terça-feira, 31 de janeiro de 2017

A criação do Princípio Inteligente e a grandeza do Criador[1]



J. Herculano Pires[2]
 

Na ação de Deus sobre a matéria o pensamento divino aglutina a matéria, dando-lhe estrutura, através da qual temos a passagem do pensamento do plano do inteligível para o plano do sensível. Uso a divisão de Platão neste sentido: o inteligível é o intelecto divino e o sensível é o plano do sensório, das sensações humanas. Dessa maneira, Deus materializa o seu pensamento para atingir a sensibilidade do campo material em que o homem vai ser criado. No fiat ou ato inicial da criação temos a ação direta e ativa do pensamento divino estruturando a matéria. Uma vez formada essa estrutura, surge um elemento novo que é designado pela expressão princípio inteligente. O pensamento divino ligado à matéria adquire autonomia, sem com isso desligar-se da fonte que o alimenta. Transforma-se na mônada, elemento básico e estrutural da matéria, de que são compostas as próprias partículas atômicas. A palavra mônada procede de Pitágoras, foi empregada por Platão como ideia e desenvolvida modernamente por Leibniz e Renouvier como uma substância inteiramente simples (pura indivisível e refratária a qualquer influência exterior). A mônada é dotada de uma força interior que a transforma, de potencialidades que se desenvolvem continuamente e de capacidade de percepção e vontade. As mônadas são diferentes entre si no tocante a essas potências internas.
Estas correlações filosóficas são necessárias para entender-se o que é o principio inteligente da concepção espírita. Trata-se, como se vê, do princípio básico de toda a realidade, responsável pela formação dos reinos da Natureza, pelo desenvolvimento da vida e de todas as faculdades vitais e anímicas dos seres. O admirável poder de intuição dos gregos captou não só a existência dos átomos, como também a das mônadas, que a Ciência atual já está conseguindo atingir nas profundezas da misteriosa estrutura da matéria, na pesquisa sobre as partículas atômicas. A teoria espírita do princípio inteligente é explicada de maneira sintética no O Livro dos Espíritos. No item 23 dessa obra lemos o seguinte:
Que é o espírito? É o princípio inteligente do Universo. Seguem-se outras explicações nas quais a inteligência se define como um atributo essencial do espírito. Geralmente confundimos a substância (espírito) com a inteligência, que é seu atributo.
Colocado assim o problema, parece-me explicada a razão pela qual os Espíritos Superiores não esmiuçaram essa questão fundamental. Na própria tradição filosófica, desde bem antes da era cristã, já dispúnhamos dos elementos necessários de intuições capazes de nos fornecerem os dados para uma equação futura. Faltava-nos, porém, o desenvolvimento, que só mais tarde poderia ocorrer, das pesquisas cientificas em profundidade. Atualmente já podemos compreender com mais clareza a dinâmica do processo criador. A teoria filosófica da mônada, que antes poderia ser considerada como simples hipótese inverificável, adquire hoje a condição de uma teoria cientifica ao alcance da comprovação pela pesquisa. Teorias como a do físico inglês Dirac, por exemplo, segundo a qual o Universo está mergulhado num oceano de elétrons livres, ou a dos físicos soviéticos, de que esse oceano parece ser de uma luz violácea proveniente dos primórdios da criação, mostram-nos as possibilidades novas que as pesquisas espaciais estão abrindo nesse campo. O mesmo se pode dizer da teoria dos campos de força que preenchem todo o espaço sideral.
É evidente que, diante dessas novas posições conceptuais, toda a nossa cultura entra em crise, prenunciando o advento de um novo mundo. A inteligência humana se abre para dimensões mais amplas e profundas da realidade universal, exigindo a reformulação de conceitos e estruturas culturais envelhecidas. Não podemos mais pensar em Deus como uma figura humana, nem do ponto de vista formal, nem do substancial. Só podemos considerá-lo como o Ser Absoluto, como a Inteligência Suprema, mas assim mesmo sem lhe atribuir nenhuma das limitações humanas. Os teólogos do Cristianismo Ateu, da Teologia Radical da Morte de Deus, sentem isso na própria pele, mas faltam-lhes os dados para uma equação mais positiva do problema. Divagam através de suposições ameaçadoras e caem irremediavelmente num torvelinho de contradições. Se tivessem a humildade de consultar a Filosofia Espírita, essa pedra rejeitada da parábola evangélica, encontrariam nela a pedra angular do novo edifício a construir.
O Espírito a que a Bíblia se refere em numerosos tópicos e que nos Evangelhos torna o nome de Espírito Santo é o Espírito de Deus em sua manifestação universal. A Criação tem dois aspectos, o material e o espiritual. O sopro de Deus é o espírito criado no fiat e o homem de barro, o Adão terreno, o ápice da criação nos mundos em desenvolvimento, como a Terra. O sopro de Deus nas ventas do homem de barro, para infundir-lhe o princípio da vida e da inteligência, é a ligação do espírito com a matéria na formação da mônada. No pensamento divino todo o quadro da criação estava presente desde o princípio. E tudo era perfeito. A perfeição do ideal constituía o modelo da realidade (o mundo da rés, das coisas) que devia projetar-se no Infinito. Por isso, as mônadas diferenciadas, com características específicas, seriam semeadas no espaço, para a germinação lenta, mas segura e contínua, dos conteúdos essenciais de cada uma delas. A mônada é a semente do ser, da criatura humana e divina que dela surgirá nas dimensões da temporalidade.
Não se pode conceber, em nossa relatividade humana, mais grandiosa e perfeita concepção do ato criador. Podemos perguntar por que Deus, que é o supremo poder, precisa do tempo para realizar essa obra gigantesca. Mas o Espiritismo ensina que a nossa relatividade decorre de necessidades nossas e não de Deus. O que para nós são séculos e milênios, para Deus pode ser apenas aquele instante que, para Kierkegaard, era o encontro do tempo com a eternidade. Um instante de profundidade e extensão imensas, que resume para o homem todas as suas existências nas duas dimensões do Universo que hoje nos são acessíveis: a espiritual e a material.
