitinguí.
Fundou ali além da "Jazz Band", a Rádio Clube de Pirapitinguí (existente até hoje) e um jornal interno, o "Nosso Jornal".
Em 1943 Anita desencarnou, e no velório da mesma aconteceram diversos acontecimentos mediúnicos de clarividência de alguns colegas seus e finalmente Anita passou uma mensagem para ele de uma forma bastante íntima onde Jésus não teve dúvidas da veracidade das informações, um pequeno trecho: "Velho, não duvides mais, Deus existe!".
Por ser extremamente materialista buscou nos livros Espíritas as explicações para o contato.
A conversão de Jésus ocorreu de forma bastante convincente. Um dia, às voltas com suas dores no fígado, resolveu chamar aquele "Deus", e desafiou, tirando um pouco de água e colocando em um copo.
"‒ Se Deus existe mesmo, dou 5 minutos para que coloque nesta água um remédio que me alivie as dores que sinto". E contou no relógio.
Quando bebeu a água sentiu que estava totalmente amarga. Chamou um companheiro que confirmou a alteração da água. E após 2 minutos nada mais sentia em dores.
Fundou em 1945, após muito estudo, o Centro espírita Pirapitinguí, com dificuldades conseguiu recursos junto às comunidades espíritas para a construção do Centro. Diversas caravanas Espíritas passaram a visitar o sanatório, levando alegria e conforto aos internos.
Passou então a atender as incorporações de familiares e desobsessões severas daqueles considerados "loucos", permitindo a estes que voltasses à vida normal.
Vinte dias antes de desencarnar, com a doença já tendo lhe consumido todo o corpo, e também as cordas vocais, foi à sessão espírita e para a surpresa das 300 pessoas presentes, os mentores da casa devolveram-lhe a voz e aí fez uma preleção de quase 2 horas de elevados ensinamentos evangélicos. Ao término da preleção Jésus simplesmente perdeu novamente a voz.
E sofreu muito nos últimos dias, o seu corpo estava completamente deformado pela doença, seu rosto transfigurado e seus órgãos começaram a parar, e lentamente desligou-se do corpo físico. Mas teve tempo de saber que o sofrimento é o caminho que nos leva à Cristo, e que pôde mudar a mentalidade daqueles que consideravam os doentes internos de asilos, sanatórios e leprosários apenas como animais fedorentos.
Contam alguns, que ele acentuou seu nome (Jésus) por que não se achava em condições de ter o nome de Jesus. Jésus Gonçalves faleceu no dia 16/02/1947 em Itú-SP, com 44 anos de idade.

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2019

JEITO DE FALAR[1]




Orson Peter Carrara

O escritor Rubem Alves (www.rubemalves.com.br) publicou no Correio Popular, de Campinas, caderno C, página C-2, de 18 de julho de 2004, uma bela crônica intitulada O que é que você faria? Considerei-a muito oportuna. Embora longa (quase uma página), destaco ao leitor o teor principal. Ele traz uma estória no artigo e usa um exemplo médico, desculpando-se pela comparação, para citar como é importante a maneira de dizer as coisas ou se quisermos, como dizemos e a quem. Pois esta maneira pode destruir vidas e sonhos.
A história citada pelo escritor comenta o relacionamento de um casal que muito se ama.
Ela desenvolveu um câncer no seio e teve que extraí-lo, mas isso não abalou o relacionamento do casal, apesar das dores e aflições. Em cinco anos, o outro seio também foi afetado, mas o bom e amigo médico que antes a atendera já havia morrido.
Procuraram outro médico, mas este, completamente insensível às dores do casal e especialmente da mulher, ao vê-la sem um seio, já exclamou friamente: Mas a senhora já não tem um seio… Seu caso é muito mais grave do que eu imaginava.
E o escritor, comentando a própria estória, colocou em seu texto:
Fico a me perguntar. Por que é que ele falou o que falou? Não falou para informar mulher e marido de uma coisa que não soubessem. Eles sabiam que ela não tinha um seio. Também não falou para certificar-se de algo que estava vendo, mas não via bem, por ser ruim dos olhos, pois ele enxergava muito bem. E qual a razão do seu frio, imediato e cruel diagnóstico. Para que falou isso? Era necessário? Não, não era necessário. Seu diagnóstico em nada contribuiu para o tratamento daquela mulher. Ou será que ele falou assim por inocência? Não imaginava o veneno que suas palavras carregavam? Não imaginava o efeito de suas palavras sobre aquela mulher despida, sem um seio, humilhada, amedrontada. Se falou por inocência digo que o dito médico só pode ser um idiota que nada conhece sobre os seres humanos.

