Flávio Mussa Tavares, médico[2]
Cabe a um responsável pela
preservação dos princípios doutrinários de uma instituição religiosa emitir
opinião oficial a respeito de temas em evidência em determinada época. O
assunto que hoje sobressai em redes sociais e mídia em geral é a celeuma,
criada a respeito da decisão judicial, favorável a interrupção da gestação de
uma criança que fora vítima de abuso sexual em sua própria casa, praticado por
parente próximo.
De um lado, falaram os
defensores dos direitos da criança molestada por quatro anos, que culminou com
uma gravidez, quando possivelmente nem havia ocorrido a menarca. Estes defendem
o aborto legal.
De outro lado, gritaram líderes religiosos
de todos os matizes, inclusive espíritas (o que nos interessa) alegando
defender o direito à vida, declarando a ilegalidade do aborto.
O médico Henri Siegerist, em
1929 foi pioneiro ao enquadrar muitos problemas de saúde como dependentes de
realidades sociais. No Brasil, a partir da década de 1970, iniciaram-se os
estudos de saúde coletiva, especialmente com Sérgio Arouca, de quem tive a
honra de ser aluno.
Como, porém, se pode delimitar
um problema no domínio da saúde pública? Na década de 1970, em vários países e
também no Brasil, questionou-se o reducionismo da supremacia biológica no campo
da saúde coletiva e iniciou-se um gradual entendimento da complexidade dos
temas da saúde humana como simultaneamente sociais e biológicos. Foi criado, desse
modo, a Saúde Pública, ou seja, o conjunto de medidas a ser tomado pelo estado
para garantir o bem estar físico, mental e social da população. Desse modo,
toda questão que envolve uma população em determinado espaço e tempo, é uma
questão de saúde pública e o estado tem o dever constitucional de adotar
medidas tanto preventivas quanto corretivas de interesse geral. É o caso das
doenças infecciosas, que são de interesse tanto social quanto médico, poluição,
desmatamento, doenças sexualmente transmissíveis, abuso de drogas, suicídio,
sexualidade, incluindo a gravidez na infância e juventude etc.
Abordar a sexualidade na
educação infantil é do campo da prevenção, o aborto em crianças e adolescentes
vítima de estupro, é do campo da medida corretiva.
Desse modo, o estado laico deve
incluir nos currículos escolares a educação sexual, que possa preparar nossas
crianças a não se tornarem vítimas de abusadores, prevenir o início precoce da
vida sexual, bem como prevenir-se de doenças sexualmente transmissíveis. Paripasso,
o mesmo estado laico deve oferecer meios de corrigir as situações que não foram
devidamente evitadas, que no caso de gravidez na infância, devido ao risco de
morte materna, significa interrupção da gestação.
Saindo da órbita social e
penetrando na órbita religiosa e especialmente espírita, após inúmeros textos
publicados nas mídias por representantes de instituições federativas espíritas
e até da Associação Médico Espírita do Brasil, todas citando as mesmas fontes
doutrinárias da codificação e de obras psicografas por médiuns notáveis,
observou-se algo inusitado. A despeito dos mesmos subsídios, houve conclusões
absolutamente díspares.
Na década de 1970, Francisco
Cândido Xavier, um médium de reconhecimento internacional, psicografou
jovens desencarnados prematuramente. Destaco um deles, por escrever algo de
interesse no tema: Augusto César Netto. Em um de seus livros, “Falou e Disse”,
no capítulo 7 ele conversa sobre Sexo. Relata em linguagem de gíria paulista, :
Vem uma espécie de dança do índio. A pessoa faz que
vai, diz que não vai e, por vezes, acaba indo. E se surge aquele jogo de
ninguém ganha, o cara abre o pé naquela que matou o guarda e a mocinha aguenta
o talo, porque esse negócio de reencarnação é fácil pra cachorro […] “Mas
trazendo o caso para o nosso chão terrestre, é preciso reconhecer que, nas
transas do sexo desequilibrado, não há pílula que impeça a chegada do invasor
que com o tempo se transforma em agente de prova e cura, juízo e reajuste”.
Diante dessa passagem, Caio
Ramacciotti, que publicou o livro, endereçou antes uma pergunta a Chico Xavier,
a respeito da possibilidade de uma reencarnação não programada, que a repassou
ao seu mentor Emmanuel. Este respondeu no capítulo 8:
Indubitavelmente, em matéria de filhos, no Plano
Físico, a lei das afinidades quase pode ser considerada por fator determinante
da chamada hereditariedade psicológica. E partindo do exemplo de reencarnação
de alcoolistas, diz: “Quando isso ocorre, é justo considerar que por muito se
esforcem os Instrutores Espirituais, encarregados de cooperar na execução de
certo plano de reencarnações para determinado grupo familiar, nem sempre
conseguem evitar a intromissão de um ou mais de um dos alcoólatras
desencarnados, porquanto se ajustam eles de tal modo às forças genésicas de um
dos parceiros do compromisso sexual que acabam na condição de filhos deles”.