É, sem dúvida, espantoso pensar, como Gustave Geley, que tudo quanto consideramos inconsciente, desde o grão de areia aos mundos que giram em torno dos sóis, possui a potencialidade da consciência em desenvolvimento no seu interior. Mas quando compreendemos que a mônada, síntese de espírito e matéria, é uma unidade infinitesimal, sobre a qual se apoia toda a realidade — o que corresponde à concepção atômica da Ciência em nossos dias — nossa mente começa a abrir-se para um entendimento superior. Se o poder do átomo nos espanta, a potencialidade da mônada nos aturdiria. E ambos esses poderes nada mais são do que fragmentos do poder de Deus. Quando pensamos nisso, a teoria do princípio inteligente começa a revelar-nos a grandeza da doutrina espírita.
E no entanto os seus fundamentos estão nos princípios evangélicos, sobre os quais milhares de teólogos, filósofos, místicos e pregadores escreveram e falaram sem cessar, numa catadupa de páginas e palavrórios ao longo de dois mil anos? Essa opacidade da inteligência humana, esse embotamento da capacidade de compreensão poderia fazer-nos descrer das potencialidades do principio inteligente se não soubéssemos que o instinto gregário do homem o leva à imitação e à repetição dos papagaios. Quando Kardec se atreveu, utilizando-se de todos os recursos de sensatez e equilíbrio, apoiando-se na cultura do Século XIX — para não provocar reações precipitadas que lhe prejudicariam a obra — a publicar “O Livro dos Espíritos“, todos os anátemas da Religião, da Ciência e da Filosofia caíram sobre ele como as bombas norte-americanas sobre o Vietnã. Somente agora se abre uma perspectiva favorável, em todos aqueles campos reacionários, para uma possível compreensão do seu gigantesco trabalho de reposição das coisas em seus lugares. Mas então aparecem os que pretendem reformar, atualizar e tecnicizar as suas obras ao invés de estudá-las e aprofundar-lhes o sentido. Isso nos prova quanto necessitamos do tempo para que a mônada oculta se abra e se atualize em nós.
Todas as coisas têm sua origem no mundo das ideias, como Platão, levado pelas mãos de Sócrates, percebeu claramente. Nos planos superiores do Universo não se usa a linguagem articulada das hipóstases inferiores. Fala-se do pensamento, na linguagem telepática pura. Sócrates descobriu essa linguagem ao encontrar o conceito no fundo de cada palavra. Podemos assim conceber que a linguagem de Deus seja puramente mental. Na mente divina a ideia do Universo delineia-se perfeita, mas a projeção dessa ideia no plano inferior da matéria tem de vencer os obstáculos e as resistências da materialidade. Foi o que Hegel viu e descreveu com precisão em sua teoria estética, mostrando a luta do belo para se sobrepor, no tempo, às imperfeições materiais.
O mesmo se dá com o princípio inteligente, que, para vencer a opacidade da matéria, para inteligenciá-la, segundo Kardec, tem de lutar na temporalidade. Mas, podemos perguntar, porque Deus não fez em condições transparentes a matéria, ao invés de opaca? O Espiritismo explica que a matéria se torna transparente na proporção em que visualizamos os planos superiores, de tal maneira que a confundimos com o espírito. Isso nos mostra que a técnica dos contrastes desaparece naquilo que Buda chamou de Nirvana e que a nossa apoucada inteligência considerou como o Nada. Kant teve razão ao localizar os limites da razão humana no momento em que cessam as contradições dialéticas. Mas nesse momento, nessa linha divisória entre o mundo real e o mundo ideal, começa a razão angélica. Os homens transformados em anjos – não com asas nem com estrelas na fronte mas com a mente e o coração purificados, passam a ver e a compreender a realidade pela intuição direta e global. Nesse momento descobrem a perfeição do Universo, aquela perfeição que, desde o princípio, estava na concepção ideal de Deus, mas que nas hipóstases materiais tornava-se irreconhecível como a Vênus de Milo coberta de terra e lama quando á arrancaram do subsolo.
O próprio tempo desaparece nesse momento. Não há mais necessidade do véu de Isis da temporalidade para encobrir a verdade das coisas e dos seres. Mergulhamos no eterno, que não é estático e inerte como o supomos, mas tem a dinâmica e a lucidez de que o pensamento nos pode dar um vago exemplo. Kardec verificou, em suas pesquisas espíritas, que a esquematização do sensório humano, com a divisão das faculdades sensoriais em órgãos específicos e rigidamente localizados no corpo, não existe para os espíritos libertos das impressões materiais. Os espíritas percebem, veem e sentem de maneira global, por todo o seu ser em sintonia com toda a realidade. As deslocalizações e transferências das sensações nas práticas hipnóticas comprovam, em nosso plano, a veracidade dessa descoberta efetuada nas suas pesquisas mediúnicas. Seu ensaio sobre a sensação nos espíritos, que se encontra no livro básico da doutrina, é uma peça de esclarecimento lúcido e didático desse problema.
As pesquisas atuais da Parapsicologia, que até agora só puderam refazer o caminho percorrido por Kardec, representam uma confirmação da validade das suas afirmações de mais de um século. Apesar disso, e no interesse inferior da defesa de posições sectárias, toda uma multidão de falsos cientistas se empenha na tarefa ingrata de desmentir o Espiritismo através de capciosos argumentos temperados na panela da mentira ou nos caldeirões da trapaça diabólica. Mas nada disso impedirá que a verdade triunfe, pois a verdade é, existe par si mesma e não pede licença a nenhum censor religioso ou ateu para se revelar como ela é, aos olhos de todos os que se fizerem dignos dela.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Auta de Souza[1]

