terça-feira, 16 de março de 2021

O PRIMEIRO ROMANCE ESPÍRITA RECONHECIDO POR ALLAN KARDEC[1]

 

Eliana Haddad

 

Em 1866, Allan Kardec identificava em Paris o primeiro romance que se utilizava de ideias espíritas como fio condutor de uma intrigante história de amor.

O escritor Théophile Gautier (1811-1872) escrevia um romance-folhetim, intitulado Espírita, publicando-o em pequenos capítulos, no influente jornal Le Moniteur Universel, que durante muito tempo foi o diário oficial do governo francês.

Como novela, a história era acompanhada por leitores não só da França, fazendo enorme sucesso e provocando curiosidade sobre as ideias espíritas que fervilhavam na sociedade europeia, desde o lançamento de O Livro dos Espíritos (1857).

O enredo, contado pelo famoso poeta, jornalista e crítico literário francês, também atiçou a curiosidade de Allan Kardec, dele merecendo vários comentários sobre esse gênero literário na divulgação das ideias espíritas, como se pode ler na Revista Espírita de dezembro de 1865.

 

 É da própria essência do romance representar um assunto fictício, quanto aos fatos e personagens. Mas nesse mesmo gênero de produções há regras de que o bom senso não permite afastar-se. Se os detalhes não forem verdadeiros em si mesmos, ao menos devem ser verossímeis e de perfeito acordo com o meio onde se passa a ação, escreveu Kardec.

 

Ele escreve que se pode fazer romances sobre o Espiritismo, assim como sobre todas as coisas.

 

 Dizemos mesmo que o espiritismo, quando for conhecido e compreendido em toda a sua essência, fornecerá às letras e às artes fontes inesgotáveis de poesias encantadoras. (...) Como nos romances históricos ou de costumes, é indispensável conhecer a fundo a tela sobre a qual se quer bordar, a fim de não se cometer disparates, que seriam outras tantas provas de ignorância. Aquele, pois, que não estudou a fundo o espiritismo, em seu espírito, em suas tendências, em suas máximas, tanto quanto em suas formas materiais, é ‘inapto’ para fazer um romance espírita. (...) É preciso que, lendo um romance espírita, os espíritas possam reconhecer-se e poder dizer: é isto.

 

A história de “Espírita”

Espírita, lançado no Brasil como O ignorado amor (O Clarim, 1977), conta a história de um rapaz galanteador que é influenciado por uma moça de nome Espírita. Ela se apaixonara por ele quando encarnada e, por desilusão, por não ter sido notada e correspondida, acabou por se entregar à reclusão, em um convento. Sem jamais esquecê-lo, lá desencarnou ainda jovem com as dolorosas lembranças deste ignorado amor. Depois de muitas aparições e fenômenos recheados de incrível sintonia, ele, encarnado ainda, também acaba por se apaixonar por Espírita.

Confessa Kardec na Revista Espírita de 1866 que não conhecia pessoalmente Théophile Gautier e nem sabia quais eram as suas convicções ou seus conhecimentos a respeito do Espiritismo.

 

Sua obra ainda está debutando (...). Diremos apenas que se ele não encarasse o seu assunto senão sob um único ponto de vista – o das manifestações – desprezando o lado filosófico e moral da doutrina, não corresponderia à ideia geral e complexa que o seu título abarca, muito embora o nome Espírita seja o de um de seus personagens. Se os fatos que ele imagina, para a necessidade da ação, não se encerrassem nos limites traçados pela experiência; se os apresentasse como se passando em condições inadmissíveis, sua obra faltaria com a verdade e faria supor que os espíritas creem nas maravilhas dos contos das Mil e uma Noites. Se atribuísse aos espíritas práticas e crenças que estes desaprovam, ela não seria imparcial e, sob esse ponto de vista, não seria uma obra literária séria. A doutrina espírita não é secreta, não tem mistérios (...); diz claramente o que admite e o que não admite; os fenômenos cuja possibilidade reconhece não são sobrenaturais nem maravilhosos, mas fundados nas leis da Natureza, de sorte que nem faz milagres, nem prodígios. Aquele, pois, que não a conhece, ou que se engana quanto às suas tendências, é porque não quer dar-se ao trabalho de a conhecer, adverte.

 

Quando este romance-folhetim foi lançado em forma de livro, em 1867, Kardec voltou a tecer comentários à obra de Gautier.

 

É preciso não tomar os fatos ao pé da letra; há de se considerar que o livro não é um tratado de espiritismo. A verdade está no fundo das ideias e pensamentos, que são essencialmente espíritas e apresentados com uma delicadeza e uma graça encantadoras, muito mais que nos fatos, cuja possibilidade, por vezes, é contestável.

 

Kardec ainda comenta sobre a importância do romance: por ser Gautier um escritor de expressão, pela obra ter sido publicada antes em jornal de grande circulação, onde a ideia espírita foi afirmada e apresentada e conclui que “a forma de romance tem sua utilidade; graças a uma leveza aparente, penetrou em toda a parte e com ela a ideia”.

 

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