sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

A OMISSÃO E AS SUAS CONSEQUÊNCIAS ESPIRITUAIS[1]

 

William Blake -"Os anjos bons e maus"


Anselmo Ferreira Vasconcelos

 

Toda criatura humana retorna à ribalta da vida material carregando em seu átrio um conjunto de metas a cumprir, isto é, fracassos e desajustes a reparar, virtudes e capacitações a desenvolver, aprendizados para aperfeiçoar o comportamento e os sentimentos, lições de vida para assimilar e situações de testemunho, que aferirão, por fim, o seu real progresso espiritual. As experiências redentoras serão mais ou menos acentuadas a depender dos seus compromissos e débitos perante as leis divinas.

Nesse sentido, cada um de nós tem a sua própria história de erros e desacertos. E por não termos alcançado a necessária elevação, tropeçamos, não raro, em nossas imperfeições e defeitos milenares.

No decorrer da vida, a maioria das pessoas tende a internalizar o dever de não praticar o mal e realizar o bem. Ocorre que, entre esses dois extremos, há um estágio intermediário representado pela omissão comportamental. Trata-se de uma postura igualmente comprometedora à evolução das criaturas, embora muito praticada, conforme atestam as evidências. Aliás, cabe destacar que muitas atrocidades foram cometidas ao longo da trajetória humana devido à omissão dos atores envolvidos. O próprio Jesus, nas horas mais pungentes do seu messianato, sentiu-a através do abandono dos seus seguidores e beneficiados.

O assunto merece profunda reflexão, já que vivemos num mundo onde a noção do bem não foi devidamente instalada não apenas por causa da prevalência do mal, mas também pela nossa omissão em sufocá-lo. Allan Kardec explorou o tema na questão 642, d’O Livro dos Espíritos, ao indagar as entidades espirituais o seguinte:

− Para agradar a Deus e assegurar a sua posição futura, bastará que o homem não pratique o mal?

− Não; cumpre-lhe fazer o bem no limite de suas forças, porquanto responderá por todo mal que haja resultado de não haver praticado o bem.

Notem que a neutralidade aqui em nada contribuí para o bem-estar espiritual do indivíduo claudicante.

O assunto é retomado na obra O Céu e o Inferno no trecho:

[...] Não fazer o bem quando podemos é, portanto, o resultado de uma imperfeição. Se toda imperfeição é fonte de sofrimento, o Espírito deve sofrer não somente pelo mal que fez como pelo bem que deixou de fazer na vida terrestre.

Segue daí, portanto, que a ausência de atitudes concretas na direção do bem provoca consideráveis infortúnios ao Espírito tergiversante. Assim sendo, consoante a conclusão do Codificador, “A cada um segundo as suas obras, no Céu como na Terra — tal é a lei da Justiça divina”.

Quando olhamos a abundante imperfeição presente nas instituições, nos governos, nos ambientes de trabalho, no funcionamento das sociedades e sobretudo nas relações humanas, identificamos também que o imperativo do bem não é uma prioridade. Infelizmente, deixamos de praticá-lo em situações e contextos onde a nossa boa vontade e empatia são altamente requeridas. Não cogitamos que pequenas ações e iniciativas de nossa parte poderiam ser implementadas, o que certamente redundariam em benefícios aos nossos semelhantes. Com efeito, o nosso engajamento em fazer o bem, além de ajudar em nossa própria autoiluminação, atenua as agruras dos nossos irmãos. Desse modo, evitar a prática maléfica constitui apenas um dos nossos desafios. Mas não é suficiente à nossa evolução.

Por isso, alerta-nos com propriedade o Espírito Emmanuel, no livro “Justiça Divina” (psicografia de Francisco Cândido Xavier):

Asseveras não haver praticado o mal; contudo, reflete no bem que deixaste a distância.

Não permitas que a omissão se erija em teu caminho, por chaga irremediável.

Imagina-te à frente do amigo necessitado a quem podes favorecer.

Não te detenhas a examinar processos de auxílio.

[...]

Não percas a divina oportunidade de estender a alegria.

[...]

Faze, em cada minuto, o melhor que puderes.

 

Contudo, deixamos de fazer por inúmeras razões – até por pura indiferença, ou casuísmo – coisas boas e positivas que, em muitas ocasiões, estão ao nosso alcance e não exigem nenhum grande esforço de nossa parte em realiza-las. Mais ainda: não percebemos que elas poderiam aliviar a cruz dos nossos irmãos de jornada. Desperdiçamos, devido à nossa incúria e imaturidade espiritual, oportunidades excepcionais de fazer brilhar a nossa luz através dos sublimes mecanismos da solidariedade, compaixão e boa-fé. Não cogitamos que nessas ocasiões estamos sendo efetivamente testados pela providência divina. Não lembramos – muito menos deduzimos − que concordamos em assumir e executar tarefas benéficas em prol dos outros. No entanto, diante da oportunidade sagrada normalmente fracassamos. Lamentavelmente, o comportamento omisso continua causando consideráveis aflições em nosso mundo.

O Espírito Joanna de Ângelis, na obra “Celeiro de Bênçãos” (psicografia de Divaldo Pereira Franco), faz observações contundentes a respeito. Por exemplo, a elevada entidade afirma que:

A omissão, no entanto, é responsável pelo desmoronamento de ideais enobrecedores com que a Humanidade sempre foi contemplada, porquanto estimula a desordem, no silêncio conivente; açula a ira, pela morbidez que dissemina; favorece a fuga dos dubitativos que se resolvem pela atitude mais fácil. Omissão, é, também, ausência de firmeza de caráter, covardia moral.

Para ela ainda,

O cristão omisso é alguém em vias de decomposição emocional, que está em processo de morte sem o perceber. Desse modo, constrói sempre e convictamente o bem em toda parte, comunicando entusiasmo e otimismo, descobrindo, por fim, que o contágio do amor e da esperança...

Por outro lado, é comum nos queixarmos dos problemas e obstáculos que surgem desafortunadamente em nosso caminho. São experiências – perfeitamente evitáveis, em muitos casos − sofríveis que adicionam mais transtorno às nossas vidas. Sendo essa a realidade, meditemos se, de nossa parte, também nós contribuímos para isso devido à nossa omissão e silêncio diante das coisas erradas. Vivendo num mundo onde a imperfeição tudo abarca, podemos, pelo menos em nossa esfera de ação, averiguar se o comportamento omisso ainda nos inspira. Com efeito, chegar no plano espiritual carregando tal passivo só nos fará mal.



