terça-feira, 26 de julho de 2022

EDUCAÇÃO DE ALÉM-TÚMULO[1]

 


Allan Kardec

 

Escrevem-nos de Caen:

Uma mãe e suas três filhas, querendo estudar a Doutrina Espírita, não podiam ler duas páginas sem sentir um mal estar, de que não se davam conta. Um dia encontrei-me em casa dessas senhoras com uma jovem médium, sonâmbula muito lúcida. Esta adormeceu espontaneamente e viu perto de si um Espírito que reconheceu como o abade L..., antigo cura do lugar, morto há uns dez anos.

Sois vós, senhor cura, que impedis esta família de ler?

– Sim, sou eu. Velo incessantemente sobre o rebanho confiado aos meus cuidados. Há muito tempo que vos vejo querer instruir minhas penitentes em vossa triste doutrina. Quem vos deu o direito de ensinar? Fizestes estudos para isto?

Dizei-me, senhor abade, estais no céu?

– Não; não sou bastante puro para ver a Deus.

Então estais nas chamas do purgatório?

– Não, pois não sofro.

Vistes o inferno?

– Fazeis-me tremer! Vós me perturbais! Não posso vos responder, porque talvez me digais que devo estar numa destas três coisas. Tremo ao pensar no que dizeis e, contudo, sou atraído para vós pela lógica de vossos raciocínios. Voltarei e discutirei convosco.

Com efeito, ele voltou muitas vezes. Discutimos e ele compreendeu tão bem que o entusiasmo o ganhou. Ultimamente exclamava:

− Sim, agora sou espírita, dizei-o a todos os que ensinam.

− Ah! como gostaria que compreendessem Deus como este anjo me fez conhecer!

Falava de Cárita, que tinha vindo a nós, e diante da qual ele caiu de joelhos, dizendo que não era um Espírito, mas um anjo. Desde esse momento ele tomou por missão instruir os que pretendem instruir os outros.

 

Nosso correspondente acrescenta o seguinte fato:

Entre os Espíritos que vêm ao nosso círculo, tivemos o doutor X..., que se apodera do nosso médium, e que é como uma criança. É preciso dar-lhe explicações sobre tudo; ele avança, compreende e está cheio de entusiasmo; vai junto dos sábios que conheceu; quer explicar-lhes o que vê, o que agora sabe, mas eles não o compreendem; então se irrita e os trata de ignaros. Um dia, numa reunião de dez pessoas, ele se apoderou da mocinha, como de hábito (a jovem médium, pela qual fala e age); perguntou-me quem era eu e por que sabia tanto sem nada ter aprendido; tomou-me a cabeça com as mãos e disse:

− Eis a matéria; aí me reconheço; mas como estou aqui, eu? Como posso fazer falar este organismo que, entretanto, não é meu? Falais-me da alma; mas onde está a que habita este corpo?

Depois de lhe ter feito notar o laço fluídico que une o Espírito ao corpo durante a vida, ele exclamou de repente, falando da jovem médium:

− Conheço esta menina; eu a vi em minha casa; seu coração estava doente; como é que não está mais? Dizei-me quem a curou.

Fiz-lhe ver que se enganava e que jamais a tinha visto.

– Não, disse ele, não me engano, e a prova é que lhe piquei o braço e ela não sentiu nenhuma dor.

Quando a jovem despertou, nós lhe perguntamos se havia conhecido o doutor e se tinha ido consultá-lo.

− Não sei, respondeu ela, se foi ele; mas, estando em Paris, levaram-me a um célebre médico, do qual não me lembro nem o nome, nem o endereço.

Suas ideias se modificam rapidamente; é agora um  Espírito no delírio da felicidade do que sabe; queria provar a todo o mundo que o nosso ensino é incontestável. O que sobretudo o preocupa é a questão dos fluidos.

− Eu quero, diz ele, curar como o vosso amigo; não quero mais me servir de venenos; não os tomeis jamais. Estuda hoje o homem, não mais no seu organismo, mas em sua alma.

 Fez-nos dizer como se operava a união da alma com o corpo na concepção, e pareceu muito feliz com isto. O bom doutor Demeure veio em seguida e nos disse que não nos admirássemos com as perguntas, por vezes pueris, que ele poderia fazer-nos, e disse:

− Ele é como uma criança, a quem se deve ensinar a ler no grande livro da Natureza; mas, como é ao mesmo tempo uma grande inteligência, instrui-se rapidamente, e para isso nós concorremos do nosso lado.

 

Esses dois exemplos vêm confirmar estes três grandes princípios revelados pelo Espiritismo, a saber:

1.       Que a alma conserva no mundo dos Espíritos, por um tempo mais ou menos longo, as ideias e os preconceitos que tinha durante a vida terrestre;

2.       Que se modifica, progride e adquire novos conhecimentos no mundo dos Espíritos;

3.       Que os encarnados podem concorrer para o progresso dos Espíritos desencarnados.

Estes princípios, resultado de inumeráveis observações, têm uma importância capital, porque derrubam todas as ideias implantadas pelas crenças religiosas sobre o estado estacionário e definitivo dos Espíritos após a morte. Desde que é demonstrado o progresso no estado espiritual, todas as crenças fundadas sobre a perpetuidade de uma situação uniforme qualquer caem diante da autoridade dos fatos. Também caem diante da razão filosófica, que diz que o progresso é uma lei da Natureza, e que o estado estacionário dos Espíritos seria, ao mesmo tempo, a negação dessa lei e da justiça de Deus.

Progredindo o Espírito fora da encarnação, disso resulta esta outra consequência não menos capital: que, voltando à Terra, traz a dupla conquista das existências anteriores e da erraticidade. Assim se realiza o progresso das gerações.

É incontestável que quando o médico e o padre, dos quais se falou acima, renascerem, trarão ideias e opiniões completamente diversas das que tinham na existência que acabam de deixar; um não será mais fanático, o outro não será mais materialista, e ambos serão espíritas. O mesmo se pode dizer do doutor Morel Lavallé, do bispo de Barcelona e de tantos outros.

Há, pois, utilidade para o futuro da sociedade em se ocupar da educação dos Espíritos.



[1] Revista Espírita – Maio/1868 – Allan Kardec

segunda-feira, 25 de julho de 2022

FREDERICA HAUFFE[1]

 

 

Perto da Cidade de Lowënstein, no Wurtemberg, em meio às montanhas, cujo ponto mais elevado atinge 1879 pés acima do nível do mar, rodeada de colinas e vales, num recesso pitoresco, estende-se à aldeiazinha de Prevorst. Conta pouco mais de 400 habitantes, que vive a maior parte da exploração da floresta para a fabricação de carvão e colheita de produtos nativos.

No ano de 1801, aos 23 de setembro, nessas altas montanhas de Prevorst, nasceu uma menina que desde muito cedo deu provas de extraordinária vida interna, cujos fenômenos são o tema deste artigo.

Frederica Hauffe, comumente chamada a Vidente de Prevorst, cujo pai exercia as funções de guarda de caça florestal, fora educado, devido ao isolamento da aldeia, na maior simplicidade e ingenuidade.

Não recebeu instrução nem notas de habilitação. Não conhecia Línguas, História, Geografia, História Natural, não possuía as noções comuns de seu sexo. Durante longos anos de sofrimento, a “Bíblia” e o “Livro dos Salmos” eram o seu único estudo. Incontestável a sua moralidade; piedosa sem hipocrisia; considerava seus longos sofrimentos e estranhas condições como um desígnio de Deus, e exprimia em poesia os seus sentimentos.

