Eliana Haddad
Em 1866, Allan Kardec
identificava em Paris o primeiro romance que se utilizava de ideias espíritas
como fio condutor de uma intrigante história de amor.
O escritor Théophile Gautier
(1811-1872) escrevia um romance-folhetim, intitulado Espírita, publicando-o em pequenos capítulos, no influente jornal Le Moniteur Universel, que durante muito
tempo foi o diário oficial do governo francês.
Como novela, a história era
acompanhada por leitores não só da França, fazendo enorme sucesso e provocando
curiosidade sobre as ideias espíritas que fervilhavam na sociedade europeia,
desde o lançamento de O Livro dos Espíritos
(1857).
O enredo, contado pelo famoso
poeta, jornalista e crítico literário francês, também atiçou a curiosidade de
Allan Kardec, dele merecendo vários comentários sobre esse gênero literário na
divulgação das ideias espíritas, como se pode ler na Revista Espírita de dezembro de 1865.
É da própria essência do romance representar
um assunto fictício, quanto aos fatos e personagens. Mas nesse mesmo gênero de
produções há regras de que o bom senso não permite afastar-se. Se os detalhes
não forem verdadeiros em si mesmos, ao menos devem ser verossímeis e de
perfeito acordo com o meio onde se passa a ação, escreveu Kardec.
Ele escreve que se pode fazer
romances sobre o Espiritismo, assim como sobre todas as coisas.
Dizemos mesmo que o espiritismo, quando for
conhecido e compreendido em toda a sua essência, fornecerá às letras e às artes
fontes inesgotáveis de poesias encantadoras. (...) Como nos romances históricos
ou de costumes, é indispensável conhecer a fundo a tela sobre a qual se quer
bordar, a fim de não se cometer disparates, que seriam outras tantas provas de
ignorância. Aquele, pois, que não estudou a fundo o espiritismo, em seu espírito,
em suas tendências, em suas máximas, tanto quanto em suas formas materiais, é
‘inapto’ para fazer um romance espírita. (...) É preciso que, lendo um romance
espírita, os espíritas possam reconhecer-se e poder dizer: é isto.
A história de “Espírita”
Espírita, lançado no Brasil como O ignorado amor (O Clarim, 1977), conta a história de um rapaz
galanteador que é influenciado por uma moça de nome Espírita. Ela se apaixonara
por ele quando encarnada e, por desilusão, por não ter sido notada e correspondida,
acabou por se entregar à reclusão, em um convento. Sem jamais esquecê-lo, lá
desencarnou ainda jovem com as dolorosas lembranças deste ignorado amor. Depois
de muitas aparições e fenômenos recheados de incrível sintonia, ele, encarnado
ainda, também acaba por se apaixonar por Espírita.
Confessa Kardec na Revista Espírita de 1866 que não
conhecia pessoalmente Théophile Gautier e nem sabia quais eram as suas
convicções ou seus conhecimentos a respeito do Espiritismo.
Sua obra ainda está
debutando (...). Diremos apenas que se ele não encarasse o seu assunto senão
sob um único ponto de vista – o das manifestações – desprezando o lado
filosófico e moral da doutrina, não corresponderia à ideia geral e complexa que
o seu título abarca, muito embora o nome Espírita
seja o de um de seus personagens. Se os fatos que ele imagina, para a
necessidade da ação, não se encerrassem nos limites traçados pela experiência;
se os apresentasse como se passando em condições inadmissíveis, sua obra
faltaria com a verdade e faria supor que os espíritas creem nas maravilhas dos
contos das Mil e uma Noites. Se
atribuísse aos espíritas práticas e crenças que estes desaprovam, ela não seria
imparcial e, sob esse ponto de vista, não seria uma obra literária séria. A
doutrina espírita não é secreta, não tem mistérios (...); diz claramente o que
admite e o que não admite; os fenômenos cuja possibilidade reconhece não são
sobrenaturais nem maravilhosos, mas fundados nas leis da Natureza, de sorte que
nem faz milagres, nem prodígios. Aquele, pois, que não a conhece, ou que se
engana quanto às suas tendências, é porque não quer dar-se ao trabalho de a
conhecer, adverte.
Quando este romance-folhetim foi
lançado em forma de livro, em 1867, Kardec voltou a tecer comentários à obra de
Gautier.
É preciso não tomar
os fatos ao pé da letra; há de se considerar que o livro não é um tratado de
espiritismo. A verdade está no fundo das ideias e pensamentos, que são
essencialmente espíritas e apresentados com uma delicadeza e uma graça encantadoras,
muito mais que nos fatos, cuja possibilidade, por vezes, é contestável.
Kardec ainda comenta sobre a importância do romance: por ser
Gautier um escritor de expressão, pela obra ter sido publicada antes em jornal
de grande circulação, onde a ideia espírita foi afirmada e apresentada e
conclui que “a forma de romance tem sua
utilidade; graças a uma leveza aparente, penetrou em toda a parte e com ela a
ideia”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário