Durante a visita que acabamos de
fazer aos espíritas de Bruxelas, deu-se o seguinte fato em nossa presença, numa
reunião íntima de sete ou oito pessoas, a 13 de setembro.
Solicitou-se a uma senhora
médium que escrevesse, sem que se tivesse feito qualquer evocação especial.
Assaltada por extraordinária agitação, e depois de haver rasurado violentamente
o papel, escreve em caracteres muito grossos estas palavras: “Arrependo-me! arrependo-me! Latour.”
Surpreendidos com a inesperada
comunicação, de modo algum provocada, visto que ninguém pensara nesse infeliz, cuja
morte até então era ignorada por uma parte dos assistentes, dirigimos ao
Espírito palavras de conforto e comiseração, fazendo-lhe em seguida esta
pergunta:
– Que motivo vos levou a manifestar-vos aqui, de preferência
a outro lugar, quando não vos evocamos?
Responde o médium de viva voz:
‒ Vi que, almas
compassivas, teriam piedade de mim, ao passo que outros me evocavam mais por
curiosidade que por caridade, ou de mim se afastavam horrorizados.
Depois começou por uma cena
indescritível, que não durou mais de meia hora. O médium, juntando os gestos e
a expressão da fisionomia à palavra, deixava patente a identificação do
Espírito com a sua pessoa; às vezes, esses gestos de cruel desespero desenhavam
vivamente o seu sofrimento; o tom da sua voz era tão compungido, as súplicas
tão veementes, que ficávamos profundamente comovidos. Alguns estavam mesmo
aterrorizados com a superexcitação do médium, mas sabíamos que a manifestação
de um ente arrependido, que implora piedade, nenhum perigo poderia oferecer. Se
ele buscou os órgãos do médium, é que melhor desejava patentear a sua situação,
a fim de que mais nos interessássemos pela sua sorte, e não como os Espíritos
obsessores e possessores, que visam apoderar-se dos médiuns para dominá-los.
Tal manifestação lhe fora talvez permitida não só em benefício próprio, como
também para edificação dos circunstantes.
Ei-lo a exclamar:
Oh! sim, piedade... Muito
necessito dela... Não sabeis o que sofro... Não o sabeis, e não podereis
compreendê-lo. É horrível! A guilhotina!... Que vale a guilhotina comparada a
este sofrimento de agora? Nada! – É um instante. Este fogo que me devora, sim,
é pior, porque é uma morte contínua, sem tréguas nem repouso... Sem-fim!... E
as minhas vítimas, ali estão ao redor, a mostrar-me os ferimentos, a
perseguir-me com seus olhares...
Aí estão, e vejo-as
todas... Todas... Sem poder fugir-lhes!
E este mar de
sangue?! E este ouro manchado de sangue? Tudo aí está!... Tudo... E sempre ante
meus olhos! E o cheiro de sangue... Não o sentis? Oh! Sangue e sempre sangue!
Ei-las que imploram, as pobres vítimas, e eu a feri-las sempre... Sempre... Impiedosamente!...
O sangue
inebria-me... Acreditava que depois da morte tudo estaria terminado, e assim
foi que afrontei o suplício e afrontei o próprio Deus, renegando-O!...
Entretanto, quando me julgava aniquilado para sempre, que terrível despertar...
Oh! Sim, terrível, cercado de cadáveres, de espectros ameaçadores, os pés
atolados em sangue!!...
Acreditava-me morto,
e estou vivo! Vivo para rever tudo isto! Para o ver incessantemente!...
Horrendo! Horrendo! Mais horrendo que todos os suplícios da Terra! Ah! Se todos
os homens pudessem saber o que há para além da vida, saberiam também quanto
custam as consequências do mal! Certo não haveria mais assassínios, nem criminosos,
nem malfeitores! Eu só quisera que todos os assassinos pudessem ver o que eu
vejo e sofro...
Oh! Então não mais o
seriam, porque é horrível este sofrimento! Bem sei que o mereci, oh! Meu Deus,
porque também não tive compaixão das minhas vítimas; repelia as mãos súplices quando
imploravam que as poupasse... Sim, fui cruel, decerto, matando-as covardemente
para roubá-las! E fui ímpio, e fui blasfemo também, renegando o vosso
sacratíssimo nome... Quis enganar-me, porque eu queria persuadir-me de que vós
não existíeis...
Meu Deus, eu sou
grande e criminoso! Agora o compreendo. Mas... Não tereis piedade de mim?...
Vós sois Deus, isto é, a bondade, a misericórdia! Sois onipotente! Piedade,
Senhor, Piedade! Eu vo-lo peço, não sejais inexorável; libertai-me destes
olhares odiosos, destes espectros horríveis... Deste sangue... Das minhas
vítimas... Olhares que, quais punhaladas, me varam o coração.
Vós outros, que aqui
estais, que me ouvis, sede bondosos, almas caritativas. Sim, eu o vejo, sei que
tendes piedade de mim, não é verdade? Haveis de orar por mim... “Oh! Eu vo-lo
suplico, não me abandoneis como fiz outrora aos outros. Pedireis a Deus que me
tire este horrendo espetáculo de ante os olhos, e Ele vos ouvirá porque sois
bons... Imploro, orai por mim.