Como contraparte a essa imunidade, descobriu-se nela, ainda pequena, uma faculdade absolutamente incontestável, supranormal ou de pressentimento, que se manifestava principalmente por sonhos proféticos.

Quando repreendida, desgostosa, ou irritada por qualquer motivo, ou magoada em seus sentimentos, era, durante a noite, levada a esses profundos esconderijos, onde a visitavam as visões instrutivas, premonitórias ou proféticas.

Assim, numa ocasião em que o pai perdera um objeto de valor e a responsabilizava por isso, posto que estivesse inocente, sentiu-se tão perturbada que viu em sonho o lugar em que o objeto se achava. Ainda muito criança, indicava com a vara de aveleira, onde havia água e metais. Em idade mais avançada, como a cidade possuía poucos elementos de cultura, os pais confiaram-na ao avô João Schmidgall, que habitava Lowenstein, a pouca distância.

Com grande pesar da família, esta sensibilidade às influências espirituais imperceptíveis aos outros, logo se manifestou de maneira saliente. Foi em casa do avô que um espectro apareceu pela primeira vez à pobre menina. A meia noite ela viu no corredor uma grande forma sombria que suspirou passando perto dela; parou na extremidade do vestíbulo e lhe mostrou um rosto de que ela nunca mais se esqueceu.

Essa primeira aparição não lhe causou maiores apreensões do que as que viram no decorrer da existência. Encarou-a com calma e chegando-se ao avô lhe disse:

Há no corredor um homem estranho, vá vê-lo.

Tão importantes, mas lamentáveis faculdades não trouxeram qualquer modificação na menina. Era a mais alegre entre suas companheiras, apesar de confinada durante muito tempo em seu quarto pela sua sensibilidade; seria uma preparação para que pudesse ver com olhos normais o que era invisível para os outros, a explosão de uma faculdade de visão espiritual por meio dos órgãos carnais.

Encontramo-la em idade mais avançada com seus pais em Oberstenfeld, que foi durante algum tempo a morada paterna. Dos 17 aos 19 anos, em que foi sujeita a influências agradáveis, cheias de movimento, parecia ter perdido, em certos limites, a faculdade de percepção interna; faziam-se notar apenas por um caráter mais espiritual, que brilhava em seu olhar, e por maior contentamento, sem afastar-se dos seus modos habituais e do das jovens de sua companhia. A despeito dos falsos ruídos espalhadas, é certo que mesmo nessa idade, susceptível de tais sentimentos, ela não contraiu qualquer ligação nem experimentou decepção em suas afeições.

Era extremamente sujeita às manifestações espirituais de qualquer espécie − sonhos proféticos, predições, visões proféticas nos copos e espelhos. Viu assim num copo uma pessoa que entrava em seu quarto meia hora mais  tarde e um carro impossível de perceber de onde estava; descreveu a viatura, as pessoas que viajavam nela, uns cavalos, e meia hora depois chegava a sua casa.

Parecia gozar, nessa época, da segunda vista. Certa manhã, deixando o aposento durante a visita do médico, viu no vestíbulo um esquife que lhe impedia o caminho e nele o corpo de seu avô paterno. Entrou no quarto e pediu ao médico e aos pais que viessem vê-lo. Nem eles nem ela, porém, perceberam mais nada. No dia seguinte lá estava o esquife e o corpo ao lado de sua cama. Seis semanas mais tarde seu avô morria, depois de ter gozado a mais perfeita saúde até os últimos dias que precederam sua morte.

A faculdade de ver Espíritos que a Senhora Hauffe possuía desde a infância, desenvolveu-se constantemente.

Durante três anos, de 25 de novembro de 1826 a 2 de maio de 1829,  Dr. Justinus Kerner pôde estudá-la à vontade e reunir os elementos de um livro que produziu a maior sensação na Alemanha, porque em alguns anos se esgotaram cinco edições. Foi traduzido em inglês pela Senhora Crowe e em francês pelo Dr. Dusart.

Eschenmayer diz a seu respeito nos Mistérios:

Suas disposições naturais eram doces, amáveis, sérias. Sentia-se sempre conduzida para a contemplação e para a prece. Havia algo de espiritual na expressão dos olhos, sempre claros e brilhantes, apesar do sofrimento; de grande mobilidade durante a conversa, tornavam-se subitamente fixos, e via-se por este sinal, que ela estava em presença de uma de suas estranhas aparições. Em tais condições proferia palavras rápidas.

A 5 de agosto de 1829, às dez horas a irmã vidente notou uma forma branca entrar-lhe no quarto; no mesmo instante a agonizante deu um grito de alegria e o seu espírito, nesse momento, pareceu desprender-se. Em pouco, sua alma partiu deixando o invólucro inteiramente irreconhecível, porque nenhum de seus traços conservou a forma anterior.

Os restos daquela que tanto sofreu foram depositados no pitoresco cemitério de Lüwenstein, onde já repousavam os corpos de seu avô, o estimável Schmidgall, e sua mulher, que ela reconhecera como seu espírito protetor.

sábado, 23 de julho de 2022

A IMPORTÂNCIA DA INDULGÊNCIA[1]

 

Rogério Miguez – 12/julho/2022

 

Qual o verdadeiro sentido da palavra caridade, como a entendia Jesus?

“Benevolência para com todos, indulgência para as imperfeições dos outros, perdão das ofensas[2]”.

 

Quando Allan Kardec, já quase ao final da parte terceira de O Livro dos Espíritos, abordou temas referentes à Justiça, Amor e Caridade, de modo a melhor compreender esta tríade de destacados temas, elaborou uma pergunta bem direta, todavia, talvez, muitos não tenham se dado conta da sua importância. Trata-se da questão anteriormente transcrita.

O primeiro destaque em relação à pergunta é o fato de Allan Kardec ter indagado aos Espíritos a opinião de Jesus sobre o tema caridade. Por qual razão não perguntou genericamente: Qual o verdadeiro sentido da palavra caridade? Como devemos praticar a caridade? Como Deus entende a caridade? O que é caridade segundo as leis de Deus? São muitas opções, mas o Educador de Lion se interessou particularmente pela visão específica de Jesus, como se esta representasse uma orientação de destaque sobre o tema.

A surpresa da resposta, não sabemos se também teria sido para Kardec, foi quando os Espíritos, quem sabe o próprio Jesus, desconhecemos quem ditou a resposta, citou apenas modalidades da caridade moral ou imaterial, para bem expressá-la, àquela não dependendo de bens objetivos, mas apenas de tesouros subjetivos, plenamente se realizando pelo exercício das conhecidas virtudes.

É fato ser o dileto discípulo de Pestalozzi, mais à frente, por outras indagações, explorado especificamente a posição da famosa esmola, tão bem conhecida de todos, a mais direta, talvez a mais fácil forma de se praticar a caridade. Em sentido mais abrangente podendo representar qualquer doação material a necessitados, seja o que for: cobertor, moeda, sopa, remédio…

Contudo, naquele momento, quando se construía a pedra fundamental do pensamento kardequiano, O Livro dos Espíritos, a caridade moral, tudo indica, aparentemente, foi designada como a mais relevante, importante e meritória. Afinal, é o entendimento de Jesus, embora tenhamos plena consciência da temática caridade ter sido explorada de mil formas pela espiritualidade, descrevendo incontáveis facetas dela, ao longo dos compêndios espíritas.