E continua:
Crueldade não é algo que somente existe nas câmaras de tortura. Ela se faz também com palavras. Há palavras cruéis que apagam a tênue chama da esperança. (…)

E pergunta em seguida:
(…) qual é o lugar, nos currículos de medicina, onde tanta coisa complicada se ensina, para uma meditação sobre a compaixão? É na compaixão que a ética se inicia e não nos livros de ética médica. Ah! Dirão os responsáveis pelos currículos – compaixão não é coisa científica. Não entra na descrição dos casos clínicos. Não pode ser comunicada em congressos. Portanto, não tem dignidade acadêmica. Certo. Mas acontece que não somos automóveis a serem consertados por mecânicos competentes. Somos seres humanos. Amamos a vida, queremos viver. Sofremos de dores físicas e de dores da alma: o medo, a solidão, a impotência, a morte. O que esse médico fez não tem conserto. Uma vez feito a ferida sangra. Palavras não podem ser recolhidas. O sofrimento foi plantado.(…)

E como indagou o autor em seu texto, deixo a pergunta para nós mesmos: o que é que faríamos na mesma situação? Claro que não especificamente como médico, pois o exemplo se aplica a qualquer outra ocorrência de relacionamentos humanos.
A situação traz à lembrança o capítulo X de O Evangelho Segundo o Espiritismo, intitulado Bem-aventurados os misericordiosos. No subtítulo “O argueiro e a trave no olho”, em lúcido texto, pondera o Codificador:
Um dos defeitos da Humanidade é ver o mal de outrem antes de ver o que está em nós. (…) Que pensaria eu se viesse alguém fazendo o que faço? Incontestavelmente é o orgulho que leva o homem a se dissimular os próprios defeitos, tanto ao moral como ao físico. Esse defeito é essencialmente contrário à caridade, porque a verdadeira caridade é modesta, simples e indulgente (…). Se o orgulho é o pai de muitos vícios, é também a negação de muitas virtudes; encontramo-lo no fundo e como móvel de quase todas as ações (…).

Nessa última palavra, podemos enquadrar as situações do exemplo acima, na questão médica e que pode ser transferida para qualquer outra situação, onde nos permitimos desprezar, discriminar, maltratar com palavras ou acentuar o sofrimento de alguém com nossa maneira de dizer…
Afinal, nada justifica a crueldade, ainda que em palavras.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

PAIXÕES HUMANAS[1]


Paul Cezanne - A barca de Dante

Miramez

Os Espíritos conservam algumas das paixões humanas?
Os Espíritos elevados, perdendo seu envoltório físico, deixam as más paixões e só guardam as do bem; quanto aos Espíritos inferiores, conservam-nas, pois, de outra forma, seriam da primeira ordem.
Questão 228/Livro dos Espíritos

O Espírito elevado, quando toma um corpo humano por missão, sob a influência de Jesus Cristo, quase sempre recebe a herança moral da família, entretanto, a sua pureza moral lhe dá qualidades e forças no sentido de se livrar de todas as influências negativas. É uma batalha, uma luta em que ele sai sempre vitorioso, podendo ser comprovado pelas vidas dos grandes missionários que estiveram na Terra.
A influência do meio, certamente, exerce uma pressão poderosa na alma que participa do ambiente mas, para tanto, Jesus nos deixou as armas adequadas para a defesa contra todas as investidas das trevas.
Há muitos Espíritos que, quando partem do mundo físico, levam para o espiritual as paixões que viveram na carne. São Espíritos inferiores que, em muitos casos, lutaram para abandoná-las, porém a evolução não lhes conferiu forças para a limpeza do coração e a estabilidade da consciência. Todavia, eles não perderão outras oportunidades, que sempre virão em nome da bondade de Deus. Nenhuma das minhas ovelhas se perderá, disse Jesus. Os Espíritos, mesmo no mundo espiritual, têm campo propício para domar suas paixões; depende da boa vontade de quem deseja delas se livrar.
As riquezas e as misérias que nos acompanham depois do túmulo são nossas ações, a vida que levamos, tanto no mundo físico quanto no espiritual. Eis porque o Evangelho nos mostra, com brandura, mas com firmeza, que devemos perdoar aos nossos ofensores enquanto estivermos com eles a caminho, pois o perdão traz oportunidades inúmeras para aquisição de outras qualidades espirituais, como o amor e a caridade.
Esquecer o orgulho e o egoísmo já é um passo de luz em busca da perfeição que tanto nos interessa. Em qualquer posto que ocuparmos no mundo das formas, deveremos tomar atitudes elevadas, e nelas deixar a eficiência crescer e prosperar. Quem persistir no bem, será salvo de todas as investidas do mal.
O Espírito elevado, mesmo que renasça em meio de ignorantes e distantes da chamada civilização humana, deixa-se conhecer pela pertinácia no modo de viver o dia a dia. Ele conhece e sente as leis naturais, por trazê-las vivas no coração, com assistência da consciência em estado de segurança espiritual. A luz, quando acesa, não se apaga jamais, e os valores, quando despertados no imo d'alma, não retrocedem. A missão do Espiritismo é despertar almas para a vida superior. A Doutrina dos Espíritos tem a sagrada missão de tornar os homens melhores, de transformá-los mais depressa, fazendo reviver o Cristianismo, de modo a nascer o Mestre no coração de todas as criaturas.
O dicionário de amanhã deverá desconhecer os nomes de tantas paixões que os de hoje mencionam com exuberância. Elas ficarão esquecidas, pela influência de Jesus em nossas vidas. Existem inúmeros Espíritos que chegaram à Terra com tendências enormes para as paixões humanas, no entanto, ao saírem dela, voltaram livres destas forças negativas, dando glória a Deus e louvando a presença de Jesus em seus caminhos. Vejamos o quanto vale a obstinação no bem, pois esse bem nos mostra todos os caminhos que nos leva ao amor.
Observemos nossa vida, analisemos o que fazemos do tempo que nos foi confiado. Se temos tendências para algumas das paixões que o mundo coleciona, varramo-las dos nossos caminhos e coloquemos em seus lugares os preceitos de Jesus, esforçando-nos para vivê-los com alegria, de modo que a fraternidade pura seja o nosso clima de todos os segundos.