[1] O CONSOLADOR - Ano 16 - N° 803 - 18 de Dezembro de 2022 - http://www.oconsolador.com.br/ano16/803/ca2.html

quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

PERDOAR FALHAS[1]

 

Pierre-Auguste Cot -  "The Beggar Girls" (Caridade para minha irmã)



Miramez

 

Pode-se pedir eficazmente a Deus o perdão das faltas?

− Deus sabe discernir o bem e o mal: a prece não oculta as faltas. Aquele que pede a Deus o perdão de suas faltas não o obtém se não mudar de conduta. As boas ações são a melhor prece, porque os atos valem mais do que as palavras.

Questão 661/O Livro dos Espíritos

 

Há muitas religiões que asseguram e têm esperança de que Deus perdoa todas as faltas cometidas, por apenas um simples arrependimento. Como se enganam esses irmãos! Não há perdão de faltas para ninguém; se assim fosse, seria para todas as criaturas, pois todos são filhos do mesmo Deus, e como Ele é amor, não poderia perdoar uns e deixar outros sob o peso das consequências que são geradas das faltas.

Somente o ofendido é que deve perdoar ao ofensor, e isso não faz com que o ofensor se liberte das faltas cometidas; a lei cobra dele o ato de desamor para com seu irmão em caminho. Se o ofendido não perdoar, o revide faz com que ele entre na faixa do ofensor e com ele se afine nas suas inferioridades.

A oração, mesmo a mais requintada nos sentimentos de amor, não esconde as faltas. O perdão que nós mesmos podemos nos oferecer ante os nossos erros é a corrigenda dos nossos deslizes, é não mais dar vazão às paixões inferiores. Vejamos o que responde sobre esse assunto, O Livro dos Espíritos:

Aquele que a Deus pede perdão de suas faltas só o obtém mudando de proceder.

Ninguém sobe sem mudanças, e essas mudanças haverão de ser permanentes. Elas se fazem pela lei do progresso em todos os setores da vida física e espiritual. Se queres orar com mais segurança, faze boas ações; é a melhor oração, abrindo os horizontes da mente para compreender a Deus e as Suas leis espirituais. A prece tem uma escala muito grande, de modo que todos possam orar de acordo com a elevação alcançada. O mundo espiritual atende a cada um conforme as suas necessidades.

Aqui, estamos falando para aqueles que já abriram os olhos à luz da verdade. Espíritas, se achais que já granjeastes conhecimentos capazes de vos libertarem da escravidão da ignorância, colocai em ação o que aprendestes. Não percais tempo! O tempo passa e se não trabalhardes no aprimoramento de vós mesmos, a ignorância ficará, e permanecendo ela em vossos caminhos, ela será sinônimo de sofrimento. Não fiqueis de braços cruzados esperando perdão e tornando a cometer faltas; o arrependimento é válido, tomando-se uma posição e seguindo outras diretrizes que a verdade determinar.

Nem Deus nem Cristo perdoam a ninguém; eles dão aos de boa vontade oportunidades de regenerar, de entrarem nas mudanças para que a luz possa nascer no coração. As faltas que se comete são processos de despertamento espiritual, porque onde o amor não dá resultado é preciso que venha a dor. Ninguém engana a Deus. Ele de tudo sabe, principalmente no que se refere aos Seus filhos, que preferem o caminho mais fácil.

A Doutrina dos Espíritos abre os braços, como sendo a misericórdia de Jesus para a humanidade, e fala de novo para todas as criaturas que padecem:

Vinde a mim, todos vós que sofreis, que eu vos aliviarei.

O Espiritismo chegou à Terra acertando caminhos e indicando roteiros para todos os povos.

Quando as criaturas reconhecerem o patrimônio que têm dentro de si, indicado pela Doutrina dos Espíritos, não vão mais se interessar, do modo que buscam tanto, pelos valores externos; passarão a estudar com maior fulgor a vida por dentro, onde se encontra até o próprio Deus, na Sua maior expressão de luz, dirigindo e alimentando as consciências.

Não espereis acomodados, o perdão de Deus; ele pertence a vós. Vede o que fazeis com as mãos, e copiai as mãos de Jesus, que nunca pararam. Operai com Ele em todos os rumos, que Deus acenderá em vós a própria luz.



[1] Filosofia Espírita – Volume 13 – João Nunes Maia

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

CONSCIÊNCIA PERSPECTIVA POST-MORTEM[1]

 


Stephen Braude

 

Como uma pessoa falecida poderia ver eventos no mundo físico na ausência de um corpo com órgãos dos sentidos? O filósofo Stephen Braude considera as dificuldades que esse problema representa para os defensores da sobrevivência post-mortem.

 

O desafio

Um desafio enfrentado pelos defensores da sobrevivência, ou sobrevivencialistas, é explicar como a consciência post-mortem e o conhecimento do mundo físico atual podem ocorrer na ausência de um corpo físico – um corpo que experimenta o mundo e o representa com precisão suficiente para ser a base de relatórios post-mortem verídicos.

Isso é um desafio porque os comunicadores mediúnicos muitas vezes respondem adequadamente e descrevem corretamente – e, de fato, afirmam experimentar – o que está acontecendo atualmente no mundo físico. No entanto, nossas percepções visuais e auditivas cotidianas são perspectivas – isto é, eles se apresentam a nós relativos e a partir da perspectiva específica de nossa localização no espaço. É por isso que nossas experiências de ver e ouvir são sempre de um ponto de vista. Vemos e ouvimos coisas à direita, à esquerda ou à frente e a uma certa distância. Claro, explicamos a natureza perspectiva dessas experiências com referência ao fato de que nossos receptores sensoriais ocupam posições específicas no espaço. Mas como os sobreviventes podem acomodar a consciência perspectiva post-mortem se, por hipótese, os comunicadores sobreviventes não têm corpos, nem receptores sensoriais e não ocupam literalmente uma posição no espaço?