Destaca-se também da resposta o fato de os Espíritos terem apontado exatamente estas três, entre tantas possibilidades: Benevolência, Indulgência e Perdão, como virtudes mais representativas da prática da caridade, especificamente moral.

Da percepção comum, benevolência expressa a qualidade de alguém que é benevolente, quer dizer, é afetuoso, age com estima em relação ao próximo. Pode significar também demonstrar bondade, ou mesmo boa vontade. Ou seja, se expressa caridade por esta virtude, apenas através de atitudes simples, no trato com os outros, sendo igualmente compreensivo e tolerante.

A propósito, quando perguntaram a Chico Xavier em que matéria Emmanuel era mais exigente, o médium mineiro disse categórico: No trato com os outros[3].

Reflitamos agora um tanto sobre a indulgência. Característica de quem é indulgente, isto significa ter facilidade em perdoar faltas alheias. Intimamente vinculada à clemência, tolerância e perdão, que são atitudes ligadas à absolvição de outrem sobre castigos e punições. Interessante notar que do latim indulgentia, que provém de indulgeo, tem o significado de para ser gentil ou perdão de uma pena. Desta forma, indulgência está intimamente ligada à benevolência e mesmo ao perdão.

A terceira indicação de Jesus seria perdoar. Liberar alguém de uma culpa, ofensa, dívida, sendo fundamental não guardar ressentimentos, rancor, raiva. É de se notar que pode ser aplicada a si mesmo, da mesma forma que a indulgência, visto que podemos também ser indulgentes conosco mesmos.

Desta ligeira análise das três sugestões do Cristo, ou da interpretação do pensamento de Jesus, pelos Espíritos superiores responsáveis pela resposta, observa-se que a segunda recomendação possui uma fronteira com a primeira quando se imagina o ser gentil como uma atitude indulgente, de igual modo, também possui uma interface com a terceira, no que tange ao ato de perdoar, é a essência da indulgência.

Sendo assim, poderíamos destacar entre as três, a indulgência, pois se exercitada na sua plenitude, poderia abranger as outras duas.

Entretanto, como nos é difícil viver a indulgência!

Eis aí um desafio, para todos os aprendizes das leis eternas do Pai, valendo a pena lembrar que ser indulgente não significa ser conivente, entendimento obtuso desta prática que comumente alcança os espíritas, acreditando que por conta de serem indulgentes devem: tudo tolerar, tudo aceitar, tudo permitir, principalmente nas atividades dentro das casas espíritas, por conta deste equivocado entendimento, vemos comumente desvios doutrinários, na prática e na teoria, sendo exercitados nas agremiações espíritas.

Não somos juízes da conduta alheia, tampouco censores do entendimento do próximo, contudo, há que existir bom senso, equilíbrio, não permitindo que o movimento espírita, através de suas unidades praticantes, os centros, deem exemplos lamentáveis aos que nos procuram em busca de orientação de fato espírita, desorientando-os baseados em entendimentos pessoais de seus dirigentes.



[2] KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Trad. Guillon Ribeiro. Parte terceira – Da lei de justiça, de amor e de caridade – Cap. XI. q. 886; e

[3] BARBOSA, Elias. No mundo de Chico Xavier. Encontro com Chico Xavier. cap.5. q. 14

sexta-feira, 22 de julho de 2022

AINDA SOBRE A HOMOSSEXUALIDADE[1]

 

Ricardo Baesso de Oliveira

 

Veem-se, ainda, em parcela do movimento espírita, considerações inadequadas sobre o tema homossexualidade. Ainda temos ouvido as seguintes expressões: “não é coisa de Deus”, “escolha infeliz”, “culpa dos pais”, “viciado em sexo” ou “sublimar o sexo”.

Há quem afirme que a literatura espírita não possui elementos suficientes que permitam um posicionamento definido em torno da homossexualidade e da transexualidade.

Penso que tal argumentação se fundamenta em colocações que foram feitas, no passado, por personalidades importantes, como Herculano Pires e Jorge Andréa, ou por Espíritos como Philomeno de Miranda. Acredito que as considerações, hoje superadas, vindas dessas figuras altamente respeitáveis se devem a ausência, em sua época, de estudos científicos bem delineados sobre o tema.

Estudos recentes efetuados por diversos pesquisadores têm mostrado que:

1.       As evidências de que os processos biológicos desempenham algum papel na orientação sexual são consistentes. A melhor evidência disponível sugere que a exposição a hormônios, especialmente a testosterona, no ambiente pré-natal, está relacionada à orientação sexual[2].

2.       Ninguém se torna hetero, homo ou bissexual por opção ou escolha. Um conjunto de influências de ordem biopsicosocioculturais nos inclina para esta ou aquela orientação (que não é opção) sexual[3].

3.       Nasce-se homossexual, não se escolhe sê-lo. O balanço entre fatores biológicos ou culturais suscetíveis de explicar a homossexualidade pende notavelmente em favor dos fatores biológicos, agindo de maneira preponderante durante a vida embrionária. A homossexualidade seria o resultado de uma interação entre fatores genéticos e hormonais embrionários com uma contribuição menor dos efeitos de experiências sociais e sexuais pós-natais[4].

4.       Estudos com imagem têm dado suporte à visão de que o encéfalo de homens homossexuais se assemelha aos de mulheres heterossexuais, e que o encéfalo de mulheres homossexuais se assemelha aos de homens heterossexuais[5].

5.       Não há evidência de que a maneira como os pais tratam seus filhos tem alguma coisa a ver com a orientação sexual. Do mesmo modo, não foi encontrado nenhum outro fator ambiental para explicar a homossexualidade[6].

6.       Não há relação entre homossexualidade e comportamento imoral. Os homossexuais “traem” seus parceiros com a mesma prevalência dos heterossexuais. Existem promíscuos tanto entre homo e hetero e não se pode relacionar a homossexualidade com a promiscuidade sexual[7].

7.       Não se trata de uma condição patológica, tendo sido excluída do “Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais”, desde 1973 e do “Código internacional de doenças”, desde 1990[8].

8.       A orientação sexual não pode ser alterada com terapia, e estar com pessoas cuja orientação sexual difere da sua não muda sua orientação sexual[9].

9.       Grande parte dos casamentos entre homossexuais tem grande durabilidade, e os problemas identificados nesses casamentos são semelhantes aos observados em casamentos de heterossexuais[10].

10.   Os homossexuais podem ser tão bons pais quanto os heterossexuais. A investigação científica tem demonstrado que os filhos criados por pais gays ou mães lésbicas apresentam o mesmo nível de funcionamento emocional, cognitivos e sexual que os filhos de pais heterossexuais[11].

Na obra de Allan Kardec, na literatura mediúnica produzida através de Chico Xavier e em considerações mais recentes do Espírito Joanna de Ângelis, encontramos ampla correlação com as considerações apresentadas acima.

