Orson Peter Carrara
O escritor Rubem Alves (www.rubemalves.com.br) publicou no
Correio Popular, de Campinas, caderno C, página C-2, de 18 de julho de 2004,
uma bela crônica intitulada O que é que você faria? Considerei-a muito
oportuna. Embora longa (quase uma página), destaco ao leitor o teor principal.
Ele traz uma estória no artigo e usa um exemplo médico, desculpando-se pela
comparação, para citar como é importante a maneira de dizer as coisas ou se
quisermos, como dizemos e a quem. Pois esta maneira pode destruir vidas e sonhos.
A história citada pelo escritor comenta o relacionamento de
um casal que muito se ama.
Ela desenvolveu um câncer no seio e teve que extraí-lo, mas
isso não abalou o relacionamento do casal, apesar das dores e aflições. Em
cinco anos, o outro seio também foi afetado, mas o bom e amigo médico que antes
a atendera já havia morrido.
Procuraram outro médico, mas este, completamente insensível
às dores do casal e especialmente da mulher, ao vê-la sem um seio, já exclamou
friamente: Mas a senhora já não tem um
seio… Seu caso é muito mais grave do que eu imaginava.
E o escritor, comentando a própria estória, colocou em seu
texto:
Fico a me perguntar.
Por que é que ele falou o que falou? Não falou para informar mulher e marido de
uma coisa que não soubessem. Eles sabiam que ela não tinha um seio. Também não
falou para certificar-se de algo que estava vendo, mas não via bem, por ser
ruim dos olhos, pois ele enxergava muito bem. E qual a razão do seu frio,
imediato e cruel diagnóstico. Para que falou isso? Era necessário? Não, não era
necessário. Seu diagnóstico em nada contribuiu para o tratamento daquela
mulher. Ou será que ele falou assim por inocência? Não imaginava o veneno que
suas palavras carregavam? Não imaginava o efeito de suas palavras sobre aquela
mulher despida, sem um seio, humilhada, amedrontada. Se falou por inocência
digo que o dito médico só pode ser um idiota que nada conhece sobre os seres
humanos.
E continua:
Crueldade não é algo
que somente existe nas câmaras de tortura. Ela se faz também com palavras. Há
palavras cruéis que apagam a tênue chama da esperança. (…)
E pergunta em seguida:
(…) qual é o lugar,
nos currículos de medicina, onde tanta coisa complicada se ensina, para uma
meditação sobre a compaixão? É na compaixão que a ética se inicia e não nos
livros de ética médica. Ah! Dirão os responsáveis pelos currículos – compaixão
não é coisa científica. Não entra na descrição dos casos clínicos. Não pode ser
comunicada em congressos. Portanto, não tem dignidade acadêmica. Certo. Mas
acontece que não somos automóveis a serem consertados por mecânicos
competentes. Somos seres humanos. Amamos a vida, queremos viver. Sofremos de
dores físicas e de dores da alma: o medo, a solidão, a impotência, a morte. O
que esse médico fez não tem conserto. Uma vez feito a ferida sangra. Palavras
não podem ser recolhidas. O sofrimento foi plantado.(…)
E como indagou o autor em seu
texto, deixo a pergunta para nós mesmos: o que é que faríamos na mesma
situação? Claro que não especificamente como médico, pois o exemplo se aplica a
qualquer outra ocorrência de relacionamentos humanos.
A situação traz à lembrança o
capítulo X de O Evangelho Segundo o
Espiritismo, intitulado Bem-aventurados os misericordiosos. No subtítulo “O
argueiro e a trave no olho”, em lúcido texto, pondera o Codificador:
Um dos defeitos da
Humanidade é ver o mal de outrem antes de ver o que está em nós. (…) Que
pensaria eu se viesse alguém fazendo o que faço? Incontestavelmente é o orgulho
que leva o homem a se dissimular os próprios defeitos, tanto ao moral como ao
físico. Esse defeito é essencialmente contrário à caridade, porque a verdadeira
caridade é modesta, simples e indulgente (…). Se o orgulho é o pai de muitos
vícios, é também a negação de muitas virtudes; encontramo-lo no fundo e como
móvel de quase todas as ações (…).
Nessa última palavra, podemos
enquadrar as situações do exemplo acima, na questão médica e que pode ser
transferida para qualquer outra situação, onde nos permitimos desprezar,
discriminar, maltratar com palavras ou acentuar o sofrimento de alguém com
nossa maneira de dizer…
Afinal, nada justifica a crueldade, ainda que em palavras.
Nenhum comentário:
Postar um comentário