terça-feira, 23 de novembro de 2021

CARTA DO SR. JAUBERT[1]

 

Allan Kardec

 

Eu vos peço, meu caro Sr. Kardec, inserir a carta seguinte no próximo número da vossa Revista. Certamente sou pouca coisa, mas, enfim, tenho a minha apreciação e a imponho à vossa modéstia. Por outro lado, quando se trava a batalha, quero provar que estou sempre em atividade, com minhas dragonas de lã.

Jaubert

 

Sem a obrigação que nos é imposta, em termos tão precisos, compreender-se-ão os motivos que nos teriam impedido de publicar esta carta. Nós nos teríamos contentado em conservá-la como um honroso e precioso testemunho e juntá-la às numerosas causas de satisfação moral que nos vêm sustentar e encorajar em nosso rude labor, e compensar as tribulações inseparáveis de nossa tarefa. Mas, por outro lado, posta de lado a questão pessoal, neste tempo de exaltação contra o Espiritismo, os exemplos de coragem de opinião são tanto mais influentes quando partem do mais alto. É útil que a voz dos homens de coração, dos que, por seu caráter, suas luzes e sua posição impõem respeito e confiança, se façam ouvir; e se ela não puder dominar os clamores, tais protestos não ficarão perdidos nem no presente nem no futuro.

 

Carcassonne, 12 de dezembro de 1865.

Senhor e caro mestre,

Não quero deixar findar o ano de 1865 sem lhe render graça por todo o bem que fez ao Espiritismo. Nós lhe devemos a Pluralidade das existências da alma, por André Pezzani; a Pluralidade dos mundos habitados, por Camille Flammarion: dois gêmeos que mal nascem e já dão passos tão largos no mundo filosófico.

Nós lhe devemos um livro, pequeno por suas páginas, mas grande por seus pensamentos; a simplicidade nervosa de seu estilo o disputa à severidade de sua lógica. Contém em germe a teologia do futuro; tem a calma da força e a força da verdade. Eu gostaria que o volume intitulado O Céu e o Inferno fosse editado aos milhões de exemplares. Perdoai-me este elogio: vivi muito para ser entusiasta e tenho horror à bajulação.

O ano de 1865 nos dá Espírita, novela fantástica. A literatura se decide a fazer invasão em nosso domínio. O autor não tirou do Espiritismo todos os ensinamentos que ele encerra. Põe em destaque a ideia capital, essencial: a demonstração da alma imortal pelos fenômenos. Os quadros do pintor me pareceram deslumbrantes; não posso resistir ao prazer de uma citação.

 Espírita, a amante de Guy de Malivert, ignorada na Terra, acaba de morrer. Ela mesma descreve suas primeiras sensações.

O instinto da Natureza ainda lutava contra a destruição. Mas logo cessou essa luta inútil; e, num fraco suspiro, minha alma exalou-se de meus lábios.

Palavras humanas não podem descrever a sensação de uma alma que, liberta de sua prisão corporal, passa desta à outra vida, do tempo à eternidade e do finito ao infinito. Meu corpo imóvel e já revestido dessa brancura mate, entregue à morte, jazia no leito fúnebre, cercado de religiosas em prece, e dele eu estava tão destacada quanto o pode estar a borboleta de sua crisálida, casulo vazio, despojo informe, para abrir suas jovens asas à luz desconhecida e subitamente revelada. A uma intermitência de sombra profunda havia sucedido um deslumbramento de esplendor, um alargamento de horizonte, um desaparecimento de todo limite e de todo obstáculo, que me inebriava de um júbilo indizível. Explosões de sentidos novos me faziam compreender os mistérios impenetráveis ao pensamento e aos órgãos terrestres. Desembaraçada dessa argila, submetida às leis da gravidade que até a pouco me tornavam mais pesada, eu me lançava com uma celeridade louca no éter insondável. As distâncias não existiam mais para mim e meu simples desejo me levava onde eu queria estar. Traçava grandes círculos, num voo mais rápido que a luz, através do azul indefinido dos espaços, como se quisesse me apossar da imensidade, cruzando com uma multidão de almas e de Espíritos.

E a tela se desenrola sempre mais esplêndida. Ignoro se, no fundo da alma, o Sr. Théophile Gautier é espírita; mas, com certeza, ele serve aos materialistas, aos descrentes a bebida salutar em taças de ouro magnificamente cinzeladas.

Eu ainda bendigo o ano de 1865 pelas grandes cóleras que ele encerrava em seus flancos. Ninguém se engane com isto: os irmãos Davenport são menos causa do que pretexto para a cruzada. Soldados de todos os uniformes apontaram contra nós os seus canhões. Que provaram, então? A força e a resistência da cidadela sitiada. Conheço um jornal do sul muito propalado, muito estimado que, com todo o direito, enterra o Espiritismo uma vez por mês, e isto há bastante tempo; consequentemente, o Espiritismo ressuscita pelo menos doze vezes por ano. Vereis que eles o tornarão imortal de tanto o matar.

Agora não tenho mais senão os meus votos de Ano-Novo. Os primeiros são para vós, senhor e caro mestre, pela vossa felicidade, pela vossa obra tão valentemente empreendida e tão dignamente perseguida.

Faço votos pela união íntima de todos os espíritas. Vi com pesar algumas nuvens leves caindo em nosso horizonte. Quem nos amará se não nos soubermos amar? Como dizeis muito bem no último número de vossa Revista: “Quem quer que creia na existência e na sobrevivência das almas, e na possibilidade das relações entre os homens e o mundo espiritual, é espírita”. Que esta definição permaneça, e sobre este terreno sólido estaremos sempre de acordo. E agora, se detalhes da doutrina, mesmo importantes, por vezes nos dividem, discutamo-los, não como fratricidas, mas como homens que só têm um objetivo: o triunfo da razão e, pela razão, a busca do verdadeiro e do belo, o progresso da Ciência, a ventura da Humanidade.

Ficam os meus mais ardentes votos, os mais sinceros; eu os dirijo a todos os que se dizem nossos inimigos: que Deus os ilumine!

Adeus, senhor; recebei para vós e para todos os nossos irmãos de Paris a certeza de meus sentimentos afetuosos e de minha distinta consideração.

T. Jaubert,

Vice-Presidente do Tribunal

 

Qualquer comentário sobre esta carta seria supérfluo; apenas acrescentaremos uma palavra: é que homens como o Sr. Jaubert honram a bandeira que carregam. Sua apreciação tão judiciosa sobre a obra do Sr. Théophile Gautier nos dispensa do relato que dela nos propúnhamos fazer este mês. Nós a lembraremos no próximo número.



[1] Revista Espírita – Janeiro/1866 – Allan Kardec

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