Kardec relaciona a homossexualidade a uma mudança reencarnatória de polaridade sexual. Esclarece que pode acontecer que o Espírito que percorra uma série de existências no mesmo sexo, possa conservar, na condição de Espírito, o caráter de homem ou de mulher, cuja marca nele ficou impressa. Numa nova encarnação, ele trará naturalmente o caráter e as inclinações que tinha como Espírito. Mudando de sexo ele poderá, portanto, sob essa impressão e em sua nova encarnação, conservar os gostos, as inclinações e o caráter inerentes ao sexo que acaba de deixar. Assim se explicam certas anomalias aparentes, notadas no caráter de certos homens e de certas mulheres[12].

Sabemos que a formação do cérebro, durante o período fetal, é, em grande parte, efeito do psiquismo do Espírito reencarnante, o que torna óbvio que um Espírito com psiquismo distinto da biologia corporal no que se refere a masculinidade ou feminilidade, irá interferir na constituição desse cérebro, justificando, do ponto de vista espírita, o que os estudos têm mostrado: a homossexualidade definida ainda no período gestacional.

Sobre a origem precoce da homossexualidade, Emmanuel coloca:

[...] em minhas noções de dignidade do espírito, não consigo entender por que razão esse ou aquele preconceito social impedirá certo número de pessoas de trabalhar e de serem úteis à vida comunitária, unicamente pelo fato de haverem trazido do berço características psicológicas ou fisiológicas diferentes da maioria[13].

Joanna caminha nessa linha de pensamento, ao afirmar que a homossexualidade pode ser considerada como certa predisposição fisiológica[14].

No que concerne as experiências sexuais entre pessoas do mesmo sexo, não encontramos na obra de Kardec e na literatura produzida por Chico nada de substancial que considere tal conduta como eticamente reprovada, obviamente, considerando o respeito ao parceiro e à função sexual, pela prática monogâmica respeitosa, tal qual se espera das relações heterossexuais.

Kardec considerou que é necessário não esquecer que é o Espírito quem ama, e não o corpo[15].  O codificador dá uma importância relativamente pequena ao fenótipo sexual, quando coloca que para o Espírito pouco lhe importa encarnar no corpo de um homem ou de uma mulher, pois tudo depende das provas pelas quais deverá passar[16]. Segundo Kardec, as almas ou Espíritos não têm sexo. As afeições que os unem nada têm de carnal e, por isto mesmo, são mais duráveis, porque são fundadas numa simpatia real e não são subordinadas às vicissitudes da matéria[17].

Quando estabelece que o casamento é uma instituição fundada na lei natural, Kardec enfatiza que se trata de uma união permanente entre dois seres[18]. 

Este pensamento de Kardec embasou a resposta de Emmanuel à seguinte indagação:

− É lícito a duas pessoas do mesmo sexo viverem sob o mesmo teto, como marido e mulher.

Na resposta, Emmanuel, se reportando ao pensamento anterior, coloca:

− A esta indagação o Codificador da Doutrina Espírita formulou a Questão 695, em “O Livro dos Espíritos’ com as seguintes palavras:

− “O casamento, quer dizer, a união permanente de dois seres é contrário à lei natural?”

Os orientadores dos fundamentos da Doutrina Espírita responderam com a seguinte afirmação:

− “É um progresso na marcha da Humanidade”.

Os amigos encarnados no plano físico com a tarefa de sustentar e zelar pelo Cristianismo Redivivo, na Doutrina Espírita estão aptos ao estudo e conclusões do texto em exame[19].

Emmanuel considera que à frente da vida eterna, os erros e acertos dos irmãos de qualquer procedência, nos domínios do sexo e do amor, são analisados pelo mesmo elevado gabarito de Justiça e Misericórdia. Isso porque todos os assuntos nessa área da evolução e da vida se especificam na intimidade da consciência de cada um[20].

A obra de André Luiz considera que esses relacionamentos, quando fundados na afeição sincera (à semelhança dos casamentos heterossexuais) nada significam de imoral ou que devam ser proscritos. Em obra psicografada em 1947, o autor comenta que erro lamentável é supor que só a perfeita normalidade sexual, consoante as respeitáveis convenções humanas, possa servir de templo às manifestações afetivas. O campo do amor é infinito em sua essência e manifestação. Insta fugir às aberrações e aos excessos; contudo é imperioso reconhecer que todos os seres nasceram no Universo para amar e serem amados[21].

O autor volta ao tema, em obra de 1963 colocando que nos foros da justiça Divina, em todos os distritos da Espiritualidade Superior, as personalidades humanas tachadas por anormais são consideradas tão carecentes de proteção quanto as outras que desfrutam a existência garantida pelas regalias da normalidade, segundo a opinião dos homens, observando-se que as faltas cometidas pelas pessoas de psiquismo julgado anormal são examinadas no mesmo critério aplicado às culpas de pessoas tidas por normais, notando-se, ainda, que, em muitos casos, os desatinos das pessoas supostas normais são consideravelmente agravados, por menos justificáveis perante acomodações e primazias que usufruem, no clima estável da maioria[22].

Acrescentou, na mesma obra, que  no mundo porvindouro os irmãos reencarnados, tanto em condições normais quanto em condições julgadas anormais, serão tratados em pé de igualdade, no mesmo nível de dignidade humana, reparando-se as injustiças assacadas, há séculos, contra aqueles que renascem sofrendo particularidades anômalas, porquanto a perseguição e a crueldade com que são batidos pela sociedade humana lhes impedem ou dificultam a execução dos encargos que trazem à existência física, quando não fazem deles criaturas hipócritas, com necessidade de mentir incessantemente para viver, sob o Sol que a Bondade Divina acendeu em benefício de todos.

No programa Pinga-fogo, em 1971, Chico se manifestou dizendo que tanto quanto acontece com a maioria que desfruta de uma sexualidade dita normal, aqueles que são portadores de sentimentos de homossexualidade ou bissexualidade são dignos do nosso maior respeito, e acrescentou que o comportamento sexual da humanidade sofrerá, no futuro, revisões muito grandes[23].

E, finalmente, Joanna de Ângelis, em obra de 2007, escreveu que o fato de alguém amar outrem do mesmo sexo não significa distúrbio ou desequilíbrio da personalidade, mas uma opção que merece respeito, podendo também ser considerada como certa predisposição fisiológica. Pode-se considerar como uma necessidade sexual diferente com objetivos experimentais no processo da evolução. O amor, no entanto, será sempre o definidor de rumos em favor do ser humano em toda e qualquer situação em que o mesmo se encontre[24].



[1]  O CONSOLADOR - Ano 16 - N° 781 - 17 de Julho de 2022 - http://www.oconsolador.com.br/ano16/781/ca5.html

[2] Ciência psicológica, Michael Gazzaniga.

[3] Carmita Abdo sociedade@oglobo.com.br 09/08/2014.

[4] Biologie de l’homosexualité, Jacques Balthazart.

[5] Princípios de neurociência, Eric Kandel.

[6] Ciência psicológica, Michael Gazzaniga.

[7] A experiência homossexual, Marina Castañeda.

[8] Ciência psicológica, Michael Gazzaniga

[9] Idem.

[10] A experiência homossexual, Marina Castañeda.

[11] Academia americana de psiquiatria, arquivos, 2002; Academia americana de Pediatria, Pediatrics, 2002.

[12] KARDEC, ALLAN - Revista Espírita, janeiro de 1866.

[13] Lições de sabedoria: entrevistas de Chico/Emmanuel, à Folha espírita de SP.

[14] FRANCO, DIVALDO P. pelo espírito de Joanna de Ângelis - Encontro com a paz e a saúde, cap.8.