[1] Filosofia Espírita – Volume 5 – João Nunes Maia

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2019

Brumadinho – resgate de Vidas Passadas? Devagar com o andor[1]



Marcelo Teixeira

A tragédia ocorrida na cidade mineira de Brumadinho (janeiro de 2019) me compele a escrever sobre resgate de vidas passadas, tema que, a meu ver, precisa ser mais bem explicitado.
No programa “Encontro com a Fátima” (TV Globo) de 31 de janeiro de 2019, o jornalista e ambientalista André Trigueiro traçou um vasto e lamentável painel da situação. Segundo ele, “a gente não deve cometer a imprudência de chamar de acidente. Foi crime. Existe uma relação promíscua de certos setores que representam o povo – setor público – com certos empresários inescrupulosos ligados à mineração”.
Ainda de acordo com o jornalista, há formas bem mais modernas e seguras de armazenar rejeitos de minérios, como praticado em países como Chile e Costa Rica. Há muito eles deixaram para trás as barragens, sistema de baixo custo de implantação e manutenção e ao mesmo tempo de alto impacto em casos de acidente, como infelizmente temos atestado.
A questão torna-se ainda mais grave pelo fato de, conforme afirmado pelo André, haver no Brasil 24 mil barragens. Dessas, 46% não possuem licença ou autorização para existir. Clandestinas, portanto. Além disso, 3,5 milhões de brasileiros vivem no entorno de barragens sobre as quais há suspeição no tocante à segurança. Para completar, o número de fiscais é deveras insuficiente e preocupante.
Trigueiro aprofunda a questão. Nosso país “está ostentando dois recordes muito ruins. Mariana (outra cidade mineira vítima de desastre semelhante, em 2015) é a maior tragédia ambiental envolvendo rejeito de minério. Destroçou uma bacia hidrográfica inteira – a do Rio Doce –, bem como o litoral do Espírito Santo. Brumadinho caminha (se é que já não chegou) para ser a de maior em número de vítimas fatais”. E salienta: “A mineração é o terceiro setor mais importante da economia. Cinco por cento do PIB (Produto Interno Bruto) vêm dela. Vinte bilhões de dólares de minérios exportados em 2018. Como não somos top em segurança?”
Entrando nessa lamentável conta, temos a questão ambiental. Houve uma perda referente a 400 campos de futebol num local que é área de proteção permanente. Isso engloba também fauna, flora e nascentes de rios. Uma área, inclusive, que vinha perdendo turistas e fazendo o setor hoteleiro local lamentar o fato de a natureza outrora exuberante estar se transformando em barro revirado.
André Trigueiro – e também Fátima Bernardes, jornalista e apresentadora do programa – relembraram, então, outras tragédias ocorridas por descaso e incompetência. Entre elas, a da boate Kiss (janeiro de 2013) na cidade de Santa Maria (RS). Na ocasião, um material inflamável foi imprudentemente aceso por um dos integrantes da banda Gurizada Fandangueira, que se apresentava no local. O resultado foi um incêndio que se alastrou rapidamente e que teve acentuado número de mortos (241) pelo fato de o estabelecimento não ter alvará do Corpo de Bombeiros para funcionar, extintores de incêndio acessíveis e rotas de fuga bem sinalizadas. André, inclusive, chama atenção para o fato de que, hoje, não seria difícil encontrar casas noturnas funcionando nas mesmas condições precárias da Kiss. O mesmo descaso se dá quando nos vêm à mente, conforme observado por Fátima, derramamentos de óleo ocorridos na Baía de Guanabara e o incêndio do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista (RJ). Por minha conta, incluo os recorrentes deslizamentos de encostas e transbordamentos de rios, que ceifam vidas constantemente no Brasil.
Onde que o resgate de débitos cometidos em vidas passadas entra nesses tristes episódios? Explico. Por ocasião da tragédia em Brumadinho, ouvi alguns espíritas, entre conhecidos e anônimos, dizerem que as vítimas decerto estão resgatando um débito grave de vidas passadas. Em algum ponto do passado, foram responsáveis por um evento trágico que gerou muitas mortes. Por isso, foram atraídas magneticamente a Brumadinho a fim de resgatarem esse débito.
A literatura espírita mostra inúmeras tragédias que, de fato, serviram para que espíritos endividados coletivamente resgatassem dívidas oriundas de vidas passadas. No entanto, acho imprudente e leviano afirmarmos que toda e qualquer tragédia ocorre por causa disso.
Sou um espírito imortal temporariamente abrigado num corpo de carne. Por mais que eu tenha ciência de minha personalidade, virtudes, vícios, tendências etc., não sei o que está programado para mim a ponto de afirmar que um eventual acidente de carro que eu sofra tenha a ver com um resgate de algo que fiz em vidas passadas. Ele pode ocorrer simplesmente por imprudência minha ou do outro motorista envolvido. Em suma: eu não tenho acesso ao meu, digamos, dossiê reencarnatório. E se eu não tenho acesso a ele, ao dos outros é que eu não vou ter mesmo! Como posso, então, afirmar categoricamente que as vítimas de Brumadinho foram reunidas naquele local para resgatarem débitos de vidas passadas? Isso é reduzir o pensamento espírita a um lugar comum que nos acomoda no marasmo das generalizações e foge à abordagem filosófica da Doutrina Espírita. Afinal, filosofia propõe questionar e analisar, à luz da razão, todo e qualquer fato sem cair em generalizações apressadas.
Como podemos ter certeza de que incêndios, enchentes, naufrágios etc. acontecem para que os culpados de séculos atrás resgatem eventuais débitos? Não podemos. E precisamos aprender a conviver com essa limitação. O fato de sermos espíritas não nos dá livre acesso às deliberações do lado de lá. Seria muita pretensão nossa acharmos que o conhecimento à luz da imortalidade da alma nos autoriza a isso.
Houve resgates de encarnações pretéritas em Brumadinho, Santa Maria, no voo que matou o time de futebol da Chapecoense etc.? Talvez. Mas não nos compete avaliar, muito menos afirmar categoricamente.
Certa vez, ouvi do expositor espírita Geraldo Guimarães algo muito interessante em relação a uniões felizes: – Quem disse que o cônjuge que ora nos faz tão feliz é um amor de vidas passadas que reencontramos nessa encarnação? E se for alguém que simplesmente cruzou o nosso caminho na atual existência e, por afinidade de ideais e temperamento, hoje está conosco sob os auspícios da Providência Divina, que viu com bons olhos a aproximação e concluiu que seria uma boa experiência para ambos? Um grande amor, portanto, não precisa estar vinculado a compromissos passados. Pode estar começando agora.
Dá-se o mesmo em relação a tragédias como as de Brumadinho. Pode ser que tenha sido algo relacionado a resgates pretéritos. Ou então, a tragédia simplesmente aconteceu por incompetência, descaso, ganância e, aí sim, gerou um débito que os responsáveis resgatarão futuramente e que não temos como avaliar quando e como será.
Remetamos às desgraças pelas quais a humanidade já passou. Escravidão, Cruzadas, Santa Inquisição, I e II Guerra Mundial. Será que todas tinham de acontecer para as vítimas saldarem dívidas de vidas passadas? Ou aconteceram porque o ser humano ainda é essa coisa tosca que se pauta no desamor para construir a História com fatos lamentáveis?
Se tivermos uma atitude mais cidadã e combativa, se votarmos melhor e nos pautarmos pelo amor e o respeito ao próximo, esse mundo será um lugar bom para todos. Isso inclui mais segurança em barragens, rios dragados, boates sinalizadas e equipadas, profissionais mais bem pagos e treinados, justiça ágil e eficiente para todos, crescimento ecologicamente sustentável, política livre de vícios morais, saúde e educação de qualidade para todos etc. E também solidariedade e empatia quando o assunto é lidar com a dor do próximo.
Tragédias acontecem. Não estamos livres delas. No entanto, acho preferível que elas ocorram sem a colaboração da irresponsabilidade de certos indivíduos. E quando acontecerem, enfatizo, não compete aos espíritas avaliar se houve ou não resgate coletivo. Compete-nos, sim, entre outras coisas, lutarmos para que fatos como os de Brumadinho não mais advenham. Isso significa amor ao planeta que nos abriga, ao país e ao próximo, algo que Jesus pregou há mais de 2.000 anos e que o Espiritismo tão bem resgata.

terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Um Médium Pintor Cego[1]