 

Estratégia inicial de sobrevivência

As alegações dos comunicadores mediúnicos parecem ser evidências de sobrevivência precisamente porque sugerem a existência post-mortem, desencarnada, da personalidade ante-mortem e sua contínua consciência e interação com o mundo físico. Assim, quando os comunicadores mediúnicos respondem apropriadamente às sentenças faladas, ou descrevem corretamente o que está acontecendo com o médium, assistentes ou com estados de coisas mais remotos, os sobreviventes interpretam isso como evidência de que uma pessoa falecida de alguma forma sobrevive à morte corporal e continua a estar em contato com o que está acontecendo no mundo dos vivos. De fato, a consciência e a interação do falecido com os vivos é uma condição necessária para comunicação mediúnica, pelo menos do tipo documentado desde os primeiros dias da Society for Psychical Research.

Agora suponha que seja verdade, como sustentam os sobrevivencialistas, que após a morte podemos continuar tendo experiências de perspectiva na ausência de um corpo. E suponha ainda que algumas dessas experiências e relatos post-mortem ostensivos sejam verídicos – isto é, que forneçam informações precisas sobre os estados do mundo físico. Por exemplo, suponha que meu falecido tio Harry relate por meio de um médium que percebeu a gravata vermelha que estou usando – algo que, no reino físico, só pode ser discernido de um ponto de vista no espaço e com receptores sensoriais funcionando adequadamente. Como os sobreviventes devem entender isso? Uma vez que na sobrevivência desencarnada nada está literalmente em (isto é, estendido em) qualquer local relevante no espaço, aparentemente não há base para os supostos relatos (transmitidos por médiuns) da consciência perspectiva de um indivíduo post-mortem sobre o que os vivos estão fazendo ou dizendo (isto é, coisas que normalmente só podem ser observado ou experimentado de certos pontos de vista no espaço). Presumivelmente, quando o corpo de uma pessoa se decompôs (ou pelo menos cessou todo o funcionamento orgânico), nada no espaço pode ancorar e fornecer a orientação espacial de uma experiência sensorial.

Inicialmente, pode parecer que os sobrevivencialistas têm uma maneira de evitar esse aparente problema. Talvez eles precisem apenas dizer que os indivíduos post-mortem experimentam estados físicos de coisas como se fossem percebidos de uma posição espacial. Afinal, por hipótese, esses indivíduos não possuem mais órgãos sensoriais (funcionais) para mediar experiências sensoriais. Assim, talvez os sobrevivencialistas devessem dizer que as experiências post-mortem em perspectiva são, na melhor das hipóteses, apenas ostensivamente sensoriais, não genuinamente sensoriais. Mas o que isso significa? Sob uma interpretação razoável, parece até minar a posição sobrevivencialista. Pois, sem que a informação sensorial chegue aos órgãos sensoriais orientados espacialmente, por que deveríamos dizer que com essas experiências os indivíduos post-mortem estão realmente obtendo informações sobre um determinado local? Eles parecem, ao contrário, apenas imaginar o que está acontecendo em um local.

Alguns dos escritores mais astutos sobre mediunidade, de fato, assumiram essa posição, ou pelo menos chegaram muito perto dela. Por exemplo, Una Lady Troubridge ofereceu o seguinte em conexão com a mediunidade de Gladys Leonard.

Feda[2] emprega um vocabulário de extensão muito limitada em que termos psicológicos eruditos não têm lugar. Além do surgimento ocasional de termos espíritas descomprometidos como 'eu sinto' ou 'tenho uma impressão de', Feda se contenta em dizer ao assistente que ela 'vê', 'ouve', 'sente' ou 'cheira, ' conforme o caso, embora os olhos do médium estejam invariavelmente fechados e nem as visões, sons, sensações ou cheiros descritos sejam perceptíveis ao assistente. Existem certos aspectos dos fenômenos Feda que me deixam em dúvida se esses simples termos sensoriais transmitem qualquer analogia precisa com os processos realmente envolvidos[3].

Por exemplo, Troubridge relata que em uma ocasião Feda descreveu 'para a Srta. Radclyffe-Hall com precisão e em grande detalhe um retrato da própria Srta. Radclyffe-Hall'. Feda observou corretamente a coloração da imagem, a pose da figura e das mãos e a seriedade da expressão da figura. De acordo com as próprias declarações de Feda, ela ' esta imagem e é capaz de descrevê-la tão detalhadamente, [mas] nunca, aparentemente, por um momento, compreende o fato de que a imagem que está sendo descrita por ela é um retrato, e uma notável semelhança com isso, do assistente muito familiar com quem ela está falando'[4].

Da mesma forma, escreve Troubridge:

É certamente incrível que Feda ou qualquer outra pessoa veja uma pessoa menos sua peculiaridade mais marcante de feições ou coloração, e ainda assim deve-se presumir que esse seja o caso se a visão de Feda for aceita pelo valor de face. Eu mesmo conheci seu propósito de ver claramente um comunicador cuja aparência ela descreveu minuciosamente, dando um relato perfeitamente preciso de suas feições, compleição, expressão, incluindo o fato de que ele era notavelmente bonito e a impressionou por ter o que ela descreveu com mais evidência como 'uma aparência clara', mas ela permaneceu aparentemente na ignorância de que as características mais distintivas de sua aparência eram cabelos prematuramente brancos como a neve de notável abundância e olhos de um azul peculiarmente vívido[5].           

Então Troubridge conclui que as supostas "impressões sensoriais de Feda só poderiam ser alucinatórias"[6]. Agora, há uma tradição venerável (se não exatamente nobre) dentro da pesquisa psi de falar sobre alucinações verídicas – por exemplo, em conexão com experiências de aparições[7]. No entanto, mesmo que essa locução seja defensável e não um oxímoro[8] – o que certamente é discutível – Troubridge parece estar usando o termo 'alucinação' em seu sentido mais usual, segundo o qual qualquer correspondência entre o conteúdo das experiências alucinatórias e os estados reais de assuntos são fortuitos.

Mas os sobreviventes não devem querer tratar todos os relatórios de percepção mediúnica como não verídicos nesse sentido. Ou seja, eles não podem tratar as percepções ostensivas dos comunicadores geralmente como correspondendo apenas fortuitamente aos estados de coisas em questão, porque essas experiências supostamente sustentam algumas das verdadeiras afirmações que os comunicadores fazem sobre o mundo físico. E essas afirmações verdadeiras compreendem a maior parte do suporte empírico da mediunidade para a hipótese de sobrevivência. Pelo contrário, os sobreviventes devem interpretar em termos causais a capacidade dos comunicadores de responder apropriadamente aos interlocutores e fazer afirmações verdadeiras sobre o mundo físico atual.