[15] KARDEC, ALLAN - O Livro dos Espíritos, item 939.

[16] KARDEC, ALLAN - O Livro dos Espíritos, item 200.

[17] KARDEC, ALLAN - Revista Espírita, janeiro 1866.

[18] KARDEC, ALLAN - O Livro dos Espíritos, item 695.

[19] Lições de sabedoria: entrevistas de Chico/Emmanuel, à Folha espírita de SP.

[20] XAVIER, FRANCISCO C. pelo espírito de ANDRÉ LUIZ - Vida e sexo, cap 21.

[21]XAVIER, FRANCISCO C. pelo espírito de ANDRÉ LUIZ -  No mundo maior, cap.11.

[22] XAVIER, FRANCISCO C. pelo espírito de ANDRÉ LUIZ -  Sexo e destino, cap.9, parte II.

[23] Programa PINGO FOGO - TV Tupi, 1971

[24] FRANCO, DIVALDO P. pelo espírito de Joanna de Ângelis - Encontro com a paz e a saúde, cap.8.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

A BOA E VERDADEIRA DOUTRINA[1]

 

Miramez

 

Como todas as doutrinas têm a pretensão de ser a única expressão da verdade, por que sinais podemos reconhecer a que tem o direito de se apresentar como tal?

− Essa será a que produza mais homens de bem e menos hipócritas, quer dizer, que pratiquem a lei de amor e caridade na sua maior pureza e na sua aplicação mais ampla. Por esse sinal reconhecereis que uma doutrina é boa, pois toda doutrina que tiver por consequência semear a desunião e estabelecer divisões entre os filhos de Deus só pode ser falsa e perniciosa.

Questão 842/O Livro dos Espíritos

 

Para que possamos reconhecer uma doutrina como boa, basta verificarmos seus preceitos e os seus componentes. Aquela doutrina, ou mesmo filosofia espiritualista, cujos profitentes amarem mais, essa doutrina é respeitável e será colocada como fonte de fraternidade. Os filhos de Deus se unem por sentimentos dotados da verdade e de paz. Poderemos reconhecer os verdadeiros discípulos de Jesus por muito se amarem.

A religião, no entanto, que gasta o seu tempo precioso em combater outras religiões, que persegue e calunia outras crenças, essa religião é, pelo seu caráter, perniciosa, e se encontra afastada do Evangelho de Jesus.

Não queremos dizer que a Religião Espírita é a melhor. Os Espíritos benfeitores da humanidade, quando escreveram que fora da caridade não há salvação, dão prova de que eles mesmos não estavam escolhendo religião, mas sinceridade de ação. O que é caridade? É amor. Portanto, fora dessa virtude não há salvação, porque Deus criou o amor, para depois criar tudo o que existe e que possamos conceber.

O único sinal pelo qual podemos reconhecer se uma doutrina é boa e verdadeira, é aquela que ensina a amar mais, a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Melhor seria dizer, amar a Deus em todas as coisas, por ser Deus tudo para nós, seres criados por Ele por amor. E se queremos sentir Deus mais de perto, Paulo nos ensina, falando aos Romanos, no capítulo treze, versículo treze:

Andemos dignamente como em pleno dia, não em orgias e bebedeiras, não em impudicícias e dissoluções, nem em contendas e ciúmes.

É por esses meios que vamos reconhecendo o verdadeiro crente, aquele que não precisa que se lhe faça imposição para ter uma vida reta. Ele mesmo descobre o seu caminho, vendo e sentindo que deve mudar os seus pensamentos para melhor, do modo pelo qual Jesus nos ensinou. O homem de bem do futuro vai pensar e falar, vai falar e escrever o que fala, sem nenhuma restrição, por estar integrado na verdade e no amor.

Toda doutrina que tiver por efeito semear a desunião, ela não é boa; os Espíritos da discórdia e da má fé ali estão, inspirando seus dirigentes. Se eles pretendem defender a verdade da qual se acham dotados, essa verdade é falsa, porque Deus é a verdade e não precisa de defesa humana. Basta que os que pensam estar com a verdade, vivam-na em silêncio, que ela se irradia em todas as direções, acendendo luzes e deixando o amor, em suas múltiplas formas do bem.

As religiões que desejarem melhorar, devem entender que Deus não é carrasco; Ele espera que todos compreendam, mudando suas normas de viver. É somente se concentrarem nestas palavras com interesse:

Deus é amor.

Se Ele é amor, como nos falou João, o Evangelista, o que devemos fazer? Amar permanentemente em todas as direções da vida... Todo aquele que queira se levantar contra Deus, já deixou de viver, porque a vida é Deus.

 



[1] Filosofia Espírita – Volume 17 – João Nunes Maia

quarta-feira, 20 de julho de 2022

CASOS DE TRANSPLANTE CONSIDERADOS COMO EVIDÊNCIA DE SOBREVIVÊNCIA PÓS-MORTE[1]

 

Stephen E. Braude

 

Nas últimas duas décadas, surgiram alguns casos de receptores de transplantes de coração que parecem assumir traços de personalidade dominantes do doador de órgãos falecido. Este artigo resume brevemente as evidências e considera até que ponto elas podem apoiar o caso de sobrevivência à morte.

 

Fundo

A conscientização pública de casos de transformações de personalidade após transplantes de coração provavelmente começou com a publicação de A Change of Heart em 1997[2]. Neste livro, Claire Sylvia descreveu as mudanças de personalidade que experimentou após o transplante de coração e pulmão em 1988. Ela observou essas mudanças antes de conhecer a família de seu doador e aprender sobre seu caráter. Por exemplo, ela se viu desejando uma comida que antes não gostava, mas que seu doador, Tim, havia gostado. Entre eles estavam cerveja (que Claire sentiu vontade de beber logo após a cirurgia), pimentão verde e nuggets de KFC. A última delas parecia particularmente estranha, considerando que Claire era uma dançarina e coreógrafa que sempre foi muito cuidadosa com sua dieta. Além disso, pepitas do KFC foram encontradas na jaqueta de Tim quando ele foi morto. As preferências de cor e o nível de agressividade de Claire também mudaram de maneira que parecia mais com Tim.

As mudanças de Claire foram acompanhadas por alguns sonhos interessantes durante os primeiros meses após a cirurgia. Em um sonho, ela conheceu um homem chamado Tim L, que se parecia com seu doador, e no final do sonho ela beijou e inalou(?) Tim dentro dela. Em outro sonho, ela mudou de mulher para homem e depois voltou para mulher.

As experiências de Claire não são únicas, e outros casos parecem ainda mais notáveis ​​(veja Estudos de Caso abaixo).

Em um estudo anterior (1992), três dos quarenta e sete receptores de transplante de coração relataram uma mudança distinta de personalidade após uma operação de transplante, que eles atribuíram aos seus novos corações (veja A evidência abaixo).

 

Sobrevivência pós-morte?

Embora a evidência de sobrevivência pós-morte venha de várias formas, incluindo casos de mediunidade ostensiva e reencarnação, os casos de transplante são especialmente notáveis, por várias razões. Primeiro, eles constituem um conjunto significativo de novas evidências. Embora casos de reencarnação (e, em menor grau, possessão) continuem a aparecer, casos de mediunidade da qualidade de Leonora Piper ou Gladys Leonard declinaram acentuadamente na última metade do século XX, aparentemente junto com um interesse diminuído pelo Espiritismo.