"La Sibila" de Velazquez

Um de nossos correspondentes de Maine-et-Loire, o Dr. C..., transmitiu-nos o seguinte fato:
Eis um curioso exemplo da faculdade mediúnica aplicada ao desenho, e que se manifestou vários anos antes que fosse conhecido o Espiritismo, e mesmo antes das mesas girantes.
Três semanas atrás, estando em Bressuire, explicava o Espiritismo e as relações dos homens com o mundo invisível a um advogado amigo meu, que dele não conhecia patavina. Ora, eis o fato que ele me contou como tendo grande relação com o que eu lhe dizia. Em 1849, disse ele, fui com um amigo visitar o vilarejo de Saint-Laurent-sur-Sèvres e seus dois conventos, um de homens, outro de mulheres. Fomos recebidos da maneira mais cordial possível pelo Padre Dallain, superior do primeiro e que também tinha autoridade sobre o segundo. Depois de ter visitado os dois conventos, ele nos disse: “Agora, senhores, quero vos mostrar uma das coisas mais curiosas do convento das mulheres”. Mandou trazer um álbum onde, com efeito, admiramos aquarelas de grande perfeição. Eram flores, paisagens e marinhas. “Esses desenhos, tão bem reunidos”, disse-nos ele, “foram feitos por uma de nossas jovens religiosas que é cega”. E eis o que nos contou de um encantador buquê de rosas, com um botão azul:
“Há algum tempo, em presença do marquês de La Rochejaquelein e de vários outros visitantes, chamei a religiosa cega e pedi-lhe que se pusesse a uma mesa para desenhar alguma coisa. Diluíram as tintas, deram-lhe papel, lápis, pincéis, e ela imediatamente começou a pintar o buquê que vedes. Durante o trabalho colocaram várias vezes um corpo opaco, ora um papelão, ora uma prancheta, entre seus olhos e o papel, mas o pincel continuou a trabalhar com a mesma calma e a mesma regularidade.
À observação de que o buquê estava um pouco franzino, ela disse: “Pois bem! Vou fazer sair um botão da haste deste ramo”. Enquanto trabalhava nessa correção, substituíram o carmim de que se servia pelo azul; ela não percebeu a mudança e é por isso que vedes um botão azul”.
O abade Dallain, acrescenta o narrador, era tão notável por sua ciência e sua grande inteligência quanto por sua elevada piedade. Não encontrei ninguém que me tivesse inspirado mais simpatia e veneração.

