terça-feira, 19 de fevereiro de 2019

Um Médium Pintor Cego[1]


"La Sibila" de Velazquez

Um de nossos correspondentes de Maine-et-Loire, o Dr. C..., transmitiu-nos o seguinte fato:
Eis um curioso exemplo da faculdade mediúnica aplicada ao desenho, e que se manifestou vários anos antes que fosse conhecido o Espiritismo, e mesmo antes das mesas girantes.
Três semanas atrás, estando em Bressuire, explicava o Espiritismo e as relações dos homens com o mundo invisível a um advogado amigo meu, que dele não conhecia patavina. Ora, eis o fato que ele me contou como tendo grande relação com o que eu lhe dizia. Em 1849, disse ele, fui com um amigo visitar o vilarejo de Saint-Laurent-sur-Sèvres e seus dois conventos, um de homens, outro de mulheres. Fomos recebidos da maneira mais cordial possível pelo Padre Dallain, superior do primeiro e que também tinha autoridade sobre o segundo. Depois de ter visitado os dois conventos, ele nos disse: “Agora, senhores, quero vos mostrar uma das coisas mais curiosas do convento das mulheres”. Mandou trazer um álbum onde, com efeito, admiramos aquarelas de grande perfeição. Eram flores, paisagens e marinhas. “Esses desenhos, tão bem reunidos”, disse-nos ele, “foram feitos por uma de nossas jovens religiosas que é cega”. E eis o que nos contou de um encantador buquê de rosas, com um botão azul:
“Há algum tempo, em presença do marquês de La Rochejaquelein e de vários outros visitantes, chamei a religiosa cega e pedi-lhe que se pusesse a uma mesa para desenhar alguma coisa. Diluíram as tintas, deram-lhe papel, lápis, pincéis, e ela imediatamente começou a pintar o buquê que vedes. Durante o trabalho colocaram várias vezes um corpo opaco, ora um papelão, ora uma prancheta, entre seus olhos e o papel, mas o pincel continuou a trabalhar com a mesma calma e a mesma regularidade.
À observação de que o buquê estava um pouco franzino, ela disse: “Pois bem! Vou fazer sair um botão da haste deste ramo”. Enquanto trabalhava nessa correção, substituíram o carmim de que se servia pelo azul; ela não percebeu a mudança e é por isso que vedes um botão azul”.
O abade Dallain, acrescenta o narrador, era tão notável por sua ciência e sua grande inteligência quanto por sua elevada piedade. Não encontrei ninguém que me tivesse inspirado mais simpatia e veneração.