 

Nasceu em Macaíba, então Arraial, depois cidade do Rio Grande do Norte, a 12 de setembro de 1876. Era magrinha, calada, de pele clara, um moreno doce à vista como veludo ao tato. Era filha de Elói Castriciano de Souza, desencarnado aos 38 anos de idade, e de Dona Henriqueta Rodrigues de Souza, desencarnada aos 27 anos, ambos tuberculosos. Antes de ela completar 3 anos, ficou órfã de mãe e, aos 4 anos, de pai. A sua existência foi assinalada por sofrimentos acerbos. Muito cedo conheceu a orfandade e ainda menina, aos dez anos, assistiu à morte de seu querido irmão Irineu Leão Rodrigues de Souza, vitimado pelo fogo produzido pela explosão de um lampião de querosene, na noite de 16 de fevereiro de 1887. 
 Auta de Souza e seus quatro irmãos foram criados em Recife, no velho sobrado do Arraial, na grande chácara, pela avó materna, Dona Silvina Maria da Conceição de Paula Rodrigues, vulgarmente chamada Dindinha, e seu esposo Francisco de Paula Rodrigues, que desencarnou quando Auta tinha 6 anos.
  Antes dos 12 anos, foi matriculada no Colégio São Vicente de Paulo, no bairro da Estância, onde recebeu carinhosa acolhida por parte das religiosas francesas que o dirigiam e lhe ofereceram primorosa educação: literatura, inglês, música, desenho e aprendeu a dominar também o francês, o que lhe permitiu ler no original: Lamartine, Victor Hugo, Chateaubriand, Fénelon.
 De 1888 a 1890, a jovem Auta estuda, recita, verseja, ajuda as irmãs do Colégio, aprimora a beleza de sua fé, na leitura constante do Evangelho.
 Aos 14 anos, ainda no Educandário Estância, em 1890, manifestaram-se os primeiros sintomas da enfermidade que lhe roubou, em plena juventude, o viço e foi a causa de sua morte, ocorrida na madrugada de 7 de fevereiro de 1901, quinta-feira, à uma hora e quinze minutos, na cidade de Natal, exatamente com 24 anos, 4 meses e 26 dias de idade. Os médicos nada puderam fazer e Dindinha retornou com todos para o Rio Grande do Norte. Auta foi sepultada no cemitério do Alecrim e, em 1906, seus restos mortais foram transladados para o jazigo da família, na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Macaíba, sua terra natal.
 O forte sentimento religioso e mesmo a doença não impediram de ter uma vida absolutamente normal em sociedade.
 Era católica, mas não submissa ao clero. Ela não se macerou, não jejuou e jamais se enclausurou. Era comunicativa, alegre, social. A religiosidade dela era profunda, sincera, medular, mas não ascética, mortificante, mística. Seu amor por Jesus Cristo, ao Anjo da Guarda, não a distanciaram de todos os sonhos das donzelas: amor, lar, missão maternal. Com 16 anos, ao revelar o seu invulgar talento poético, enamorou-se do jovem Promotor Público de Macaíba, João Leopoldo da Silva Loureiro, com a duração apenas de um ano e poucos meses. Dotada de aguda sensibilidade e imaginação ardente, dedicava ao namorado amor profundo, mas a tuberculose progredia e seus irmãos convenceram-na a renunciar. A separação foi cruel, mas apenas para Auta. O Promotor não demonstrou a menor reação. É verdade que gostava de ouvi-la nas festas caseiras a declamar com sua belíssima voz envolvente, aveludada e com ela dançar quadrilhas, polcas e valsas, mas não era o homem indicado para amar uma alma tão delicada e sonhadora como Auta de Souza. Faltava-lhe o refinamento espiritual para perceber o sentimento que extravasava através dos olhos meigos da grande poetisa.
 Essa sucessão de golpes dolorosos, marcou profundamente sua alma de mulher, caracterizada por uma pureza cristalina, uma fé ardente e um profundo sentimento de compaixão pelos humildes, cuja miséria tanto a comovia. Era vista lendo para as crianças pobres, para humildes mulheres do povo ou velhos escravos, as páginas simples e ingênuas da História de Carlos Magno, brochura que corria os sertões, escrita ao gosto popular da época.
 A orfandade da poetisa, ainda criança, o desencarne trágico de seu irmão, a moléstia contagiosa e a frustração no amor, esses quatro fatores amalgamados à forte religiosidade de Auta, levaram-na a compor uma obra poética singular na história da Literatura Brasileira: Horto, seu único livro, é um cântico de dor, mas, também, de fé cristã. A primeira edição do Horto saiu do prelo em 20 de Junho de 1900.
 O sofrimento veio burilar a sua inata sensibilidade, que transbordou em versos comovidos e ternos, ora ardentes, ora tristes, lavrados à sombra da enfermidade, no cenário desolador do sertão de sua terra.
 Em 14 de novembro de 1936, houve a instalação da Academia Norte - Rio Grandense de Letras, com a poltrona XX, dedicada a Auta de Souza.
  Livre do corpo, totalmente desgastado pela enfermidade, Auta de Souza, irradiando luz própria, lúcida e gloriosa alçou voo em direção à Espiritualidade Maior. Mas a compaixão que sempre sentira pelos sofredores fez com que a poetisa, em companhia de outros Espíritos caridosos, visitasse constantemente a crosta da Terra. Foi através de Chico Xavier, que ela, pela primeira vez, revelou sua identidade, transmitindo suas poesias enfeixadas em 1932, na primeira edição do Parnaso de Além Túmulo, lançado pela Federação Espírita Brasileira.
 Em sua existência física, Auta de Souza foi a ave cativa que cantou seu anseio de liberdade; o coração resignado, que buscou no Cristo o consolo das bem-aventuranças prometidas aos aflitos da terra. Além do túmulo, é o pássaro liberto e feliz que, tornado ao ninho dos antigos infortúnios, vem trazer aos homens a mensagem de bondade e esperança, o apelo à fé e à caridade, indicando o rumo certo para a conquista da verdadeira vida.
 A Campanha de Fraternidade Auta de Souza, idealizada pelo companheiro Nympho de Paula Corrêa e aprovada, em 3 de fevereiro de 1953, pelo Departamento de Assistência Social, da Federação Espírita do Estado de São Paulo, então dirigido pelo saudoso confrade José Gonçalves Pereira, é uma bela homenagem à nossa querida Poetisa, Auta de Souza.




[1] http://www.oconsolador.com.br/linkfixo/biografias/autadesouza.html

domingo, 29 de janeiro de 2017

O DESPERTAR DA CONSCIÊNCIA ESPIRITUAL[1]