Por exemplo, eles diriam que quando o comunicador falecido 'Tio Harry' descreve corretamente a localização atual de um objeto na casa de uma babá, o que o permite fazer essa afirmação é sua consciência do estado real da casa da babá. A esse respeito, pelo menos, os sobrevivencialistas entendem alguns estados cognitivos post-mortem ostensivos como análogos à percepção ante-mortem. Normalmente diríamos que percebo – em vez de apenas imaginar ou alucinar – a mesa diante de mim porque minha experiência resulta em parte da minha interação com o objeto que percebo. E não só isso. Normalmente, supomos que minha capacidade de descrever corretamente os objetos que percebo não é aleatória ou acidental. Na verdade, supomos que precisa ser explicado em termos de regularidades causais semelhantes a leis que têm a ver tanto com as propriedades dos objetos percebidos quanto com as propriedades físicas do meu sistema sensorial.

Por exemplo, é em virtude dessas regularidades que geralmente sou capaz de descrever objetos verdes como verdes ou objetos retangulares como retangulares. Certo, se eu alucinar ou imaginar a mesa, meu episódio interior pode ser qualitativamente idêntico a uma percepção genuína da mesa. Mas se a experiência não é causada pela mesa diante de mim, não é um análogo post-mortem da percepção. De fato, na ausência de regularidades causais relevantes entre as propriedades do objeto e as minhas, parece ser uma questão de puro acaso eu conseguir descrever o objeto corretamente. Portanto, se os comunicadores post-mortem meramente imaginam ou alucinam coisas no mundo, suas supostas experiências corresponderiam – na melhor das hipóteses – apenas fortuitamente aos estados do mundo que eles representam ostensivamente. Mas isso mina a base principal para levar a mediunidade a sério.

Assim, os sobreviventes astutos devem afirmar que os comunicadores mediúnicos podem interagir causalmente com os estados do mundo físico de uma maneira que resulta em sua consciência não alucinatória (ou não imaginária), não corporal e talvez quase sensorial desses estados. E então estamos de volta onde começamos; a questão permanece: na ausência de receptores sensoriais físicos, como um indivíduo desencarnado seria capaz de descrever corretamente os estados físicos atuais? O que permite que o indivíduo detecte as características causalmente relevantes do(s) objeto(s) descrito(s) corretamente? E o que fornece a perspectiva da qual a informação é aparentemente recebida e da qual as afirmações mediúnicas verídicas parecem ser feitas?

 

Estratégias Causais Insatisfatórias

Várias manobras de sobrevivência em potencial claramente não funcionarão aqui. Por exemplo, os sobreviventes não podem alegar que o corpo do médium fornece temporariamente a base física para a perspectiva sensorial de um comunicador e que isso permite que os comunicadores percebam o que está acontecendo no mundo físico. Por um lado, os comunicadores relatam que ainda estão cientes dos eventos no mundo físico, mesmo quando não estão interagindo com um médium. E, por outro lado, os comunicadores frequentemente relatam situações físicas em locais perceptivamente distantes do meio. Além disso, os sobreviventes não podem sustentar que um corpo secundário ou astral forneça a perspectiva necessária, porque em alguns casos de sobrevivência são fornecidas informações sobre assuntos que não podem ser percebidos de qualquer posição no espaço – por exemplo, o conteúdo de uma página em um livro fechado. Devemos concluir, então, que os sobreviventes estão comprometidos com um processo (consciência post-mortem, com características perspectivas análogas às da visão e audição comuns) que, dada a hipótese de sobrevivência desencarnada, parece ser incompreensível ou impossível?

Uma estratégia proposta para preservar tanto a coerência lógica quanto a veracidade é postular cadeias causais telepáticas entre assistentes (ou outros remotos) e comunicadores mediúnicos. Por exemplo, Troubridge diz que suspeita que

 em muitos casos em que Feda descreve pessoas e objetos, ela usa o termo 'ver' apenas como um hábito de fala, e que o processo envolvido pode ser mais provavelmente uma série de impressões recebidas por ela telepaticamente, uma de cada vez, ou coletadas telepaticamente, um por um, de alguma mente encarnada ou desencarnada, conforme o caso[9].

Embora essa estratégia pareça inteligível, ela também não pode ser generalizada para abranger todos os relatos de experiências sensoriais aparentes de todos os comunicadores. Isso ocorre porque os comunicadores às vezes relatam com precisão estados físicos desconhecidos na época para qualquer pessoa viva e que são posteriormente verificados. Os testes de livros de Leonard oferecem excelentes exemplos.

 

Manobras Filosóficas Insatisfatórias

Em seu conhecido ensaio, “sobrevivência e a ideia de Outro mundo”, HH Price argumentou – ao contrário da rejeição cética usual das alegações de sobrevivência – que o conceito de uma vida desencarnada subjetivamente semelhante à nossa é pelo menos inteligível[10]. Ele descreveu como um mundo onírico de imagens poderia fornecer a um indivíduo post mortem um análogo em primeira pessoa de nossa existência subjetiva ante-mortem. E ele sugeriu, além disso, que as interações telepáticas entre os mortos (incluindo a produção telepática de aparições) poderiam fornecer um análogo às relações objetivas e interações entre indivíduos neste mundo.

Agora, se Price demonstra ou não com sucesso a inteligibilidade de uma vida desencarnada em um outro mundo, suas conjecturas não ajudam o sobrevivente no presente contexto. Isso ocorre porque Price falha em explicar como os indivíduos post-mortem conseguem adquirir uma consciência verídica e aparentemente perspectiva deste mundo. Na verdade, Price não faz nenhum esforço para explicar como o falecido, preso em seu próprio nexo exclusivamente post-mortem de causalidade paranormal, interage com os vivos para produzir evidências de sua sobrevivência. A evidência de sobrevivência dentro de um próximo mundo de Priceano requer manifestações empiricamente discerníveis de existência post-mortem – em particular, a psicologia contínua do falecido (intenções, preocupações e assim por diante). Mas isso, por sua vez, requer alguma cadeia de causalidade correndo em ambas as direções entre os vivos e os mortos, permitindo consciência e comunicação mútuas. Mas é precisamente isso que Price falha em postular, e sem isso, interpretações anti-sobrevivencialistas de casos de sobrevivência (incluindo aqueles que postulam nada além de agente vivo ou o chamado 'super' psi) parecem ter uma vantagem explicativa clara[11].