Em nossa opinião este fato não prova, de modo evidente, uma ação mediúnica. Pela linguagem da jovem cega, é certo que via, do contrário não teria dito: “Vou fazer sair um botão da haste deste ramo.” Mas o que não é menos certo é que ela não via pelos olhos, já que continuava seu trabalho, malgrado o obstáculo que interpunham à sua frente. Agia com conhecimento de causa e não maquinalmente, como um médium. Parece, pois, evidente que fosse dirigida pela segunda vista; via pelos olhos da alma, abstração feita dos do corpo; talvez até mesmo estivesse, de maneira permanente, num estado de sonambulismo desperto.
Fenômenos análogos foram observados muitas vezes, mas as pessoas se contentavam em achá-los surpreendentes. Sua causa não podia ser descoberta, porque, ligados essencialmente à alma, fazia-se necessário, primeiro, reconhecer a existência da alma.
Mas, mesmo admitido, este ponto ainda não era suficiente: faltava o conhecimento das propriedades da alma e o das leis que regem suas relações com a matéria. O Espiritismo, ao nos revelar a existência do perispírito, deu-nos a conhecer, se assim nos podemos exprimir, a fisiologia dos Espíritos.
Por aí nos foi dada a chave de uma imensidão de fenômenos incompreendidos, qualificados, em falta de melhores razões, de sobrenaturais por uns, e de bizarrias da Natureza por outros. Pode a Natureza ter bizarrias? Não, porque bizarrias são caprichos. Ora, sendo a Natureza obra de Deus, Deus não pode ter caprichos, sem o que nada seria estável no Universo. Se há uma regra sem exceção, certamente é a que rege as obras do Criador; as exceções seriam a destruição da harmonia universal. Todos os fenômenos se ligam a uma lei geral e uma coisa não nos parece bizarra senão porque só observamos de um único ponto, ao passo que, se considerássemos o conjunto, reconheceríamos que a irregularidade daquele ponto é apenas aparente e depende de nosso limitado ponto de vista.
Isto posto, diremos que o fenômeno de que se trata não é maravilhoso nem excepcional. É o que vamos tentar explicar.
No estado atual dos nossos conhecimentos, não podemos conceber a alma sem o seu invólucro fluídico, perispiritual. O princípio inteligente escapa completamente à nossa análise; só o conhecemos por suas manifestações, que se dão com o auxílio do perispírito. É pelo perispírito que a alma age, percebe e transmite. Desprendida do envoltório corporal, a alma ou Espírito ainda é um ser complexo. Ensina-nos a teoria, de acordo com a experiência, que a visão da alma, assim como todas as outras percepções, é um atributo do ser inteiro. No corpo é circunscrita ao órgão da visão, sendo-lhe preciso o concurso da luz; tudo quanto se acha no trajeto do raio luminoso o intercepta. Não é assim com o Espírito, para o qual não há obscuridade nem corpos opacos. A seguinte comparação pode ajudar a compreender esta diferença.
A céu aberto, o homem recebe a luz por todos os lados; mergulhado no fluido luminoso, o horizonte visual se estende por toda a volta. Se estiver encerrado numa caixa, na qual for feita uma pequena abertura, em seu redor tudo estará na obscuridade, salvo o ponto por onde lhe chega o raio luminoso. A visão do Espírito encarnado está neste último caso; a do Espírito desencarnado está no primeiro. Esta comparação é justa quanto ao efeito, mas não o é quanto à causa, porque a fonte de luz não é a mesma para o homem e para o Espírito, ou, melhor dizendo, não é a mesma luz que lhe dá a faculdade de ver.
Assim, a cega de que se trata via pela alma e não pelos olhos. Eis por que o anteparo colocado à frente do desenho não a incomodava mais do que incomodaria um vidente, ante os olhos do qual tivessem posto um cristal transparente. É também por isto que tanto podia desenhar de noite quanto de dia. Irradiando em torno dela, tudo penetrando, o fluido perispiritual levava a imagem, não à retina, mas à sua alma. Nesse estado, a visão abarca tudo? Não; ela pode ser geral ou especial, conforme a vontade do Espírito; pode ser limitada ao ponto onde ele concentra a sua atenção.