André de Paiva Salum
 

 A vida, considerada sob qualquer aspecto, inclusive o espiritualista, é uma sucessão de eventos e fenômenos de transformação, obedecendo à lei universal da evolução. Tudo no Universo se transforma e se ajusta em contínuo mecanismo de adaptação e aperfeiçoamento.
A evolução anímica é um desenvolvimento gradual da consciência. A cada etapa do processo evolutivo a consciência se expande e amplia as percepções e concepções de si mesma bem como da vida em geral.
Tudo faz parte desse processo universal, inclusive o estágio evolutivo humano. Ocorre que a evolução da consciência não se dá de forma linear, mas em ciclos que se sucedem e se interpenetram. No final de um ciclo e início de outro mais avançado, ocorrem momentos especiais de crise, de alteração de rumo, de mudança de plano vibratório. Em algumas etapas do processo evolutivo, para alcançar maior nível de consciência a pessoa precisa romper com padrões de conduta que não servem mais ao novo estado; portanto existe uma crise de crescimento. Tais situações são como rupturas no padrão de vida que o ser vinha trilhando de modo condicionado, rumando para patamares de maior expressão, lucidez e liberdade.
Após a conquista da autoconsciência, isto é, a percepção de si mesmo como individualidade pensante, desde os primeiros bruxuleios do raciocínio, em tempos remotos, até as conquistas atuais da razão aprimorada, o despertar tem ocorrido em etapas sucessivas de autossuperação.
Na fase atual vem ocorrendo, para uma parcela significativa da humanidade, o gradual despertamento da consciência espiritual, retirando os seres do estado de semiconsciência em que estagiaram por longos períodos e os convidando a novas conquistas evolutivas.
Esse amadurecimento significa a transferência do foco de consciência do ego ou personalidade para o Self, ou Si espiritual. É o despertar para a realidade do que se é, além da condição em que se está.
Tal processo provoca necessariamente mudanças significativas no modo de ser de quem o experimenta. Tudo se lhe apresenta novo: valores, princípios, leis espirituais até então desconhecidas ou desconsideradas, bem como perspectivas de participação ativa nos movimentos renovadores da sociedade e do mundo...
Todos os seres, mais cedo ou mais tarde, passam pelo despertar da consciência espiritual, que significa reconhecer-se cada um como é: espírito imortal, essência divina em estágio temporário na matéria. Como o nome indica, é um verdadeiro despertar do sono da ignorância em que vivia até então. É um abrir os olhos da alma para realidades que se faziam inexistentes para a cegueira seletiva do ego.
A partir desse despertamento, tudo se transforma, desde a percepção do mundo e das circunstâncias, até os relacionamentos e papéis que se desempenha na vida comunitária.
O despertar espiritual requer, naturalmente, mudanças no estilo de vida e o enfrentamento de novos desafios, que se transformam em excelentes oportunidades de crescimento. No início a incompreensão alheia, as críticas gratuitas, a desconfiança quanto à sinceridade dos novos ideais abraçados, tudo pode parecer conspirar contra as novas aquisições, e são impostas por aparentes adversários do progresso, os quais se incomodam com aquele que lhes mostra perspectivas diferentes e mais elevadas de vida. Desde que persevere nos novos ideais, quem despertou para as realidades do espírito, através do amadurecimento interior, do serviço e da ação edificantes, fortalece-se na fé e na confiança e ganha maior motivação para continuar nas tarefas renovadas e renovadoras do destino individual e, consequentemente, coletivo.
Cada ser tem o seu momento de intensificar a luz interior, após longos períodos em que transitou pelas sombras da ignorância. A humanidade, como sabemos, é composta de seres nos mais diversos níveis evolutivos, portanto heterogênea quanto à luz espiritual que cada um pode expressar. Há seres que, desde há muito, já acenderam a luz em si mesmos e a projetaram para o mundo, na condição de mestres, sábios e santos. Muitos outros, até hoje, manifestam o primarismo que ainda lhes caracteriza a conduta. Daí a necessidade da compaixão diante de todos os irmãos do caminho. Da mesma forma que os seres mais evoluídos nos compreendem e respeitam amorosamente as nossas limitações, precisamos exercitar a compaixão diante dos irmãos que, por enquanto, ainda não despertaram para as verdades espirituais que julgamos compreender.
As religiões podem servir como chamamentos ao despertar dos seguidores, desde que representem convite à reflexão, tomada de consciência e renovação de atitudes perante si mesmos e diante da vida. Caso isso não ocorra, o despertar espiritual pode significar a mudança de opção religiosa, quando a crença professada até então não mais responde aos anseios da alma mais amadurecida. Assim, a conscientização individual requer e promove um despertar concomitante dos caminhos religiosos, pois esses também evoluem para atender às necessidades crescentes de esclarecimento e orientação.
A Doutrina Espírita, como revelação dos tempos modernos, é valioso convite ao despertar espiritual para o ser humano contemporâneo, pois apresenta propostas renovadoras e repletas de ensinamentos e consolações. Fala à razão e toca o coração, tendo assim a força de auxiliar aqueles que já se mostram receptivos aos apelos do Alto para se unirem aos servidores da Nova Era de fraternidade que se anuncia para todo o mundo.




sábado, 28 de janeiro de 2017

A MELHORA DA MORTE[1]


 

Richard Simonetti

  

Diante do agonizante o sentimento mais forte naqueles que se ligam a ele afetivamente é o de perda pessoal.
"Meu marido não pode morrer! Ele é o meu apoio, minha segurança!"
"Minha esposa querida! Não me deixe. Não poderei viver sem você!"
"Meu filho, meu filho! Não se vá! Você é muito jovem! Que será de minha velhice sem o seu amparo?"
Curiosamente, ninguém pensa no moribundo.
Mesmo os que aceitam a vida além‐túmulo multiplicam‐se em vigílias e orações, recusando admitir a separação. Esse comportamento ultrapassa os limites da afetividade, desembocando no velho egoísmo humano, algo parecido com o presidiário que se recusa a aceitar a ideia de que seu companheiro de prisão vai ser libertado.
O exacerbamento da mágoa, em gestos de inconformação e desespero, gera fios fluídicos (ver https://www.youtube.com/watch?v=saWecab-7Tk ) que tecem uma espécie de teia de retenção, a promover a sustentação artificial da vida física. Semelhantes vibrações não evitarão a morte.
Apenas a retardarão, submetendo o desencarnante a uma carga maior de sofrimentos.
É natural que, diante de sério problema físico a se abater sobre alguém muito caro ao nosso coração, experimentemos apreensão e angústia. Imperioso, porém, que não resvalemos para a revolta e o desespero, que sempre complicam os problemas humanos, principalmente os relacionados com a morte.
Quando os familiares não aceitam a perspectiva da separação, formando a indesejável teia vibratória, os técnicos da Espiritualidade promovem, com recursos magnéticos, uma recuperação artificial do paciente que, "mais prá lá do que prá cá", surpreendentemente começa a melhorar, recobrando a lucidez e ensaiando algumas palavras...
Geralmente tal providência é desenvolvida na madrugada. Exaustos, mas aliviados, os "retentores" vão repousar, proclamando:
"Graças a Deus! O Senhor ouviu nossas preces!"
Aproveitando a trégua na vigília de retenção os benfeitores espirituais aceleram o processo desencarnatório e iniciam o desligamento. A morte vem colher mais um passageiro para o Além.
Raros os que consideram a necessidade de ajudar o desencarnante na traumatizante transição. Por isso é frequente a utilização desse recurso da Espiritualidade, afastando aqueles que, além de não ajudar, atrapalham. Existe até um ditado popular a respeito do assunto:
"Foi a melhora da morte! Melhorou para morrer!”




[1] Quem tem medo da Morte? - Richard Simonetti

sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

A degeneração do Espiritismo[1]