Price até parece conceder isso em outro artigo, “O problema da vida após a morte”[12]. Nesse artigo, ele sugere que os médiuns podem se engajar em uma espécie de 'sonho em voz alta', no qual (como no sonho normal) eles suprem imaginativamente sua própria perspectiva aparentemente perceptiva, e no qual eles ocasionalmente adquirem informações verídicas sobre este mundo por PES. Claro, isso é simplesmente um apelo ao tipo de PES refinado do agente vivo que muitos sobreviventes argumentam erroneamente que é previamente implausível. Mais tarde, consideraremos mais de perto por que essa posição sobrevivencialista é equivocada.

Mas voltemos agora à questão da experiência post-mortem aparentemente perspectiva e, em particular, a uma proposta avançada por Terence Penelhum[13]. A princípio, Penelhum parece concordar com Price que os comunicadores desencarnados desfrutam de uma vida interior de imagens oníricas. Mas então ele sugere, além disso, que podemos interpretar essas experiências meramente vendo como se (isto é, apenas aparentemente sensoriais) como casos de ver genuíno . Infelizmente, porém, essa abordagem parece sofrer de problemas análogos aos que afligem a alegação (provisoriamente atribuída a Troubridge) de que todas as experiências aparentemente sensoriais dos comunicadores são alucinatórias.

Penelhum escreve,

parece não haver dificuldade em dizer de uma pessoa desencarnada que pode parecer a ela como se houvesse objetos diante dela que lhe parecessem como olhariam para um observador normal sob circunstâncias ótimas de uma certa posição no espaço. Sinto-me obrigado a partir de um relato como este porque não consigo atribuir nenhum sentido à noção de ver de nenhum ponto de vista ou de ver sem perspectiva. Dada a inteligibilidade desta história, e dado que existem objetos no espaço dispostos conforme declarado, parece bastante pedante negar … que nossa pessoa desencarnada os vê. Então, digamos que ele vê[14].

Existem várias questões aqui. Primeiro, Penelhum pode estar certo ao dizer que a noção de não ver de nenhum ponto de vista é ininteligível ou vazia. No entanto, ele também pode ter esquecido uma opção viável. A evidência de uma clarividência relativamente monótona indica que os sujeitos podem estar conscientes, em algum sentido, de estados físicos de coisas (por exemplo, alvos selados em envelopes) cuja percepção sensorial normalmente requer estar adequadamente situado no espaço, mas que no momento não poderia ser percebido de qualquer posição no espaço. Assim, a evidência da clarividência pode ser tomada para mostrar que a consciência verídica dos estados de coisas físicas é possível mesmo quando não há um ponto de vista real a partir do qual os estados de coisas possam ser acessados ​​por meios sensoriais. Portanto, mesmo que a percepção não-perspectiva seja ininteligível, a consciência não-perspectiva parece ser uma opção genuína tanto no espaço lógico quanto no empírico. Retornaremos a este assunto depois.

Além disso, parece fácil demonstrar a implausibilidade da sugestão de Penelhum de que uma pessoa desencarnada realmente vê objetos sob as condições que descreve – isto é, condições que poderíamos ter descrito como sendo meramente da variedade de ver como se. Considere a seguinte situação. Suponha que uma pessoa encarnada S alucina um objeto X como estando diante dele. Além disso, uma vez que toda alucinação (mesmo a mais fantástica ou aparentemente arbitrária) tem uma causa ou outra, vamos supor que a experiência de S ocorra como resultado de um alucinógeno adicionado maliciosamente ao seu cereal matinal. Mas suponha ainda que X é realmente antes de S , de modo que S teria tido uma experiência visual qualitativamente idêntica se tivesse visto em vez de alucinado X . Agora, porque a experiência de X de S é causada por seu cereal enriquecido e não por X, seu conteúdo fenomenal corresponde apenas fortuitamente ao que está realmente no campo perceptivo de S. É por isso que não diríamos que S viu ou percebeu X neste caso. Mas, então, por que atribuir a visão genuína a uma pessoa desencarnada Sd, cuja experiência visual simplesmente é aquela que uma pessoa encarnada teria de uma certa posição no espaço? Não parece pedante dizer que Sd falha em realmente ver o objeto.

De fato, como observado anteriormente, se S vê ou não X é algo que precisa ser descontado em termos de uma história causal apropriada. Em particular, a existência, a veracidade e talvez também a qualidade fenomênica (perspectiva) da experiência de S deve ser explicável, pelo menos em parte, como resultado de relações causais semelhantes a leis obtidas entre X e S. Mas, na proposta de Penelhum, uma condição suficiente para S genuinamente ver uma pessoa vestindo uma camisa rosa é o simples fato de que a pessoa está vestindo uma camisa rosa. Incrivelmente, não importaria se o conteúdo de S está causalmente relacionado com o estado do mundo que ostensivamente representa. Portanto, para Penelhum, a visão genuína (ou a sensação) é roubada de seu caráter nomológico essencial (semelhante à lei).

Curiosamente, Penelhum parece reconhecer isso. A certa altura, ele considera se deve atribuir ao observador desencarnado uma localização no espaço – isto é, uma posição da qual X pareceria para um observador normal da mesma forma que para o S desencarnado . E ele escreve:

temos que dizer que a pessoa desencarnada está no lugar de onde, quando um observador normal vê os objetos que nosso sobrevivente agora vê, eles olham para aquele observador do jeito que olham para nosso sobrevivente. Grosso modo, ele tem que estar no centro de seu campo visual[15].

Mas então Penelhum observa:  “a primeira coisa que parece seguir é que o fato de ele ver as coisas da maneira que ele vê não pode ser interpretado como uma consequência [causal] de ele estar onde ele está, pois seu estar onde ele está consiste em ver as coisas da maneira que ele faz”[16].  E mais uma vez, o exemplo acima sobre alucinar X mostra porque isso não vai funcionar. Ainda devemos ser capazes de diferenciar alucinar ou imaginar X de ver (ou estar genuinamente consciente de) X , quer S esteja incorporado ou não. Mas não podemos fazer isso a menos que possamos contar alguma história causal sobre como a existência e a natureza da experiência de S resultam (pelo menos em parte) da presença de X no mundo e também regularidades legais obtidas entre S e X.