Os assistentes, sensibilizados,
dirigiram-lhe palavras de conforto e consolação. Deus, disseram-lhe, não é
inflexível; apenas exige do culpado um arrependimento sincero, aliado à vontade
de reparar o mal praticado. Uma vez que o vosso coração não está petrificado e
que lhe pedis o perdão dos vossos crimes, a sua misericórdia baixará sobre vós.
Preciso é, pois, que persevereis na boa resolução de reparar o mal que
fizestes. Certo, não podeis restituir às vítimas as vidas que lhes arrancastes,
mas, se o impetrardes com fervor, Deus permitirá que as encontreis em uma nova
encarnação, na qual lhes podereis patentear tanto devotamento quanto o mal que
lhes fizestes. E quando a reparação lhe parecer suficiente, para logo entrareis
na sua santa graça. Assim, a duração do vosso castigo está nas vossas mãos,
dependendo de vós o abreviá-lo. Comprometemo-nos a auxiliar-vos com as nossas preces
e invocar para vós a assistência dos Espíritos bons. Vamos pronunciar em vossa
intenção a prece que se contém na Imitação do Evangelho, referente aos
Espíritos sofredores e arrependidos. Não pronunciaremos a que se refere aos
Espíritos maus, porque desde que vos arrependeis, que implorais, que renunciais
ao mal, não passais para nós de um Espírito infeliz e não mau.
Feita essa prece, o Espírito
continua, depois de breves instantes de calma:
Obrigado, meu
Deus!... Oh! obrigado! Tivestes piedade de mim... Eis que se afastam os
espectros... Não me abandoneis, enviai-me os vossos Espíritos bons para me sustentarem...
Obrigado
Depois desta cena o médium fica
alquebrado, abatido, os membros lassos por algum tempo. A princípio, apenas tem
vaga ideia do que se há passado, mas pouco a pouco vai lembrando-se de algumas
das palavras que pronunciou sem querer, reconhecendo que não era ele quem
falara.
No dia seguinte, em nova
reunião, o Espírito tornou a manifestar-se, reencetando a cena da véspera,
porém por minutos apenas, e isso com a mesma gesticulação expressiva, posto que
menos violenta. Depois, tomado de agitação febril, escreveu:
Grato às vossas
preces. Experimento já uma sensível melhora. Foi tal o fervor com que orei, que
Deus me concedeu um momentâneo alívio; não obstante, terei de ver ainda as
minhas vítimas... Ei-las! Ei-las! Vedes este sangue?... (Repetiu-se a prece
da véspera. O Espírito continua dirigindo-se ao médium.)
Perdoai o ter-me
apossado de vós. Obrigado pelo alívio que proporcionais aos meus sofrimentos.
Perdoai o mal que vos causei, mas eu tenho necessidade de me comunicar, e só
vós o podeis...
Obrigado! Obrigado!
Já sinto algum alívio, posto não tenha atingido o fim das provações. As minhas
vítimas voltarão dentro em breve. Eis a punição a que fiz jus, mas Deus meu,
sede indulgente.
Orai todos vós por
mim, tende piedade.
Latour
Observação –
Conquanto não tenhamos prova material da identidade do Espírito que se
manifestou, também não temos motivo para duvidar. Em todo o caso, evidentemente
é um Espírito muito culpado, mas arrependido, terrivelmente infeliz e torturado
pelo remorso. Sob este aspecto, a comunicação é muito instrutiva, porque não se
pode menosprezar a profundeza e o elevado alcance de algumas palavras que ela
encerra; além disso, oferece um dos aspectos do mundo dos Espíritos castigados,
acima do qual, entretanto, se vislumbra a misericórdia de Deus. A alegoria mitológica
das Eumênides
não é, assim, tão ridícula quanto se pensa, e os demônios, carrascos oficiais
do mundo invisível, que os substituem na crença moderna, são menos racionais,
com seus chifres e seus tridentes, do que essas vítimas, elas próprias servindo
para o castigo do culpado.
Admitindo a identidade desse
Espírito, talvez se admirem de uma mudança assim tão imediata em seu estado
moral.
É que, como fizemos notar em
outra ocasião, muitas vezes há mais recursos num Espírito brutalmente mau, do
que no que é dominado pelo orgulho, ou que oculta seus vícios sob o manto da hipocrisia.
Este pronto retorno a melhores sentimentos indica uma natureza mais selvagem
que perversa, à qual só faltou uma boa direção. Comparando sua linguagem com a
de outro criminoso, citado na Revista de julho de 1864, sob o título de: Castigo
pela Luz [publicado neste blog em 23/04/2019], é fácil ver qual dos dois é mais
adiantado moralmente, a despeito da diferença de instrução e de posição social;
um obedecia a um instinto natural de ferocidade, a uma espécie de
superexcitação, enquanto o outro trazia na perpetração de seus crimes a calma e
o sangue-frio de lenta e perseverante combinação e, depois da morte, ainda
afrontava o castigo com orgulho. Sofre, mas não quer submeter-se, ao passo que
o outro é domado imediatamente.
Assim, pode prever-se qual dos
dois sofrerá por mais tempo.