 
Dalmo Duque dos Santos
 

Comparando a história do Espiritismo com a do Cristianismo Primitivo, podemos tirar algumas conclusões importantes para a o futuro da nossa doutrina e o do seu movimento social.
O Cristianismo, cuja pureza doutrinária do Evangelho e simplicidade de organização funcional dos primeiros núcleos cristãos foi conquistando lenta e seguramente a sociedade de sua época, sofreu com o tempo um desgaste ideológico. Corrompeu-se por força dos interesses políticos, financeiros e institucionais. Os novos adeptos e seus líderes, não conseguindo penetrar na essência do Evangelho, que é regeneração, ou seja, o mergulho doloroso no mundo interior e a reversão das atitudes exteriores, adaptaram o mesmo às suas conveniências psicossociais, atacando suas ideias mais contundentes à moral animalizada, alimentando os mecanismos de defesa da mente, fazendo concessões às fraquezas dos adeptos e desviando-os para o comodismo dos disfarces rituais exteriores. Repressão de forças espirituais espontâneas e ideias consideradas ameaçadoras ao clero, como a mediunidade e a reencarnação; a falsificação de tradições e a adoção do sincretismo dos costumes bárbaros, foram as principais estratégias dessa clericalização do cristianismo.
O resultado de tudo isso é bem conhecido: dois milênios de intolerâncias, violências, atraso espiritual, perpetuação das injustiças sociais, agravamento de compromissos com a lei de ação e reação e forte comprometimento da regeneração do nosso planeta.
Apesar das advertências dos Espíritos e do próprio Allan Kardec quanto aos períodos históricos e tendências do movimento, os espíritas insistem em cometer os mesmos erros do passado. Os mesmos erros porque provavelmente somos as mesmas almas que rejeitaram e desviaram o Cristianismo da sua vocação e agora posamos de puristas ortodoxos, inimigos ocultos do Espírito da Verdade.
Negligentes com a oração e a vigilância, cedemos constantemente aos tentáculos do poder e da vaidade. Desprezamos a toda hora a ideia do “amai-vos e instruí-vos”, entendendo-a egoisticamente, ora como fortalecimento intelectual competitivo, ora como o afrouxamento dos valores doutrinários. Não conseguindo nos adaptar ao Espiritismo, compreendendo e vivenciando suas verdades, vamos aos poucos adaptando a doutrina aos nossos limites, corrompendo os textos da codificação, ignorando a experiência histórica de Allan Kardec e dos seus colaboradores, trazendo para os centros espíritas práticas dogmáticas das nossas preferências religiosas, hábitos políticos das agremiações que frequentamos e mais comumente a interferência negativas dos nossos caprichos e vaidades pessoais.
Como os primeiros cristãos, também lutamos pelo crescimento de nossas instituições, deixando-nos seduzir pelo mundo exterior e imitando os grupos já pervertidos, construindo palácios arquitetônicos, cuja finalidade sempre foi causar impressão aos olhos e a falsa ideia de prestígio político; e dentro deles praticamos as mesmas façanhas da deslealdade, das rivalidades, das perseguições aos desafetos, da autoafirmação e liderança autoritária, de crítica e boicote às ideias que não concordamos.
E, finalmente, cultivamos uma equívoca concepção de unificação, esperando ingenuamente que a nossas ideias e grupos sejam majoritários num Grande Órgão Dirigente do Espiritismo Mundial, do nosso imaginário, e muitas outras tolices e fantasias que nem vale a pena enumerar aqui.
E assim caminhamos, unidos em nossas displicências e divididos nas responsabilidades. Preferimos esquecer figuras exemplares que atuaram na Sociedade Espírita de Paris quando ignoramos nossa história sabiamente registrada na Revista Espírita. Deixamos de lado líderes agregadores – ainda que divergências normais e toleráveis existissem entre eles – para ouvir e nos deixar dominar por um disfarçado clero institucional, comando por vozes medíocres e ciumentas, figueiras estéreis, sofistas encantadores e improdutivos, enfim, velhas almas e velhas tendências, vinho azedo e frutas podres em nossos mais caros celeiros doutrinários.
Mas como evitar esse processo de corrupção e, em alguns casos notórios, de contaminação e má conduta? Como reverter a situação para reconduzir essas experiências para os rumos verdadeiramente espíritas? O que fazer com as más instituições, com os maus dirigentes, os maus médiuns, maus comunicadores, enfim os maus espíritas? Devemos identificá-los e expulsá-los dos nossos quadros? Devemos denunciá-los e discriminá-los como fazia a Inquisição com os acusados de heresia? Devemos queimá-los em praça pública, censurá-los em nossas bibliotecas ou então deixar que a própria comunidade espírita pratique o livre arbítrio e aprenda a fazer escolhas corretas e adequadas às suas necessidades?
O Espiritismo foi certamente uma doutrina elaborada por Espíritos Superiores e isto nos deixa tranquilos quanto ao seu futuro doutrinário. Mas o seu movimento vem sendo feito por seres humanos, espíritos ainda imaturos e inexperientes. Isso realmente tem nos deixado muito preocupados, pois sabemos que, hoje, os inimigos do Espiritismo estão entre os próprios espíritas.




 

quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

POBRES DE ESPÍRITO E ESPÍRITOS POBRES[1]

 


“Bem-aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus.”
(Mateus, V: 3)

 
Deus quer Espíritos ricos de amor e pobres de orgulho. Os “pobres de espírito” são os que não têm orgulho, os espíritos ricos são os que acumulam tesouros nos Céus, onde a traça não os rói e os ladrões não os alcançam.

Os “pobres de espírito” são os humildes, que nunca mostram saber o que sabem, e nunca dizem ter o que têm; a modéstia é o seu distintivo, porque os verdadeiros sábios são os que sabem que não sabem!

É por isso que a humildade se tornou cartão de ingresso no Reino dos Céus.

Sem a humildade, nenhuma virtude se mantém. A humildade é o propulsor de todas as grandes ações e rasgos de generosidade, seja na Filosofia, na Arte, na Ciência, na Religião.

Bem-aventurados os humildes; deles é o Reino dos Céus!

Os humildes são simples no falar; sinceros e francos no agir; não fazem ostentação de saber nem de santidade; abominam os bajulados e servis e deles se compadecem.

A humildade é a virgem sem mácula que a todos discerne sem poder ser pelos homens discernida.

Tolerante em sua singeleza, compadece-se dos que pretendem afrontá-la com o seu orgulho; cala-se às palavras loucas dos papalvos; suporta a injustiça, mas folga com a verdade!

A humildade respeita o homem, não pelos seus haveres, mas por suas virtudes. A pobreza de paixões, de vícios, de baixas condições que prendem ao mundo, e o desapego de efêmeras glórias, de egoísmo, de orgulho, amparam os viajores terrenos que caminham para a perfeição.

Foi esta a pobreza que Jesus proclamou: pobreza de sentimentos baixos, pobreza de caráter deprimido. Quantos pobres de bens terrenos julgam ser dignos do Reino dos Céus, e, entretanto, são almas obstinadas e endurecidas, são seres degradados que, sem coberta e sem pão, repudiam a Jesus e se fecham nos redutos de uma fé bastarda, que, em vez de esclarecer, obscurece, em vez de salvar, condena!

Não é a ignorância e a baixa condição que nos dão o Reino dos Céus, mas, sim, os atos nobres: a caridade, o amor, a aquisição de conhecimentos que nos permitam alargar o plano da vida em busca de mais vastos horizontes, além dos que avistamos!

Se da imbecilidade viesse a “pobreza de espírito” que dá o Reino dos Céus, os néscios, os cretinos, os loucos não seriam fustigados na outra vida, como nos dizem que são, quando de suas relações conosco.

Pobres de espírito são os simples e retos, e não os orgulhosos e velhacos; pobres de espírito são os bons que sabem amar a Deus e ao próximo, tanto quanto amam a si próprios.