Curiosamente, existe uma notória posição filosófica, o fenomenalismo, segundo a qual objetos físicos – embora reais – nada mais são do que construções lógicas a partir de dados sensoriais mais primitivos (isto é, ingredientes brutos da percepção, como manchas de cor, formas, texturas, odores e assim por diante). Assim, por exemplo, os fenomenalistas diriam que a mesa diante de mim não é realmente um pedaço de matéria independente da mente afetando meus órgãos sensoriais igualmente materiais, independentes da mente e irregulares. Em vez disso, a mesa nada mais é do que uma construção dos dados dos sentidos que de fato experimento atualmente e também dos dados dos sentidos que eu e outros experimentaríamos sob uma gama indefinidamente grande de circunstâncias possíveis (ou seja, contrafactuais). E essas possíveis circunstâncias também seriam analisadas em termos sensoriais puramente subjetivos – por exemplo, ter a experiência de ver a mesa através de vidros coloridos, ou ter a experiência de deitar embaixo da mesa, ou de ver a mesa de uma grande distância.

Assim, no espírito do fenomenalismo, alguns podem pensar que podemos salvar a distinção alucinação/percepção afirmando que somente no caso da percepção podemos contar uma história contrafactual apropriadamente robusta. O que precisaríamos dizer seria algo como o seguinte: quando uma pessoa percebe genuinamente um objeto X, outras, também tendo a experiência de estar convenientemente situadas em relação a X, também teriam experiências de X de pontos de vista correspondentes. No entanto, se S apenas alucinasse X, não haveria tais correlações entre o que S experimenta e o que os outros fazem ou experimentaríam. Por exemplo, se eu tiver uma alucinação (em vez de perceber) um hipopótamo no canto, não esperaríamos que outros tendo a experiência de olhar naquela direção também tivessem episódios internos visuais de hipopótamo no canto.

É claro que as pessoas comuns explicariam essa diferença entre alucinação e percepção com respeito a relações reais ou possíveis entre observadores e objetos físicos independentes da mente. Eles diriam que, no caso da percepção genuína, realmente algum pedaço de matéria que afeta os órgãos dos sentidos de S de acordo com várias leis causais, e que afeta ou afetaria da mesma forma os órgãos dos sentidos de outras pessoas adequadamente situadas. Mas essa avenida não está aberta para alguém que constrói objetos físicos como construções de experiências sensoriais reais e possíveis, ou como John Stuart Mill colocou, “possibilidades permanentes de sensação”.

Então, infelizmente para o fenomenalista, parece não haver nenhuma história causal comparável, já que nessa visão não há pedaços de matéria independentes da mente para interagir causalmente com os órgãos dos sentidos de um perceptor. E isso torna a diferença entre alucinação e percepção completamente misteriosa. A menos que alguém esteja preparado para abandonar o fenomenalismo estrito e postular uma divindade por trás das cenas, seja arranjando coisas com antecedência (à la Leibniz) ou tendo em mente modelos (arquétipos) de objetos (à la Berkeley), os fenomenalistas não têm explicação de por que possíveis observadores adequadamente situados teriam a experiência de perceber um objeto físico. É claro, se os sobrevivencialistas adotassem essa estratégia fenomenalista, essa poderia ser o menor de seus problemas. Eles também herdariam todos os famosos problemas que afligem o programa fenomenalista, incluindo ter que se defender contra a acusação de solipsismo e ter que explicar como – em suas bases idiossincraticamente empíricas – eles podem justificar a referência a outras mentes. Mas isso é outra história[17].

 

Uma Não-Solução

Com o que precede em mente, estamos agora em posição de considerar como os sobrevivencialistas podem responder melhor aos enigmas sobre a consciência perspectiva post-mortem. Uma estratégia promissora – sem dúvida a única – é focar no ponto observado anteriormente sobre a clarividência monótona – ou seja, que a evidência demonstra como as pessoas vivas podem ter uma espécie de consciência não perceptiva de estados físicos remotos (por exemplo, alvos em envelopes lacrados, páginas de um livro fechado) cuja percepção normalmente requer estar convenientemente situado em um local, mas que na época não poderia ser percebido de nenhuma posição no espaço. Uma vez que essa forma de consciência aparentemente não depende de pistas espaciais comuns (ou, muito possivelmente, de nenhuma), os sobreviventes podem, portanto, argumentar que a consciência post-mortem do mundo físico é "meramente" clarividência, e que a única diferença entre a clarividência ante-mortem e a clarividência post-mortem é o status ontológico do sujeito. Os sobreviventes podem, assim, desviar as preocupações sobre a percepção perspectiva; eles não estariam postulando nenhuma forma de percepção. Nessa visão, os comunicadores mediúnicos (como os sujeitos clarividentes bem-sucedidos) podem desfrutar tanto da consciência perspectiva quanto não-perspectiva (não percepção) de estados físicos na ausência de órgãos sensoriais adequadamente posicionados.

Essa estratégia tem várias virtudes. Primeiro, ela conecta a hipótese de sobrevivência a um grande corpo de evidências experimentais e anedóticas[18] para a clarividência. Portanto, embora alguns aspectos da hipótese de sobrevivência pareçam a muitos como conjecturas descontroladas, essa maneira de interpretar a hipótese pelo menos dá a ela uma espécie de base empírica, embora parcial e ainda um tanto controversa. Em segundo lugar, preserva a distinção pré-teoricamente útil entre (por um lado) alucinar, imaginar ou sonhar com um objeto e (por outro lado) ter uma consciência verídica e não fortuita dele causalmente mediada por esse objeto. Afinal, por mais incomum que seja em outros aspectos, a clarividência ainda é um conceito fundamentalmente causal. Postular a consciência clarividente é postular uma ligação causal entre o sujeito e o remoto estado de coisas do qual o sujeito está ciente. Concedido, os mecanismos de clarividência, se houver algum[19], pode ser misterioso. Mas supondo que a clarividência realmente ocorra (como várias vertentes convergentes de evidência indicam fortemente), e especialmente se abranger objetos atualmente não perceptíveis de qualquer posição no espaço, então podemos precisar considerá-la como uma forma de consciência verídica que difere profundamente das formas  paradigmática emanativas ou transmissivas de percepção, como ver e ouvir[20].