Mas, então, irão perguntar: por que ela não percebeu a substituição da cor? Primeiro pode ser que a atenção voltada para o lugar onde queria pôr a flor a tenha desviado da cor; aliás, é preciso considerar que a visão da alma não se opera pelo mesmo mecanismo que a visão corporal, e que, assim, há efeitos de que não nos poderíamos dar conta; depois, ainda é preciso notar que nossas cores são produzidas pela refração de nossa luz. Ora, sendo as propriedades do perispírito diferentes das de nossos fluidos ambientes, é provável que a refração aí não produza os mesmos efeitos; que as cores não tenham, para os Espíritos, as mesmas causas que para o encarnado. Assim ela podia, pelo pensamento, ver rosa o que nos parece azul. Sabe-se que o fenômeno da substituição das cores é muito frequente na visão ordinária. O fato principal é o da visão bem constatada sem o concurso dos órgãos da visão. Como se vê, esse fato não implica ação mediúnica, mas, também, não exclui, em certos casos, a assistência de um Espírito estranho. Essa jovem, pois, podia ou não ser médium, o que só um estudo mais atento teria podido revelar.
Uma pessoa cega que gozasse dessa faculdade seria um precioso objeto de observação. Mas, para tanto, teria sido necessário conhecer a fundo a teoria da alma, a do perispírito e, por conseguinte, o sonambulismo e o Espiritismo. Naquela época não se conheciam essas coisas; mesmo hoje, não seria nos meios onde as consideram como diabólicas que poderiam entregar-se a tais estudos. Também não é naqueles onde se nega a existência da alma que podem fazê-lo. Dia virá, sem dúvida, em que reconhecerão a existência de uma física espiritual, como começam a reconhecer a existência da medicina espiritual.




[1] Revista Espírita – Março/1864 – Allan Kardec

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

Julian Ochorowicz[1]




O doutor Julian Ochorowicz, psicólogo e filósofo polaco, lente de Psicologia e Filosofia na Universidade de Lemberg, co-director desde 1907 do Institut Général Psychologique de Paris, foi um dos mais ilustres e competentes investigadores da "sugestão mental". Nasceu em 23 de fevereiro de 1850 na cidade de Radzymin, Polônia, e faleceu em 1 de maio de 1917, na cidade de Varsóvia, Polônia. Tinha formação universitária (Universidade de Leipzig). Exerceu a cátedra na Universidade de Lemberg.
Na Itália, teve oportunidade de constatar os extraordinários fenômenos produzidos por Eusápia Paladino. Declarou na "Gazeta Semanal Ilustrada", o seguinte:
Quando me recordo de que, numa certa época, eu me admirava da coragem de William Crookes em sustentar a realidade dos fenômenos espíritas; quando reflito, sobretudo, que li as suas obras com o sorriso estúpido que iluminava a fisionomia dos seus colegas, ao simples enunciado destas coisas, eu coro de vergonha por mim próprio e pelos outros.
A sua obra, “A Sugestão Mental”, é um clássico da literatura parapsicológica. Nela o doutor Ochorowicz faz extenso e minucioso relato das suas investigações acerca dos fenômenos de telepatia. O seu trabalho divide-se em diversas seções conforme as diferentes modalidades de telepatia por ele encontradas em sua extensa experiência pessoal. Vamos enumerar algumas delas: Sugestão mental aparente; sugestão mental provável; sugestão mental verdadeira; simpatismo orgânico; simpatismo e contágio; transmissão dos estados emotivos; transmissão das ideias; transmissão direta da vontade; ação da vontade e a questão da "relação"; ação sem que o sonâmbulo saiba, ou contra a sua vontade; sugestão mental a prazo; sugestão mental à distância. Infelizmente é impossível tratar de todas estas modalidades em tão curto espaço, mas faremos o possível para expor pelo menos alguns exemplos interessantes.
Ochorowicz, no capitulo I do seu livro, confessa que inicialmente não acreditava na "sugestão mental". Em 1867, em Lublin, pela primeira vez Ochorowicz experimentou verificar a sugestão mental com um rapaz de 17 anos, assaz difícil de adormecer, mas que manifestava, depois de hipnotizado, certos fenômenos curiosos. Ele reconhecia, por exemplo, qualquer pessoa de suas relações que apenas lhe tocasse nas costas com um só dedo. Deste modo ele conseguiu, certa ocasião, distinguir sucessivamente 15 pessoas, algumas das quais haviam entrado na sala depois de estar ele adormecido. Certa ocasião, aconteceu-lhe identificar uma senhora que penetrava na sala sem que ele soubesse e a qual vira pela primeira vez alguns dias antes. Estes fatos, porém, não convenceram Ochorowicz; nem outros mais evidentes ainda, ocorridos com o mesmo sonâmbulo. Ele buscava fatos realmente inexplicáveis. Seu cepticismo era muito acentuado e sua exigência neste sentido muito grande. Ochorowicz procurou investigar mais outros casos e terminou por encontrá-los.
O primeiro caso que ele classificou de "sugestão mental verdadeira" ocorreu ocasionalmente com uma sua paciente.