Pobres de espírito são os que estudam com humildade, são os que sabem que não sabem, são os que imploram de Deus o amparo indispensável às suas almas.

Para estes é que Jesus disse: “Bem aventurados os pobres de espírito, porque deles é o Reino dos Céus.”




[1] Parábolas e Ensinos de Jesus - Cairbar Schutel

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

Nova teoria explica o que gerou a inteligência humana: bebês incapazes[1] [2]


 
Denis Russo Burgierman – 17/06/2016
 

Bebês indefesos demandam pais espertinhos, que por sua vez geram filhos de cabeça grande, portanto indefesos.
Um dos maiores mistérios que desafiam a inteligência humana é ela própria. Como explicar que nós, homo sapiens, tenhamos cérebros capazes de teoremas, teorias científicas e seriados de TV, num mundo em que nenhuma outra espécie foi muito além dos grunhidos e das ferramentas de pau e pedra? O mistério é entender por que diabos temos tão mais desse negócio do que os outros. A evolução costuma ser pão-dura: ela dá às espécies apenas o que elas precisam para sobreviver - nem 1 miligrama a mais. Afinal, evoluir é caro. Ganhar novos equipamentos no nosso corpo custa o preço de precisar encontrar mais comida para manter esse equipamento funcionando. Este cérebro gigante entre as suas orelhas consome 25% do oxigênio e 20% da energia do seu corpo - por que diabos estamos gastando tanto com um equipamento tão mais potente que o de qualquer outro? Não deveria bastar ser só um tiquinho mais inteligente que a competição?
Dois pesquisadores da Universidade de Rochester, no estado de Nova York, encontraram uma resposta elegante para esse antigo mistério. Num artigo que eles acabam de publicar na revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos, eles concluíram que a grande razão para sermos tão espertinhos é o tanto que nossos bebês são indefesos. Afinal, para manter um bebê humano vivo, é preciso saber juntar lé com cré. Por mais de 9 meses, o bichinho é incapaz de basicamente qualquer coisa: não consegue nem se virar sozinho, quanto mais se proteger de uma ameaça. Se quiserem legar seus genes à próxima geração, os pais têm que ser capazes de planejar o futuro, prever ameaças, calcular probabilidades, ou seja, precisam de uma inteligência extraordinária. "É muito difícil imaginar que adultos de qualquer outra espécie consigam fazer vingar uma criança humana", diz a pesquisa. Nenhuma outra espécie tem bebês tão incapazes: uma girafa recém-nascida leva minutos para sair andando depois que sai do útero da mãe.
Acontece que, para sermos mais inteligentes, precisamos de cabeças maiores, capazes de acomodar o cerebrão. E o cabeção resultante acaba tornando os bebês ainda mais indefesos: um pimpolho humano leva três meses para ser capaz de simplesmente sustentar o crânio sobre o pescoço. Demoramos tanto para aprender a andar porque não é mole sustentar aquele coco no nosso corpinho mirrado. A consequência é um ciclo de feedback positivo, que é como os cientistas da complexidade chamam um processo no qual o aumento de uma coisa faz com que essa mesma coisa aumente, por sua vez causando mais aumento ainda. Bebês indefesos exigem pais inteligentes, que por sua vez geram bebês mais cabeçudos, demandando pais ainda mais inteligentes, que, portanto geram bebês ainda mais cabeçudos, e, portanto mais indefesos - e assim por diante. Feedbacks positivos geralmente são a explicação para situações nos quais uma espécie tem muito mais de algo do que qualquer outra (o tamanho do pescoço da girafa, as especificidades do nariz do elefante, a capacidade de cálculo, abstração e narrativa dos humanos).
A bela teoria, elaborada pelos neurocientistas Steven Piantadosi e Celeste Kidd, não é muito fácil de provar, já que não há jeito de reproduzir em laboratório o processo evolutivo que aconteceu ao longo de dezenas de milhares de anos. Mas Piantadosi e Kidd tiveram uma boa ideia: programaram num computador o modelo matemático dessa dinâmica evolutiva - e o resultado que encontraram é consistente com a teoria. Aí, para confirmar, usaram o mesmo modelo para investigar outras espécies de mamíferos, e perceberam que realmente existe uma correlação entre incapacidade dos bebês e inteligência da espécie.
Não significa, é claro, que essa seja a única explicação para a inteligência humana. A evolução é um processo complexo e geralmente as causas de qualquer coisa são múltiplas e interconectadas. Alguns pesquisadores acreditam que a inteligência humana seja em parte algo semelhante à cauda de um pavão: um instrumento exageradamente exuberante de atração sexual, que serve para sinalizar aos parceiros que o indivíduo é tão saudável que está podendo desperdiçar energia e oxigênio com um equipamento muito mais potente do que o necessário. Mas a teoria do cabeção sexy tinha buracos - que parecem ter sido preenchidos com a nova pesquisa.
 
