terça-feira, 21 de maio de 2019

A VOLTA DA FORTUNA[1] (Estudos Morais)




Lê-se no Siècle de 5 de junho de 1864:
O Sr. X..., berlinense, possuía imensa fortuna. Seu pai, ao contrário, em consequência de vários reveses, tinha caído em extrema miséria e se vira forçado a recorrer à generosidade do filho.
Este repeliu duramente a súplica do ancião que, para não morrer de fome, teve de recorrer à intervenção da justiça. O Sr. X... Foi condenado a fornecer ao pai uma pensão alimentar. Mas, antes, havia tomado suas precauções: prevendo que parte de seus rendimentos poderia ser confiscada, caso se recusasse a pagar a pensão, resolveu ceder a fortuna a um tio paterno.
O infeliz pai viu-se privado de sua última esperança.
Protestou que a cessão era fictícia e que o filho tinha recorrido a ela para escapar à execução da sentença. Mas teria que o provar; o velho, porém, não dispunha de condições para intentar um processo custoso, já que lhe faltavam as coisas essenciais à vida.
Um acontecimento imprevisto veio mudar tudo. O tio morreu subitamente, sem deixar testamento. Como não tivesse família, a fortuna reverteu, de direito, ao parente mais próximo, isto é, ao seu irmão.
Compreende-se o resto. Hoje os papéis estão invertidos. O pai está rico e o filho pobre. O que, sobretudo, deve aumentar o desespero deste último é que não pode invocar o fato de uma cessão fictícia, pois a lei interdita formalmente esse gênero de transação.

Dir-se-ia que se sempre fosse assim com o mal, melhor seria compreendida a justiça do castigo; sabendo o culpado por que é punido, saberia do que se deve corrigir.
Os exemplos de castigos imediatos são menos raros do que se pensa. Se se remontasse à fonte de todas as vicissitudes da vida, ver-se-ia, aí, quase sempre, a consequência natural de alguma falta cometida. A cada instante recebe o homem terríveis lições, das quais, infelizmente, bem poucos tiram proveito. Enceguecido pela paixão, não vê a mão de Deus, que o fere; longe de acusar-se por seus próprios infortúnios, põe a culpa na fatalidade e na má sorte; irrita-as muito mais do que se arrepende. Aliás, não nos surpreenderíamos se o filho, do qual se fala acima, em vez de ter reconhecido seus erros para com o pai, em lugar de lhe ter dispensado melhores sentimentos, passasse a lhe devotar maior animosidade. Ora, o que pede Deus ao culpado? O arrependimento e a reparação voluntária.
Para animá-lo a isto multiplica à sua volta, durante a vida inteira, todas as formas de advertências: desgraças, decepções, perigos iminentes; numa palavra, tudo o que é próprio a fazê-lo refletir. Se, a despeito disto, seu orgulho resiste, não é justo que seja punido mais tarde? É grave erro pensar que o mal possa ficar impune, uma ou outra vez, na vida atual. Se se soubesse tudo quanto acontece ao mau, aparentemente o mais próspero, ficar-se-ia convencido da verdade de que não há uma única falta nesta vida, uma só inclinação má, dizemos mais, um só mau pensamento que não tenha sua contrapartida. Daí a consequência que, se o homem aproveitasse os avisos que recebe, se se arrependesse e reparasse desde esta vida, teria satisfeito à justiça de Deus e não mais teria de expiar, nem de reparar, seja no mundo dos Espíritos, seja em nova existência. Se há, pois, os que nesta vida sofrem o passado de sua precedente existência, é que devem pagar uma dívida que não saldaram. Se o filho em questão morrer na impenitência, sofrerá, primeiramente, no mundo dos Espíritos, o castigo do remorso; sofrerá moralmente o que fez sofrer materialmente; será um Espírito infeliz, porque terá violado a lei que lhe dizia: Honra teu pai e tua mãe. Mas Deus, que é soberanamente bom e, ao mesmo tempo, soberanamente justo, permitirá que ele reencarne para reparar; talvez lhe dê o mesmo pai e, em sua bondade, lhe poupe a humilhante lembrança do passado; mas o culpado trará consigo a intuição das resoluções que tiver tomado, a vontade de fazer o bem, ao invés do mal; será a voz da consciência que lhe ditará a conduta.
Depois, quando retornar ao mundo dos Espíritos, Deus lhe dirá: Vem a mim, meu filho, tuas faltas estão apagadas. Mas, se falhar nessa nova prova, terá de recomeçar, até que se tenha despojado inteiramente do homem velho.
Deixemos, pois, de ver nas misérias que sofremos pelas faltas de uma existência anterior um mistério inexplicável e digamos que de nós depende evitá-las, obtendo nosso perdão desde esta vida. Depois de saldar nossas dívidas, Deus não nos fará pagá-las segunda vez; mas se permanecermos surdos às suas advertências, então exigirá até o último ceitil, ainda que após vários séculos ou milhares de anos. Para isto não exige vãos simulacros, mas a reforma radical do coração. A morada dos eleitos só é aberta aos Espíritos purificados; qualquer mácula lhes interdita o acesso. Cada um pode pretendê-lo; compete a todos fazer o que a isto for necessário e lá chegar, mais cedo ou mais tarde, conforme seus esforços e sua vontade. Mas jamais dirá Deus a alguém: Não te purificarás!




[1] Revista Espírita – Outubro/1864 – Allan Kardec

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