A relevância dessa opinião é de
que existem reencarnações não programadas e se um dependente químico, atrai um
espírito dependente químico e intruso, provavelmente, um pedófilo, poderia
também estar acompanhado de outros pedófilos que seriam, de improviso,
recorporificados num útero infantil.
Voltando ao domínio da saúde
pública, espíritas, católicos e protestantes são convidados a compreender que o
estado laico prescinde de suas considerações, de seus pontos de vista para
tomar medidas preventivas ou corretivas. Estas medidas são parte de um conjunto
de leis definidas na Constituição e em documentos específicos, como o Estatuto
da Criança e do Adolescente.
O estado laico não está mercê
das perspectivas de cada agrupamento religioso.
Assim, quando uma criança
engravida, existe uma questão de Saúde Pública e de seus agentes. Se o caso for
judicializado, cumpra-se.
Então de que valem os preceitos
doutrinários, no caso do Espiritismo reencarnacionista, que não vê na concepção
o início de uma vida nova e nem na desencarnação o fim dela?
Os preceitos espíritas da
preexistência e da sobrevivência da alma são estatutos para serem seguidos por seus
profitentes. Nenhum grupo religioso tem o direito de propor seu protocolo para
os que não comungam a mesma crença. Nem órgãos federativos espíritas e nem
agremiações médico-espíritas estão aptos a redigir notas com juízo de valor
sobre situações que estão além de suas fronteiras.
O que cabe às famílias
espíritas, pelo princípio da razoabilidade é, em vivenciando situação
semelhante, agir de acordo com a sua consciência. Se uma família espírita for
surpreendida com o fato de ter uma criança grávida, vítima de estupro e
considerar com o obstetra, que vale o risco em nome da vida do feto, não há
como impedir essa decisão. Contrapartida, essa mesma família não tem o direito
de julgar outra família que segue as orientações médicas com protocolos
científicos para interromper a gestação.
O espírita é um ser social. O
espiritismo é uma doutrina progressista. Não somos fundamentalistas. Não
podemos usar premissas verdadeiras, como textos doutrinários, para produzir
conclusões falsas, isto é, gerando juízos de valor sobre as crianças, as
maiores vítimas, sobre suas famílias, advogados, juízes e médicos.
O nosso único e impreterível
dever é amparar a todos. As vítimas que estiverem vivenciando diferentes lutos,
os algozes que podem estar em momento de remorso tóxico e os envolvidos nas
medidas corretivas, a todos acolhendo e esclarecendo com nossos princípios
renovadores.
Que o Nosso Senhor Jesus Cristo
a todos nos abençoe nestes momentos graves de transição que estamos vivendo.
Nota do Editor:
Embora não possamos
transformar o episódio, triste, muito triste, da criança estuprada e
engravidada num campo de “duelo mental” com confrades espíritas ou de quaisquer
outro campo de crença que divirjam de nosso pensamento, creio ser este o melhor
dos cinco ou seis textos que li em relação a esse caso tão doloroso.
Não há, porém, que se
“parabenizar” o irmão Flávio por estar tão somente dando seu importante
contributo com consistência, respeito e coerência doutrinária cristã espírita
acerca do episódio, justamente por ser este um capítulo triste de nosso
conturbado cenário social e seus dramas.
Esse fato, como sabemos,
culminou com o aborto legal ocorrido em Pernambuco. Reflexionando então sobre o
cenário de personagens envolvidos no episódio – a própria menina, seu algoz, os
médicos, os juristas que determinaram o abortamento legal e seguro e o espírito
vida que poderia (ou não) estar vinculado a esse útero – cabe a nós a postura
do Cristo: orar por todos e confiar na conjugação de dois fatores que nunca se
impõem isoladamente: Misericórdia Divina, aliada à justeza das Leis Magnânimas
da Vida.
Ao irretocável texto do
doutor Flávio Mussa Tavares, ousadamente acrescentaria uma última lição de
Emmanuel, apenas para reforço de ideias:
“Nenhum culto, que se
prenda a Deus pela devoção e por determinados deveres religiosos, tem o direito
de interferir nos movimentos transitórios do Estado”. (do livro
“Emmanuel”, editora FEB).
Nota de Juvan Neto, editor
do jornal Espaço Espírita.
[1] https://jornalespacoespirita.com.br/site/2020/08/22/a-respeito-da-interrupcao-da-gestacao-de-uma-crianca/
[2] Diretor Doutrinário da Escola Jesus Cristo –
Instituição Espírita de Cultura e Caridade.
Campos – RJ.
Nenhum comentário:
Postar um comentário