SUGESTÃO MENTAL VERDADEIRA
Em 25 de Janeiro de 1886, J. Ochorowicz comunicou à Sociedade de Psicologia Fisiológica de Lemberg um relato de suas observações e experiências de "sugestão mental à distância" levadas a efeito com a Srª. M., de 27 anos de idade. Em Agosto de 1886, foram publicados alguns excertos dessas experiências.
A Srª. M. era cliente do doutor Ochorowicz. Tratava-se de uma mulher jovem, aparentemente forte, bem constituída e de saúde perfeita. Porém, esta senhora sofria, a algum tempo, de uma histero-epilepsia, agravada, mais tarde, por acessos de mania de suicídio.
Uma noite, após tê-la assistido durante um dos seus ataques e declarando-se ela melhor, a seu próprio pedido o doutor Ochorowicz resolveu retirar-se. Ficara apenas uma amiga da Srª. M. Apesar de vê-la bem disposta, o doutor Ochorowicz desceu lentamente as escadas (ela morava no terceiro andar), detendo-se várias vezes com o ouvido à escuta, perturbado por um mau pressentimento. Chegado ao portão deteve-se mais uma vez. De repente, a janela abriu-se com ruído, e ele viu o corpo da Sr.ª. M. inclinar-se para fora. Ele precipitou-se para o lugar onde ela devia cair. Maquinalmente, concentrou a sua vontade no intuito de opor-se à sua queda. A doente, já inclinada, deteve-se e recuou lentamente por sacudidelas.
A mesma manobra repetiu-se cinco vezes seguidas. Finalmente a doente, como que fatigada, imobilizou-se, encostando-se no parapeito da janela.
Ela não poderia ter visto o doutor Ochorowicz, porque era noite e ele achava-se na parte não iluminada. Naquele momento, a amiga que ficara com a Srª. M. acudiu e agarrou-a pelos braços, lutando para afastá-la dali. O doutor Ochorowicz subiu as escadas rapidamente e encontrou a doente num acesso de loucura. Depois de muita luta, foi conduzida ao leito e posta em estado sonambúlico. Uma vez em sonambulismo ela revelou que era seu intuito atirar-se mesmo pela janela, mas que naquele momento, cada vez que tentara fazê-lo, uma força a "reerguera por baixo". Não suspeitava que o médico ainda estivesse presente. Aproveitara, então, a ocasião para tentar o suicídio: "Entretanto pareceu-me por momentos que estáveis ao meu lado ou por detrás de mim e que não queríeis que eu caísse" ‒ disse ela ao doutor Ochorowicz.
Este incidente levou o médico a experimentar com a Srª. M. a "sugestão mental à distância". Ele costumava adormecê-la de dois em dois dias. Era a rotina do seu tratamento. Durante esses momentos ele observava-a e tomava notas em seu memorial.
Dia 2 de Dezembro de 1885, Ochorowicz tinha a sua paciente adormecida. Ele encontrava-se a certa distância da sua cama e fingia tomar notas em seu caderno. Porém, interiormente, concentrava sua vontade sobre uma ordem mental dada: "erga a mão direita" ‒ 1º minuto: ação nula; 2º minuto: uma agitação na mão direita; 3º minuto: a agitação aumenta, a doente franze as sobrancelhas e ergue a mão direita!
Animado por este sucesso, o médico deu-lhe outra ordem mental: "Levante-se lentamente com dificuldade e vá até ele, com a mão estendida"!
E assim, sucessivamente, Ochorowicz conseguiu que sua paciente obedecesse, com êxito, a várias ordens mentais. Em algumas ocasiões as ordens mentais não eram atendidas imediatamente, e a paciente parecia embaraçar-se ao cumpri-las. Todas as ordens mentais eram dadas silenciosamente e sem gestos.
Ochorowicz relatou ao todo 14 sessões levadas a efeito de dois de Dezembro de 1885 a 5 de Fevereiro de 1886, durante as quais ele fez um número enorme de experiências de sugestão mental, com grande êxito e com a mesma Srª. M.
Ochorowicz teve a oportunidade de registar outros casos semelhantes ocorridos com diversas pacientes tratadas por ele em sua clínica normal. Naquela época, estava muito em voga o hipnotismo, e grande número de psiquiatras usava-o correntemente e com êxito no tratamento das moléstias nervosas. Hoje em dia, infelizmente, generalizou-se o uso de drogas...