Em segundo lugar, os casos de transplante reforçam a impressão, facilmente adquirida em casos de mediunidade, reencarnação e possessão, de que a forma de evidência de sobrevivência é influenciada pelas forças culturais e sociais circundantes. A mediunidade está ligada a crenças espíritas de algum tipo e floresceu durante um período de aproximadamente 80 anos, quando a religião espiritualista era uma força cultural. Da mesma forma, casos de reencarnação e possessão ocorrem principalmente em comunidades cujas religiões e sistemas de crenças predominantes acomodam os fenômenos. Claro, isso não mostra que os fenômenos sejam meras construções sociais, desprovidas de interesse parapsicológico genuíno. Mas sugere que a evidência de sobrevivência varia em sua linguagem de sintomas, como as formas variadas e culturalmente específicas de transtornos dissociativos[3]. Não surpreendentemente, as evidências de casos de transplante parecem distintamente restritas a partes mais desenvolvidas e ricas tecnologicamente do mundo, onde as operações de transplante são acessíveis. Com o desaparecimento de grandes médiuns dispostos a serem estudados sistematicamente e minuciosamente, os casos de transplante podem até funcionar como um contrapeso contínuo ao grande e ainda crescente corpo de casos de reencarnação, que tendem a se aglomerar em sociedades menos industrializadas.

Terceiro (e provavelmente o mais importante), os casos de transplante introduzem evidências de um novo tipo . Eles expandem o horizonte empírico em nossa busca por evidências de sobrevivência e nos apresentam uma rede distinta de necessidades e interesses aos quais podemos aplicar tanto as hipóteses de agente- vivo-psi quanto de sobrevivência.

Considere: quando pensamos em linhas de sobrevivência, é fácil imaginar por que, após suas mortes trágicas e prematuras, os doadores de órgãos podem se apegar a suas conexões terrenas – neste caso, seus órgãos vitais e especialmente o coração. É claro que os defensores de agente-vivo-psi enfatizariam um conjunto diferente de motivos causalmente relevantes. Os doadores não seriam os únicos indivíduos com necessidades aparentemente prementes. Os receptores de órgãos e as famílias do doador e do receptor também terão preocupações profundas, e elas também devem ser abordadas. Por exemplo, para interpretar as evidências com cuidado, precisamos considerar não apenas o quanto o receptor do órgão e a família do receptor sabiam sobre o doador, mas o quanto eles queriam saber. Da mesma forma, precisamos considerar se os membros da família do doador buscam urgentemente evidências da sobrevivência do doador. E, claro, os receptores de órgãos tendem a sentir um vínculo profundo com seu doador, e esse vínculo pode ser expresso psiquicamente de várias maneiras, tanto flagrantes quanto sutis.

 

Memória Celular?

Alguns tentaram explicar os casos de transplante em termos de memória celular; na verdade, essa é a estratégia explicativa predominante[4], e falar de memória celular está na moda, assim como o pensamento mecanicista em geral. No entanto, Stephen Braude sugeriu que essa abordagem é profundamente falha (na verdade, incoerente), porque enfrenta as mesmas dificuldades fatais que confrontam todas as teorias de traços de memória[5].

Mas podemos ignorar essas questões por enquanto, porque há uma desvantagem mais importante no apelo à memória celular – pelo menos para o sobrevivente. Se a memória celular fosse responsável pelos casos de transplante, então esses casos não seriam, estritamente falando, evidência de sobrevivência pós-morte. O apelo à memória celular é na verdade uma tentativa de explicar a evidência para a sobrevivência pós-morte

a.       reformulando-a no que seus proponentes, de forma bastante convencional e conservadora, acreditam ser termos cientificamente críveis, e

b.      ligando a personalidade (ou pelo menos um conjunto limitado de disposições psicológicas) a partes do corpo ainda em funcionamento.

Então, é claro, essa estratégia não se aplicará aos tipos de evidências de sobrevivência que interessaram à SPR[6] desde seu início – ou seja, casos em que as ações de uma personalidade identificável e as agendas pós-morte plausíveis parecem persistir mesmo depois que todas as partes do corpo param de funcionar ou decompor.

Assim, as explicações em termos de memória celular realmente tratam os casos de transplante como casos limites (dada a tecnologia atual) de sobrevivência antemortem. Enquanto os órgãos transplantados continuarem a funcionar, há uma sensação de que a morte corporal não ocorreu, embora, é claro, a integridade corporal tenha sido seriamente comprometida.

Neste ensaio, então, consideraremos o que a maioria dos cientistas médicos sem dúvida consideraria uma proposta mais radical – a saber, se os casos de transplante podem ser tratados como outra fonte potencial de evidência para a sobrevivência pessoal não corpórea . E talvez a maneira mais promissora de fazer isso seja interpretar os casos de transplante como um subconjunto de casos de possessão em que o falecido permanece ou paira – não em locais familiares como em casos assustadores (evidentemente muito menos impressionantes) – mas em torno de seus corpos vitais ainda vivos ( órgãos). Como veremos, alguns casos de transplante apoiam essa interpretação mais claramente do que outros.

 

A evidência

Aparentemente, o único exame sistemático da relação entre transplantes (neste caso, transplantes de coração) e mudanças de personalidade é o estudo austríaco de Bunzel et al, que entrevistaram 47 receptores de transplante de coração e descobriram que... três grupos de pacientes puderam ser identificados:

§  79% afirmaram que sua personalidade não mudou nada no pós-operatório;

§  15% afirmaram que sua personalidade realmente mudou, mas não por causa do órgão doador, mas devido ao risco de vida evento;

§  6% (três pacientes) relataram uma mudança distinta de personalidade devido a seus novos corações[7].

Curiosamente (mas não exclusivamente – Pearsall também notou isso em sua pesquisa), Bunzel descobriu que esses pacientes "sem mudança" empregavam defesas maciças e reações muitas vezes raivosas e hostis a perguntas sobre o possível recebimento da energia de seu doador. Chamaram perguntas sobre tal coisa de 'total absurdo' e ridicularizaram a ideia de que seu doador pudesse influenciar sua vida. Muitas vezes estavam ansiosos para mudar de assunto e zombavam da própria pergunta[8].

Podemos apenas nos perguntar se a forte negação desse grupo de receptores mascara a consciência de que algo mais parapsicologicamente importante havia ocorrido. Também não está claro se Bunzel e seus colegas levaram essa possibilidade suficientemente a sério e fizeram perguntas apropriadas durante as entrevistas. Por um lado, eles aparentemente não entrevistaram membros da família dos destinatários para saber se - ao contrário do que os próprios pacientes (talvez suspeitosamente defensivos) relataram - esses membros da família observaram profundas mudanças de personalidade. E por outro, todo o estudo foi formulado em linguagem que favorece uma interpretação das mudanças de personalidade observadas em termos de memória celular.

 

A principal questão colocada aos destinatários foi a seguinte:

O coração é muitas vezes visto como fonte de sentimentos, emoções e centro da personalidade. Se for assim, mudar o coração deve resultar em mudança de personalidade. Certamente, é uma questão de opinião. Por favor, conte-nos sua opinião, sua experiência até agora: Você se sente da mesma forma em relação a si mesmo após o transplante cardíaco, ou você se sente mudado?

Claramente, poderia ter havido uma maneira mais neutra em teoria de questionar os pacientes sobre possíveis mudanças de personalidade.