E se estivermos dispostos a dar esse passo, podemos achar tentador fazer um movimento mais ousado. Poderíamos considerar seriamente a excitante possibilidade de que a percepção sensorial comum (isto é, corporificada) seja meramente um caso especial, mediado biológica ou organicamente, de uma forma mais primitiva de consciência clarividente operando fora de um domínio estritamente biológico. Ou seja, poderíamos considerar PES (tanto telepatia quanto clarividência) como um meio básico – e tipicamente inconsciente ou subconsciente – pelo qual pelo menos alguns organismos complexos adquirem informações sobre estados mentais e físicos do mundo. Então poderíamos considerar as formas conscientes e discursivas comuns de consciência como subconjuntos consideravelmente menos frequentes dessas interações não apenas mediadas, mas também restringidas pelas necessidades e limitações do organismo.

Este não seria um ponto novo. De fato, HH Price uma vez apresentou cautelosamente uma sugestão semelhante e a vinculou à teoria monádica de Leibniz[21]. Para Leibniz, cada mônada (unidade mental) representa ou expressa todo o universo de um ponto de vista, e esse processo de representação ou expressão do universo é o que Leibniz denominou “percepção”. Price interpreta controversamente essa afirmação como significando que a percepção para Leibniz é sempre telepática e clarividente. É duvidoso que essa leitura de Leibniz seja justificada, mas, de qualquer forma, há obstáculos mais sérios para resolver os problemas atuais em termos da monadologia de Leibniz. Por um lado, provavelmente não é uma boa ideia dissolver a distinção entre consciência perceptiva e não-perceptiva. Como ilustrou a discussão anterior, essa distinção tem uma utilidade considerável. Em segundo lugar, a metafísica de Leibniz funciona apenas pela graça de uma divindade benevolente que organiza toda a percepção de acordo com um princípio de harmonia pré-estabelecido. E terceiro, mesmo se conseguirmos expurgar essa visão de suas armadilhas teológicas, ainda precisaríamos explicar “por que parece ser tão pouca clarividência, e por que a grande maioria de nossas percepções ou representações permanece inconsciente”[22]. De qualquer forma, por mais importante que seja este tópico, é uma via de especulação que deve ser reservada para outra ocasião.

Uma terceira virtude da abordagem que estamos considerando diz respeito ao fato de que grande parte da evidência da clarividência aponta para uma forma de consciência não necessariamente acompanhada por imagens mentais ricas ou, na verdade, por imagens mentais. Por exemplo, em experimentos clássicos de adivinhação de cartas, em muitos relatos anedóticos e até mesmo em alguns testes de visão remota bem-sucedidos, os participantes podem não relatar nada notável em termos de imagens internas, embora muitas vezes tenham palpites e impulsos para agir. A esse respeito, a clarividência se assemelharia à percepção subliminar, que também ocorre na ausência de correlatos fenomenais relatáveis. No entanto, difere da percepção subliminar no sentido de que esta se baseia em ligações causais familiares a objetos nas proximidades, o mesmo tipo que também explica a natureza perspectiva da percepção comum, não subliminar. Por outro lado, na clarividência, a localização espacial dos receptores sensoriais de uma pessoa presumivelmente não desempenha nenhum papel causal.

A razão pela qual tudo isso é importante é que oferece um precedente para aqueles sobreviventes dispostos a afirmar que os comunicadores post-mortem podem ter consciência verídica de estados físicos na ausência de imagens mentais causadas por esses estados. É verdade que os comunicadores costumam usar termos de percepção para descrever seus estados de consciência, mas, como sugeriu Una Lady Troubridge, isso pode indicar nada mais do que nossas opções linguísticas limitadas para relatar esses estados. Não precisamos supor que a consciência seja realmente acompanhada por imagens mentais vívidas, comuns ou de qualquer tipo – o tipo que tradicionalmente gerou os quebra-cabeças que consideramos. Assim, modelando a consciência post-mortem após a clarividência "comum", os sobrevivencialistas podem postular um processo distinto da alucinação e da percepção subliminar pela existência ou natureza de seus vínculos causais com o mundo físico, mas que (como a percepção subliminar) carece das características fenomênicas familiares associadas à percepção sensorial comum.

Portanto, pode ser prudente que os sobreviventes adotem uma estratégia tríplice: primeiro, alegar que os comunicadores post-mortem podem ser clarividentes (não perceptivamente) conscientes dos estados físicos; em segundo lugar, afirmar que esse tipo de consciência pode ou não ser acompanhado por imagens internas; e terceiro, afirmar que quando há imagens é explicável em termos de propriedades causais dos objetos dos quais o sujeito está ciente ou então pelas próprias tendências criativas e idiossincráticas do sujeito para gerar imagens internas – assim como parece ser o caso com sujeitos vivos em experimentos de clarividência bem-sucedidos[23].

É claro, muitos sobreviventes provavelmente relutarão em seguir essa estratégia, porque então eles claramente precisariam abandonar um argumento que usam imprudentemente contra a hipótese rival do agente vivo-psi – a saber, que essa hipótese postula um tipo e grau de funcionamento psíquico isso é previamente implausível, ou pelo menos muito além de qualquer outro que tenha sido demonstrado experimentalmente. Quer gostem ou não, a consciência post-mortem não corporal do mundo físico seria uma instância paradigmática da clarividência. Seria uma consciência de estados físicos não mediados pelos mecanismos físicos e sensoriais que levam à percepção comum. Além disso, em escopo, consistência ou refinamento, não diferiria significativamente da clarividência que os defensores do agente vivo-psi atribuem aos médiuns ou assistentes. Pelo contrário, toda troca de informação entre um comunicador e a mente de uma pessoa viva, e toda apreensão por um comunicador de um estado físico de coisas seria uma instância de PES. E, claro, a evidência mediúnica para a sobrevivência consiste em muitos desses supostos eventos, muitos deles bastante surpreendentes na especificidade e obscuridade da informação que fornecem.

Então, ironicamente, a melhor defesa contra os argumentos observados anteriormente pode ser aquela que enfraquece um ataque padrão que os sobreviventes usam contra seu principal rival parapsicológico. Isso exigiria uma concessão explícita e séria aos anti-sobreviventes simpatizantes de psi: um endosso da visão de que a hipótese de sobrevivência pressupõe a operação de clarividência e telepatia refinadas ou frequentes entre o falecido e o mundo físico.