Jorge Hessen[3] comenta
O cálculo do biólogo Ernst Mayr, da Universidade Harvard, sobre a possibilidade de a natureza produzir seres inteligentes pelos processos evolutivos conhecidos é quase uma sugestão de que os seres humanos são mesmo produtos “sobrenaturais”. De 30 milhões de espécies vivas atualmente e de cerca de 50 bilhões de outras espécies vivas ou que já viveram e desapareceram, somente o homo sapiens desenvolveu inteligência superior.
Sabe-se que o homo sapiens surgiu na África Oriental entre 190.000 e 160.000 anos atrás, depois se espalhou para o leste do Mediterrâneo em torno de 100.000 a 60.000 anos atrás, e pode ter chegado na China há 80.000 anos passados. Atualmente os seres humanos estão distribuídos em toda a Terra. O homo erectus, uma pré-espécie crucial na evolução do ser humano atual (homo sapiens), que parece ter evoluído em solo africano há cerca de 1,8 milhões de anos, migrando posteriormente para a Ásia e depois para a Europa. Porém, foi há apenas 6.000 ou 8.000 anos a.C. que alguns homens abandonaram por fim a vida selvagem e deram-se à árdua agricultura que tornou possível o aparecimento das primeiras aldeias sedentárias no Oriente Médio. Os primórdios de nossa civilização urbana remontam aos mais primitivos sítios neolíticos, em Jericó, cerca de 6.000 a.C., e em Jarmo, no Iraque, cerca de 4.500 a.C.
Hoje, como explicar que nós, homo “erectus/sapiens”, tenhamos cérebros capazes de teoremas, teorias científicas e seriados de TV, num mundo em que nenhuma outra espécie foi muito além dos grunhidos e das ferramentas de pau e pedra. Analistas materialistas argumentam que o fator causador da inteligência humana se restringe à incapacidade dos bebês. Para os acadêmicos devaneadores os nenéns indefesos motivaram evolução da inteligência, afinal, não há nenhuma outra espécie de bebês tão “incapazes” como os humanos. Dizem!
Em verdade, a Terra não é o ponto de partida da primeira encarnação humana. O período da humanização começa, geralmente, em mundos ainda inferiores à Terra. Isto, entretanto, não constitui regra absoluta, pois pode suceder que um Espírito, desde o seu início humano, esteja apto a viver na Terra. Não é frequente o caso; constitui antes uma exceção. Nos seres inferiores, cuja totalidade estamos longe de conhecer, é que o princípio inteligente se elabora, se individualiza pouco a pouco e se ensaia para a vida. É, de certo modo, um trabalho preparatório, como o da germinação, por efeito do qual o princípio inteligente sofre uma transformação e se torna Espírito. Entra então no período da humanização, começando a ter consciência do seu futuro, capacidade de distinguir o bem do mal e a responsabilidade dos seus atos.
“Em verdade, o princípio inteligente consumiu, desde os vírus e as bactérias das primeiras horas do protoplasma na Terra, mais ou menos quinze milhões de séculos [1 bilhão e meio de anos], a fim de que pudesse, como ser pensante, embora em fase embrionária da razão, lançar as suas primeiras emissões de pensamento contínuo (inteligência humana) para os Espaços Cósmicos [4]”. Diz-se que a força anímica no mineral é atração, no vegetal é sensação, no animal é instinto, no homem é razão e no anjo é divindade. Nessa direção caminha Léon Denis quando propõe a sua versão romântica e da evolução proferindo: que o princípio inteligente dorme na pedra, sonha na planta, agita-se no animal e desperta no homem. Ou seja: Na planta, a inteligência dormita; no animal, sonha; só no homem acorda, conhece-se, possui-se e torna-se consciente.
A inteligência é o atributo essencial do Espírito, em razão do qual toma ele conhecimento de sua própria existência e exerce atividades voluntárias e livres. Quando o Espírito atinge o grau de humanização, sua inteligência adquire desenvolvimento superior, como o surgimento da razão e do senso moral, que lhe facultam a capacidade de conceber e reconhecer a existência de Deus. Sendo a inteligência, em sua plenitude, a faculdade de pensar e agir racional e deliberadamente, os atos inteligentes são conscientes, voluntários, livres e calculados. São, além disso, suscetíveis de variações, porque a inteligência, variável e individual por excelência, é suscetível de progresso.
É bem verdade que o patinho logo que rompe a casca do ovo que o mantinha encerrado, se vê próximo de um córrego ou um lago, por instinto corre alegremente para ele e lança-se na água, nadando imediatamente com perfeição. Onde aprendeu o pato a nadar? São igualmente instintivos o ato do castor, que constrói sua casa com terra, água e galhos de árvores; o ato dos pássaros, que constroem com perfeição seus ninhos; o ato da aranha, que tece com precisão sua teia. Veem-se já aí alguns dos caracteres do instinto: é algo inato, perfeito e específico, ou seja, surge espontaneamente, sem prévia aprendizagem, em todos os indivíduos de uma mesma espécie e leva a atos completos, acabados, perfeitos, desde a primeira vez que são realizados.
Descrevem os Espíritos que a inteligência humana se comparada entre alguns homens e certos animais, percebe-se, muitas vezes, que é notória os animais terem a “inteligência” superior. Por isso, é difícil estabelecer uma linha de demarcação em alguns casos. Porém, ainda assim, o homem é um Ser à parte, que desce, às vezes, muito baixo [irracionalidade] ou pode elevar-se muito alto. “É bem verdade que o instinto domina a maioria dos animais; mas há os que agem por uma vontade determinada, ou seja, percebemos que há uma certa inteligência animal, ainda que limitada [5]”.
Na questão 593 de O Livro dos Espíritos, os benfeitores espirituais esclarecem que nos animais há mais do que simplesmente instintos. Há neles certa inteligência incipiente ou limitada. E para não deixar dúvidas, na pergunta 597, informam que esta inteligência capaz de, em pequeno grau, atenuar o determinismo biológico, dando-lhes um pouco de liberdade de ação e expressão de vontade íntima, sobrevive ao corpo físico. Não é, ainda, propriamente, um Espírito, alma humana encarnada, mas o princípio inteligente que faz parte da cadeia evolutiva referida na questão 540 [6].
A inteligência é uma propriedade comum, um ponto de contato entre a alma dos animais e a do homem. Porém os animais só possuem a inteligência da vida material. No homem, a inteligência proporciona a vida moral. O princípio inteligente que constitui a Alma de natureza especial de que são dotados provém do elemento inteligente universal. Emanam de um único princípio a inteligência do homem e a dos animais. Porém, no homem, passou por uma elaboração que a coloca acima da que existe no animal.
Somente com a cooperação do Espiritismo poderá a ciência definir a sede da inteligência humana, não nos complexos nervosos ou glandulares do corpo perecível, mas no espírito imortal. Os valores intelectivos representam a soma de muitas experiências, em várias vidas do Espírito, no plano material e espiritual. Uma inteligência profunda significa um imenso acervo de lutas planetárias e extrafísicas. Atingida essa posição, se o homem guarda consigo uma expressão idêntica de progresso espiritual, pelo sentimento, então estará apto a elevar-se a novas esferas do Infinito, para a conquista de sua perfeição.




[2] Matéria publicada na Revista Superinteressante, em 30 de maio de 2016.
[3] Jorge Hessen é natural do Rio de Janeiro, nascido em 18/08/1951. Servidor público federal aposentado do INMETRO. Licenciado em Estudos Sociais e Bacharel em História. Escritor (dois livros publicados), Jornalista e Articulista com vários artigos publicados.
[4] Xavier, Francisco Cândido. Evolução em Dois Mundos, ditado pelo Espírito André Luiz, cap. VI , Rio de Janeiro: Ed. FEB, 2012.
[5] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, Rio de Janeiro: Ed. FEB, 2001, perg. 592.
[6] Kardec, Allan. O Livro dos Espíritos, Rio de Janeiro: Ed. FEB, 2001, pergs. 593, 597, 540.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

O ACIDENTE PROVIDENCIAL[1]

 


Martinho Sousa era rapaz inteligente, muito culto, mas excessivamente confiado a ideias fixas.
Após firmar esse ou aquele ponto de vista, não cedia a ninguém no campo da opinião.
Renovava os pareceres que lhe eram peculiares somente à força de fatos e, assim mesmo, apenas quando os acontecimentos lhe ferissem os olhos. Declarava-se absoluto nas interpretações e, rebelde, brandia pesada argumentação sobre quantos lhe não aderissem ao modo de ver.
Dentro de semelhantes características, foi colhido na trama sutil de terrível obsessão.
A influenciação deprimente das entidades infelizes envolveu-lhe o campo mental em rede extensa de vibrações perturbadoras. E o desequilíbrio psíquico progrediu singularmente, senhoreando-lhe o sistema nervoso.
O desventurado amigo começou por abandonar o trabalho diuturno, recolhendo-se ao ambiente domestico, onde se consagrou ao exame particularizado do próprio caso, enquanto se alarmavam a esposa e os filhos pequeninos do casal...
Martinho alimentava conversações estranhas, gesticulava a esmo, esbugalhava os olhos como se fixasse horrendas paisagens, dominado de incoercível pavor.
Não chegava a identificar as sombras que o cercavam, ameaçadoras e inflexíveis na perseguição sem tréguas; no entanto, assinalava-lhes a presença e captava-lhes os pensamentos sinistros, em forma de cruéis sugestões.
Atacado de insônia insistente, não se aquietava senão durante alguns minutos, pela madrugada, para o descanso corporal, gastando as horas em movimentação anormal e excitante, através dos aposentos, ao jardim e do quintal, errando sempre, obcecado por invisíveis malfeitores.
De quando em quando, alguém comentava a situação, convidando-o a estudar a suposta enfermidade, à luz do Espiritismo renovador, mas o teimoso doente se retraía nas interpretações científicas.
Tratava-se, dizia ele convicto, de choques sucessivos no sistema nervoso, agravados por uma avitaminose significativa. Além disso, acrescentava, padecia enorme deficiência no pâncreas. Não se lhe processava a nutrição com a regularidade devida e via-se esgotado em vista da assimilação imperfeita.
Os companheiros de luta, interessados em seu bem-estar, não conseguiam demovê-lo.
O obsidiado tecia longas considerações de natureza técnica e relacionava diagnósticos complicados.
Lia, atencioso, as anotações médicas, referentemente aos sintomas que lhe diziam respeito e, para refutar os amigos, trazia à conversação, exasperado e irritadiço, textos e gravuras de natureza científica para exaltar os próprios males. Agravava-se-lhe o tormento dia a dia.
Assim, atingira Martinho perigosa posição mental.
Os adversários de sua paz subtraíram-no, quase totalmente, à alimentação e acentuaram-lhe as preocupações na vigília enfermiça.
Horas a fio mantinha-se na estranha contemplação de paisagens horríveis, na tela escura do pensamento atormentado.
Piorando-se-lhe a situação, os benfeitores espirituais, que por ele se interessavam, multiplicaram recursos de salvação, mobilizando novos colaboradores encarnados, de maneira indireta, que passaram a visitar o enfermo por verdadeiros emissários da solução indispensável.
Eram portadores de consolação, remédio, esclarecimento e luz; entretanto, o doente não se abria ao socorro que se lhe dispensava.
Bastaria escutar calmamente a leitura de algumas páginas espiritualizantes e encontraria em si mesmo o recurso à reação; todavia, negava-se ele, impaciente e menos delicado.
– Influências de ordem psíquica? – indagava, exaltado, aos visitantes – é rematada maluquice de vocês. Sou vítima de exaustão geral por falta de suprimento vitaminoso adequado. Estou arrasado. Tenho o fígado apático, os rins intoxicados e os intestinos inertes...
E estendendo o braço magríssimo, na direção dum velhinho prestimoso que o visitava com frequência, exclamava, estentórico:
– E o senhor, “seu” Luís, ainda me vem falar de atuação do outro mundo?! Não será ironia de sua parte?
Silenciavam os circunstantes, desapontados.
Luís Vilela, o ancião citado nominalmente pelo enfermo, traduzindo o pensamento de abnegados mentores invisíveis, retrucava sem irritação:
– Deveria você, Martinho, acalmar-se convenientemente para o exame das necessidades próprias. Como julgar, com tanto rigor, princípios edificantes e curativos que você absolutamente não conhece? Não devemos condenar sem base firme.
Não sabe a quantos distúrbios pode ser conduzido um homem, sob perseguições ocultas.
Sei que o seu estado de agora impede a leitura meditada; entretanto, proponho-me a ler para os seus ouvidos e a prestar os esclarecimentos que se fizerem indispensáveis. Creio aprenderá você, desse modo, a consolidar as próprias energias e a refletir com mais clareza, repelindo as sugestões inferiores, mesmo porque, meu amigo, em qualquer processo de remediar a saúde do corpo, é imperioso sanear a mente.
O rebelde obsidiado, porém, não atendia. Não se detinha convenientemente nem mesmo para registrar as considerações de ordem afetiva. Andava, nervosamente, dum lado para outro, torcendo as mãos ou gesticulando sem propósito, gritando blasfêmias e queixas. Não aparecia recurso com que se pudesse sossegá-lo no leito.
Quase desalentados, consultavam-se os amigos entre si.
E não só no círculo dos encarnados sobravam as preocupações. Os enfermeiros espirituais partilhavam aflições e receios. Martinho não oferecia campo adequado ao entendimento e, por essa razão, os algozes intangíveis ganhavam terreno franco.
Prosseguia o perigoso impasse, quando, certa noite, um dos verdugos sugeriu ao doente a ideia de galgar a velha mangueira do quintal, no sentido de respirar atmosfera mais pura.
O doente assimilou a ideia, encantado, sem perceber que o inimigo intentava precipitá-la ao solo, em queda espetacular.
Recebeu o alvitre capcioso e gostou.
Aguardaria as primeiras horas da madrugada, quando a pequena família descansasse nos domínios do sono. Procuraria o ar rarefeito na copa da árvore antiga. Possivelmente conquistaria forças novas ao contato das mais altas correntes atmosféricas.
Reconhecendo-lhe a disposição firme na execução do projeto, alguns colaboradores espirituais buscaram o diretor de suas atividades, a fim de traçarem normas para socorro urgente.
O chefe, contudo, ponderou, muito calmo:
– Não podemos violentar o nosso Martinho no que se reporta à preferência individual. Se ele estima a orientação dos que lhe tramam a perda, como evitar que sofra as consequências justas?
Deixemo-la confiar-se à dolorosa prova. Talvez esteja dentro dela a chave da solução que ambicionamos.
Efetivamente, ao raiar do dia, o enfermo sofreu desastrosa queda de grande altura, após escalar, facilmente, a velha mangueira escorregadia e muito alta.
Aos gritos de dor, foi socorrido pelos familiares e companheiros inquietos. Em seguida, veio o médico que o amarrou no leito para a restauração de ambas as pernas quebradas.
Foi então que Martinho Sousa, imobilizado no gesso, pôde ouvir a leitura reconfortante de Luís Vilela, partilhar os serviços de oração e receber passes curativos, libertando-se da obsessão terrível e insidiosa.
Transcorridas algumas semanas, quando conseguiu locomover-se, era outro homem. Sua queda da mangueira fora o remédio providencial.




[1] Pontos e Contos – pelo irmão X – psicografado por Francisco C. Xavier