Em nossa opinião este fato não prova, de modo evidente, uma ação mediúnica. Pela linguagem da jovem cega, é certo que via, do contrário não teria dito: “Vou fazer sair um botão da haste deste ramo.” Mas o que não é menos certo é que ela não via pelos olhos, já que continuava seu trabalho, malgrado o obstáculo que interpunham à sua frente. Agia com conhecimento de causa e não maquinalmente, como um médium. Parece, pois, evidente que fosse dirigida pela segunda vista; via pelos olhos da alma, abstração feita dos do corpo; talvez até mesmo estivesse, de maneira permanente, num estado de sonambulismo desperto.
Fenômenos análogos foram observados muitas vezes, mas as pessoas se contentavam em achá-los surpreendentes. Sua causa não podia ser descoberta, porque, ligados essencialmente à alma, fazia-se necessário, primeiro, reconhecer a existência da alma.
Mas, mesmo admitido, este ponto ainda não era suficiente: faltava o conhecimento das propriedades da alma e o das leis que regem suas relações com a matéria. O Espiritismo, ao nos revelar a existência do perispírito, deu-nos a conhecer, se assim nos podemos exprimir, a fisiologia dos Espíritos.
Por aí nos foi dada a chave de uma imensidão de fenômenos incompreendidos, qualificados, em falta de melhores razões, de sobrenaturais por uns, e de bizarrias da Natureza por outros. Pode a Natureza ter bizarrias? Não, porque bizarrias são caprichos. Ora, sendo a Natureza obra de Deus, Deus não pode ter caprichos, sem o que nada seria estável no Universo. Se há uma regra sem exceção, certamente é a que rege as obras do Criador; as exceções seriam a destruição da harmonia universal. Todos os fenômenos se ligam a uma lei geral e uma coisa não nos parece bizarra senão porque só observamos de um único ponto, ao passo que, se considerássemos o conjunto, reconheceríamos que a irregularidade daquele ponto é apenas aparente e depende de nosso limitado ponto de vista.
Isto posto, diremos que o fenômeno de que se trata não é maravilhoso nem excepcional. É o que vamos tentar explicar.
No estado atual dos nossos conhecimentos, não podemos conceber a alma sem o seu invólucro fluídico, perispiritual. O princípio inteligente escapa completamente à nossa análise; só o conhecemos por suas manifestações, que se dão com o auxílio do perispírito. É pelo perispírito que a alma age, percebe e transmite. Desprendida do envoltório corporal, a alma ou Espírito ainda é um ser complexo. Ensina-nos a teoria, de acordo com a experiência, que a visão da alma, assim como todas as outras percepções, é um atributo do ser inteiro. No corpo é circunscrita ao órgão da visão, sendo-lhe preciso o concurso da luz; tudo quanto se acha no trajeto do raio luminoso o intercepta. Não é assim com o Espírito, para o qual não há obscuridade nem corpos opacos. A seguinte comparação pode ajudar a compreender esta diferença.
A céu aberto, o homem recebe a luz por todos os lados; mergulhado no fluido luminoso, o horizonte visual se estende por toda a volta. Se estiver encerrado numa caixa, na qual for feita uma pequena abertura, em seu redor tudo estará na obscuridade, salvo o ponto por onde lhe chega o raio luminoso. A visão do Espírito encarnado está neste último caso; a do Espírito desencarnado está no primeiro. Esta comparação é justa quanto ao efeito, mas não o é quanto à causa, porque a fonte de luz não é a mesma para o homem e para o Espírito, ou, melhor dizendo, não é a mesma luz que lhe dá a faculdade de ver.
Assim, a cega de que se trata via pela alma e não pelos olhos. Eis por que o anteparo colocado à frente do desenho não a incomodava mais do que incomodaria um vidente, ante os olhos do qual tivessem posto um cristal transparente. É também por isto que tanto podia desenhar de noite quanto de dia. Irradiando em torno dela, tudo penetrando, o fluido perispiritual levava a imagem, não à retina, mas à sua alma. Nesse estado, a visão abarca tudo? Não; ela pode ser geral ou especial, conforme a vontade do Espírito; pode ser limitada ao ponto onde ele concentra a sua atenção.
Mas, então, irão perguntar: por que ela não percebeu a substituição da cor? Primeiro pode ser que a atenção voltada para o lugar onde queria pôr a flor a tenha desviado da cor; aliás, é preciso considerar que a visão da alma não se opera pelo mesmo mecanismo que a visão corporal, e que, assim, há efeitos de que não nos poderíamos dar conta; depois, ainda é preciso notar que nossas cores são produzidas pela refração de nossa luz. Ora, sendo as propriedades do perispírito diferentes das de nossos fluidos ambientes, é provável que a refração aí não produza os mesmos efeitos; que as cores não tenham, para os Espíritos, as mesmas causas que para o encarnado. Assim ela podia, pelo pensamento, ver rosa o que nos parece azul. Sabe-se que o fenômeno da substituição das cores é muito frequente na visão ordinária. O fato principal é o da visão bem constatada sem o concurso dos órgãos da visão. Como se vê, esse fato não implica ação mediúnica, mas, também, não exclui, em certos casos, a assistência de um Espírito estranho. Essa jovem, pois, podia ou não ser médium, o que só um estudo mais atento teria podido revelar.
Uma pessoa cega que gozasse dessa faculdade seria um precioso objeto de observação. Mas, para tanto, teria sido necessário conhecer a fundo a teoria da alma, a do perispírito e, por conseguinte, o sonambulismo e o Espiritismo. Naquela época não se conheciam essas coisas; mesmo hoje, não seria nos meios onde as consideram como diabólicas que poderiam entregar-se a tais estudos. Também não é naqueles onde se nega a existência da alma que podem fazê-lo. Dia virá, sem dúvida, em que reconhecerão a existência de uma física espiritual, como começam a reconhecer a existência da medicina espiritual.




[1] Revista Espírita – Março/1864 – Allan Kardec

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