AS EXPERIÊNCIAS NO HAVRE
Julian Ochorowicz tomou conhecimento através de uma conferência das experiências de sugestão mental à distância que os doutores Pierre Janet e Gibert haviam feito com a Srª. Léonie, no Havre. No mês de Novembro de 1885, o doutor Paul Janet, tio do doutor Pierre Janet, leu perante a Sociedade de Psicologia Fisiológica uma comunicação do seu sobrinho, o doutor Pierre Janet, que era professor de Filosofia no Liceu do Havre. A sua tese levava um título um tanto vago: "Sobre alguns fenômenos de sonambulismo". Porém, o conteúdo da tese encerrava assunto muito grave, pois colidia com a posição fisiologista que já imperava em amplos setores das escolas psicológicas. O nome da Sociedade de Psicologia Fisiológica faz presumir que o título da tese foi propositadamente vago para lá ter entrada. Entretanto, tratava-se de uma série de observações feitas sobre fatos que evidenciavam não só a existência de fenômenos de "sugestão mental" em geral, mas, o que era mais extraordinário, de "sugestão mental à distância de alguns quilômetros e sem que o paciente o soubesse!".
O comunicado de Pierre Janet certamente provocou um impacto na assistência. O auditório, conforme declarou o doutor Ochorowicz, prestou a isto a maior atenção, não sem uma grande dose de incredulidade. O Sr. Janet absteve-se de qualquer teoria; somente relatava os fatos, devia crer-se ou não. A comunicação ouvida em silêncio, foi em seguida passada sob silêncio, salvo algumas considerações de um caráter muito geral, formuladas pelo Sr. Charcot.
Ochorowicz já houvera feito inúmeras experiências de "sugestão mental", mas a curta distância, achando-se o paciente sob ação hipnótica, como no caso da Srª. M Em outra ocasião uma nova paciente. A Srª. B estava desperta, mas achava-se a pequena distância e apenas executou algumas ordens mentais em estado de vigília. Porém, os doutores Pierre Janet e Gibert foram bem sucedidos, adormecendo o paciente à distância e dando-lhe ordens mentais que foram obedecidas. O caso interessou vivamente Ochorowicz:
Eis o que me pareceu estranho - diz ele - "É este último fenômeno que eu queria verificar desde logo, reconhecendo o seu valor por uma teoria de sugestão e pelo problema do magnetismo em geral. É evidente que semelhante constatação seria a morte da teoria exclusiva do hipnotismo contemporâneo, que se gabava de ser o sucessor legítimo do extinto magnetismo animal, e que não deveria de ora em diante ocupar senão um lugar muito modesto ao lado do seu predecessor. (...).
Interessado em obter pessoalmente, uma confirmação ou negação dos fatos relatados pelos doutores Janet e Gibert, Ochorowicz dirigiu-se ao Havre, acompanhado de alguns colegas entre eles o famoso investigador, F. W. H. Myers, que naquela época estava em plena atividade em busca de fenômenos de telepatia. Myers fez constar o episódio do Havre em sua obra clássica “Human Personality and its Survival of Bodily Death”. Os outros observadores eram o professor Paul Janet, doutores Jules Janet e A. T. Myers (irmão de F. W. H. Myers) e o Sr. Marillier.
Entre 3 e 9 de Outubro de 1885 puderam estes senhores observar inúmeras vezes a Srª. Léonie ser hipnotizada à distância de mais de dois quilômetros e receber ordens mentais como, por exemplo, sair à rua e ir até ao consultório dos doutores Janet e Gibert.
Estes fatos colocam a hipnose numa nova categoria de fenômenos e, em parte, restabelece as antigas hipóteses do "magnetismo animal", muito embora não invalidem as hipóteses de Pavlov. Apenas elas sugerem que, ao lado das bases fisiológicas do fenômeno da hipnose, deve cogitar-se da possibilidade de existir algo, ainda não bem conhecido, capaz de provocar a inibição cortical e acionar o paciente, levando-o a obedecer a determinadas ordens telepáticas emanadas do operador.