Além disso, há outra indicação de que Bunzel e colegas não tinham possibilidades parapsicologicamente mais interessantes em seu radar. Eles descrevem os relatos dos três pacientes que relatam profundas mudanças de personalidade como "fantasias de incorporação". Obviamente, o ceticismo subjacente da equipe de investigação poderia facilmente e sutilmente ter sido transmitido aos entrevistados.

 

Estudos de caso

Os resumos de casos a seguir são, em sua maioria, extraídos de uma revisão de dez casos envolvendo receptores de coração ou coração-pulmão (Pearsall et al., 1999) ou do livro de Pearsall[9].

 

Caso 1

O doador era um estudante negro de 17 anos, vítima de um tiroteio. O destinatário era um trabalhador de fundição do sexo masculino, branco, de 47 anos, diagnosticado com estenose aórtica.

 

A mãe do doador relatou:

Nosso filho estava indo para a aula de violino quando foi atingido. Ninguém sabe de onde veio a bala, mas apenas o atingiu e ele caiu. Ele morreu ali mesmo na rua abraçando seu estojo de violino. Ele adorava música e seus professores diziam que ele tinha uma queda real por isso. Ele ouvia música e tocava junto com ela. Acho que ele estaria no Carnegie Hall algum dia, mas os outros garotos sempre zombavam da música que ele gostava.

 

O destinatário relatou:

Estou muito triste e tudo pelo cara que morreu e me deu seu coração, mas eu realmente tenho problemas com o fato de ele ser negro. Eu não sou racista, veja bem, de jeito nenhum. A maioria dos meus amigos na fábrica são negros. Mas a ideia de que existe um coração negro em um corpo branco parece muito... bem, eu não sei. Eu disse à minha esposa que achava que meu pênis poderia crescer até o tamanho de um homem negro. Dizem que os negros têm pênis maiores, mas não tenho certeza. Depois que fazemos sexo, às vezes me sinto culpado porque um homem negro fez amor com minha esposa, mas não acho isso sério. Mas posso dizer uma coisa: eu costumava odiar música clássica, mas agora eu adoro. Então eu sei que não é meu novo coração, porque um cara negro do bairro não iria gostar disso. Agora acalma meu coração. Eu jogo isso o tempo todo. Eu mais do que gosto. Eu jogo isso o tempo todo.

 

A esposa do destinatário relata:

Ele ficou mais do que preocupado com a ideia quando soube que era o coração de um homem negro. Na verdade, ele me perguntou se poderia pedir ao médico um coração branco quando surgisse. Ele não é nenhum Archie Bunker, mas está perto disso. E ele me mataria se soubesse que eu te disse isso, mas pela primeira vez, ele convidou seus amigos negros do trabalho. É como se ele não visse mais a cor deles, embora ainda fale sobre isso às vezes. Ele parece mais confortável e à vontade com esses caras negros, mas ele não está ciente disso. E mais uma coisa que devo dizer: ele está me enlouquecendo com a música clássica. Ele não sabe o nome de uma música e nunca, nunca a ouviu antes. Agora, ele se senta por horas e ouve. Ele até assobia músicas clássicas que nunca poderia conhecer. Como ele os conhece? Você pensaria que ele gostaria de música rap ou algo assim por causa de seu coração negro[10].

 

Caso 2

A doadora era uma mulher de 24 anos, vítima de acidente automobilístico. O destinatário era um estudante de pós-graduação do sexo masculino de 25 anos que sofria de fibrose cística que recebeu um transplante de coração e pulmão.

 

A irmã do doador relatou:

Minha irmã era uma pessoa muito sensual. Seu único amor era a pintura. Ela estava a caminho de sua primeira exposição solo em uma pequena loja de arte quando um bêbado a atropelou. É uma loja de arte lésbica que apoia artistas gays. Minha irmã não era muito 'fora' sobre isso, mas ela era gay. Ela disse que suas pinturas de paisagem eram na verdade representações da figura da mãe ou da mulher. Ela olhava para uma modelo de mulher nua e pintava uma paisagem a partir disso! Você pode imaginar? Ela era dotada.

 

O destinatário relatou:

Eu nunca contei a ninguém no começo, mas pensei que ter um coração de mulher me tornaria gay. Desde a minha cirurgia, estou mais excitado do que nunca e as mulheres parecem ainda mais eróticas e sensuais, então pensei que poderia ter feito uma cirurgia transexual interna. Meu médico me disse que era apenas minha nova energia e vida que me fazia sentir assim, mas eu sou diferente. Eu sei que estou diferente. Faço amor como se soubesse exatamente como o corpo da mulher se sente e responde — quase como se fosse o meu corpo. Eu tenho o mesmo corpo, mas ainda acho que tenho o jeito de uma mulher pensar sobre sexo agora.

 

A namorada do destinatário relatou:

Ele é um amante muito melhor agora. Claro, ele era mais fraco antes, mas não é isso. Ele é como, quero dizer, ele conhece meu corpo tão bem quanto eu. Ele quer abraçar, segurar e levar muito tempo. Antes ele era um bom amante, mas não assim. É apenas diferente. Ele quer abraçar o tempo todo e ir às compras. Meu Deus, ele nunca quis fazer compras. E quer saber, ele carrega uma bolsa agora. A bolsa dele! Ele a pendura no ombro e a chama de sacola, mas é uma bolsa. Ele odeia quando eu digo isso, mas ir ao shopping com ele é como ir com uma das garotas. E mais uma coisa, ele adora ir a museus. Ele nunca, absolutamente nunca faria isso. Agora ele iria toda semana. Às vezes ele fica parado por alguns minutos e olha para uma pintura sem falar. Ele adora paisagens e apenas encara. Às vezes eu o deixo lá e volto mais tarde[11].

 

Caso 3

O doador era um menino de 16 meses que se afogou em uma banheira. O receptor era um menino de 7 meses com diagnóstico de tetralogia de Fallot (orifício no septo ventricular com deslocamento da aorta, estenose pulmonar e espessamento do ventrículo direito).

 

A mãe do doador, médica, disse:

Quando Carter [destinatário] me viu pela primeira vez, ele correu para mim e empurrou o nariz contra mim e o esfregou. Foi exatamente o que fizemos com Jerry [doador].

Eu sou uma médica. Sou treinada para ser uma observadora atenta e sempre fui uma cética nato. Mas isso era real. Sei que as pessoas dirão que preciso acreditar que o espírito do meu filho está vivo, e talvez eu acredite. Mas eu senti. Meu marido e meu pai sentiram. E eu juro para você, e você pode perguntar à minha mãe, Carter disse as mesmas palavras de bebê que Jerry disse. Carter tem [agora] seis anos, mas ele estava falando a conversa de bebê de Jerry e brincando com meu nariz, assim como Jerry fazia.

Ficamos com a família do destinatário naquela noite. No meio da noite, Carter entrou e pediu para dormir comigo e meu marido. Ele se aconchegou entre nós exatamente como Jerry fazia, e começamos a chorar. Carter nos disse para não chorar porque Jerry disse que estava tudo bem. Meu marido, eu, nossos pais e aqueles que realmente conheceram Jerry não têm dúvidas. O coração do nosso filho contém muito do nosso filho e bate no peito de Carter. Em algum nível, nosso filho ainda está vivo.