Parece, então, que os sobrevivencialistas se deparam com o seguinte desafio. Primeiro, eles devem aprender a abraçar a possibilidade de psi refinado se planejam contar a mediunidade como uma fonte de evidência para a sobrevivência e se esperam enfrentar os quebra-cabeças que consideramos sobre as experiências de perspectiva post-mortem. Essa é a única maneira pela qual os sobreviventes podem explicar satisfatoriamente a consciência post-mortem tanto dos estados físicos das coisas quanto dos pensamentos dos vivos. Portanto, o apelo à PES post-mortem não é apenas exigido pela hipótese de sobrevivência, mas também oferece benefícios explicativos significativos. Mas, nesse caso, se os sobrevivencialistas esperam argumentar efetivamente contra o agente vivo psi como uma alternativa geral à hipótese de sobrevivência, eles devem confiar em alguma estratégia diferente de afirmar a implausibilidade do chamado “super-psi”. Provavelmente, sobrevivencialistas podem escapar desse dilema apenas alegando – sem qualquer justificativa clara – que o apelo anti-sobrevivencialista ao agente vivo psi postula não apenas o infelizmente rotulado super-psi, mas algo muito maior e consideravelmente mais implausível. Vamos chamá-lo (com a língua firme e apropriadamente na bochecha) supercalifragilisticexpialidocious psi .

Deve-se enfatizar que o que precede não é um argumento contra a hipótese de sobrevivência, embora tenha apelado à clarividência para resolver os quebra-cabeças mais ponderados levantados sobre a consciência post-mortem ostensiva. Se a abordagem que acabamos de observar tem algum mérito, ela apenas demonstra novamente, e de outro ângulo, por que os sobrevivencialistas deveriam abandonar a insistência muito comum na implausibilidade geral dos apelos anti-sobrevivência a psi entre os vivos. Concedido, também reforça uma conclusão defendida em outro lugar longamente: que é extremamente difícil defender a hipótese de sobrevivência contra a hipótese do agente vivo psi[24]. No entanto (e talvez o mais importante), demonstra como os sobrevivencialistas podem desviar as preocupações usuais sobre a inteligibilidade da hipótese de sobrevivência sem cortar os vínculos causais necessários entre os mundos dos vivos e dos mortos[25].

 

Literatura

§  Aune, B. (1985). Metaphysics: The Elements. Minneapolis, Minnesota, USA: University of Minnesota Press.

§  Braude, S.E. (1997). The Limits of Influence: Psychokinesis and the Philosophy of Science, Revised Edition. Lanham, Maryland, USA: University Press of America.

§  Braude, S.E. (2003). Immortal Remains: The Evidence for Life after Death. Lanham, Maryland, USA: Rowman & Littlefield.

§  Braude, S.E. (2009). Perspectival awareness and postmortem survival. Journal of Scientific Exploration 23/2, 195-210.

§  Broad, C.D. (1953). Religion, Philosophy and Psychical Research. London: Routledge & Kegan Paul. [Originally published in Philosophy 24 (1949), 291-309.]

§  Penelhum, T. (1970). Survival and Disembodied Existence. London: Routledge & Kegan Paul.

§  Price, H.H. (1940). Some philosophical questions about telepathy and clairvoyance. Philosophy 15/60, 363-85. [Reprinted in F.B. Dilley (Ed.), Philosophical Interactions with Parapsychology, 35-60. New York: St. Martin's Press (1995).]

§  Price, H.H. (1953). Survival and the idea of "another world". Proceedings of the Society for Psychical Research 50, 1-25. [Reprinted in J. Donnelly (Ed.), Language, Metaphysics, and Death, 176-95. New York: Fordham University Press.]

§  Price, H.H. (1968). The problem of life after death. Religious Studies 3/2, 447-59. [Reprinted in F.B. Dilley (Ed.), Philosophical Interactions with Parapsychology, 221-36. New York: St. Martin's Press (1995).]

§  Salter, M.W.H. (1921). A further report on sittings with Mrs. Leonard. Proceedings of the Society for Psychical Research 32, 1-143.

§  Sudduth, M. (2009). Super-psi and the survivalist interpretation of mediumship. Journal of Scientific Exploration 23/2, 167-93.

§  Sudduth, M. (2016). A Philosophical Critique of Empirical Arguments for Postmortem Survival. London: Palgrave Macmillan.

§  Troubridge, U. (1922). The modus operandi in so-called mediumistic trance. Proceedings of the Society for Psychical Research 32, 344-78.

 

 

 

 

Traduzido com Google Tradutor



[2] Espírito que se comunicava através de Gladys Leonard

[3] Troubridge (1922), 369.

[4] Troubridge (1922), 370-71.

[5] Troubridge (1922), 371-72.

[6] Troubridge (1922), 369

[7] Veja Braude (1997) para uma discussão sobre isso.

[8] Combinação engenhosa de palavras cujo sentido literal é contraditório ou incongruente.

 

 

[9] Troubridge (1922), 71. Ver também Salter (1921), 87ff.

[10] Preço (1953).

[11] Super-psi é um termo muito infeliz que agora provavelmente está muito bem arraigado para ser abandonado com sucesso. Para uma discussão dos problemas com essa expressão claramente carregada, ver Braude (2003). A melhor estratégia alternativa é seguir Michael Sudduth na substituição do termo 'super-psi' pelo menos prejudicial e mais claro 'agente vivo-psi Sudduth (2009).

[12] Preço (1968).

[13] Penelhum (1970).

[14] Penelhum (1970), 25.

[15] Penelhum (1970), 25.

[16] Penelhum (1970), 25-26.

[17] Veja Aune (1985) para um bom resumo.

[18] Não comprovada cientificamente.

[19] Para comentários sobre a natureza possivelmente irredutível das conexões causais paranormais, veja Braude (1997, 2003).

[20] Ver também Broad (1953).

[21] Preço (1940).

[22] Preço (1940), 57.

[23] Para saber mais sobre as experiências idiossincráticas e altamente variáveis de sujeitos clarividentes, consulte Braude (2003), cap. 8.

[24] Ver Braude (2003) e Sudduth (2016).

[25] Este artigo é uma adaptação de Braude (2009). Veja o último para algumas questões não abordadas aqui.