 

A mãe do destinatário relatou:

Eu vi Carter ir até ela [a mãe do doador]. Ele nunca faz isso. Ele é muito, muito tímido, mas foi até ela como costumava correr para mim quando era bebê. Quando ele sussurrou 'Está tudo bem mamãe', eu desabei. Ele ligou para a mãe dele, ou talvez fosse o coração de Jerry falando. E mais uma coisa que nos pegou: descobrimos conversando com a mãe de Jerry falando que Jerry tinha paralisia cerebral leve principalmente no lado esquerdo. Carter tem rigidez e alguns tremores do mesmo lado. Ele nunca fez isso quando bebê e só apareceu depois do transplante. Os médicos dizem que provavelmente é algo a ver com sua condição médica, mas eu realmente acho que há mais do que isso.

Mais uma coisa que eu gostaria de saber. Quando íamos à igreja juntos, Carter nunca tinha conhecido o pai de Jerry. Chegamos tarde e o pai de Jerry estava sentado com um grupo de pessoas no meio da congregação. Carter soltou minha mão e correu direto para aquele homem. Ele subiu no colo dele, o abraçou e disse 'papai'. Nós ficamos boquiabertos. Como ele poderia tê-lo conhecido? Por que ele o chamou de pai? Ele nunca fez coisas assim. Ele nunca soltava minha mão na igreja e nunca corria para um estranho. Quando perguntei por que ele fez isso, ele disse que não sabia. Ele disse que Jerry fez e foi com ele[12].

 

Caso 4

O doador foi um policial de 34 anos baleado ao tentar prender um traficante de drogas. O destinatário era um professor universitário de 56 anos diagnosticado com aterosclerose e doença isquêmica do coração.

 

A esposa do doador relatou:

Quando conheci Ben [o destinatário] e Casey, quase desmaiei. Primeiro, foi uma sensação notável ver o homem com o coração do meu marido no peito. Acho que quase pude ver Carl [o doador] nos olhos de Ben. Quando perguntei como Ben se sentia, acho que estava realmente tentando perguntar a Carl como ele estava. Eu não diria isso a eles, mas gostaria de poder ter tocado o peito de Ben e falado com o coração do meu marido.

O que realmente me incomoda, no entanto, é quando Casey disse de improviso que o único efeito colateral real da cirurgia de Ben foram flashes de luz em seu rosto. Foi exatamente assim que Carl morreu. O bastardo atirou bem na cara dele. A última coisa que ele deve ter visto é um flash terrível. Eles nunca pegaram o cara, mas acham que sabem quem é. Eu vi o desenho de seu rosto. O cara tem cabelos compridos, olhos profundos, barba e esse olhar bem calmo. Ele se parece com algumas das fotos de Jesus.

 

O destinatário relatou:

Se você prometer que não vai contar meu nome a ninguém, eu vou te dizer o que eu não disse a nenhum dos meus médicos. Só minha esposa [Casey] sabe. Eu só sabia que meu doador era um cara de 34 anos muito saudável. Algumas semanas depois que ganhei meu coração, comecei a ter sonhos. Eu via um flash de luz bem no meu rosto e meu rosto ficava muito, muito quente. Na verdade, queimava. Pouco antes desse tempo, eu teria um vislumbre de Jesus. Eu tive esses sonhos e agora devaneios desde então: Jesus e depois um flash. Essa é a única coisa que posso dizer, é algo diferente, além de me sentir muito bem pela primeira vez na minha vida.

 

A esposa do destinatário relatou:

Estou muito, muito feliz por você ter perguntado a ele sobre o transplante. Ele está mais incomodado do que vai falar sobre esses flashes. Ele diz que vê Jesus e, em seguida, um flash ofuscante. Ele contou aos médicos sobre os flashes, mas não sobre Jesus. Eles disseram que provavelmente é um efeito colateral dos medicamentos, mas Deus, nós desejamos que eles parassem[13].

 

Caso 5

A doadora era uma prostituta de 24 anos morta a facadas. A receptora era uma mulher de 35 anos.

 

O destinatário relatou:

Eu nunca fui muito interessada em sexo. Eu realmente nunca pensei muito sobre isso. Não me entenda mal, meu marido e eu tínhamos uma vida sexual, mas não era uma grande parte da nossa vida. Agora, canso meu marido. Quero sexo todas as noites e às vezes me masturbo de duas a três vezes por dia. Eu costumava odiar vídeos com classificação X, mas agora eu os amo. Eu me sinto uma prostituta às vezes e até faço um strip para meu marido quando estou com vontade. Eu nunca teria feito isso antes da minha cirurgia. Quando contei isso à minha psiquiatra, ela disse que era uma reação aos meus medicamentos e ao meu corpo mais saudável. Então descobri que minha doadora era uma jovem universitária que trabalhava como dançarina de topless e em um serviço de plantão. Acho que consegui o desejo sexual dela, e meu marido concorda. Ele diz que eu não sou a mulher com quem ele se casou, mas ele quer se casar comigo novamente.

 

O marido do destinatário relatou:

Não que eu esteja reclamando, veja bem, mas o que eu tenho agora é um gatinho sexual. Não é que façamos mais, mas ela quer falar mais sobre sexo e quer ver fitas de sexo explícito que eu nunca consegui convencê-la antes. Quando fazemos sexo, é diferente. Nem pior nem melhor, apenas diferente. Ela nunca falava muito durante o sexo, mas agora ela praticamente narra a coisa toda. Ela usa palavras que eu nunca a ouvi usar antes, mas isso meio que me excita, então quem está reclamando? Nosso pior argumento veio alguns meses depois do transplante e bem antes de ela saber quem era o doador. Eu estava brincando e em um momento de paixão disse que ela deve ter pegado o coração de uma prostituta. Nós não conversamos por semanas[14].

 

Caso 6

O doador era um garoto de 17 anos morto, atropelado por um motorista. O destinatário era um homem de 52 anos.

 

O destinatário relatou:

Eu adorava música clássica tranquila antes do meu novo coração. Agora, coloco fones de ouvido, ligo o estéreo e toco rock and roll alto. Eu amo minha esposa, mas continuo fantasiando sobre adolescentes. Minha filha diz que eu regredi desde meu novo coração e que ajo como um adolescente de dezesseis anos.

 

A filha do destinatário relatou:

É realmente embaraçoso às vezes. Quando meus amigos chegam, perguntam se meu pai está passando pela segunda infância. Ele é viciado em música alta e minha mãe diz que o garotinho nele está finalmente saindo[15].

 

Caso 7

O doador era um menino de 3 anos que caiu da janela de um apartamento. O destinatário era um menino de 5 anos.

 

O destinatário relatou:

Dei um nome ao menino. Ele é mais novo que eu e o chamo de Timmy. Ele é apenas um garotinho. Ele é um irmãozinho com cerca de metade da minha idade. Ele se machucou muito quando caiu. Ele gosta muito de Power Rangers, eu acho, assim como eu costumava gostar. No entanto, eu não gosto mais deles. Eu gosto de Tim Allen em 'Tool Time', então eu o chamei de Tim. Eu me pergunto para onde meu velho coração foi também. Eu meio que sinto falta. Estava quebrado, mas cuidou de mim por um tempo.

 

O pai do destinatário relatou:

Daryl nunca soube o nome de seu doador ou sua idade. Também não sabíamos, até recentemente. Acabamos de saber que o menino que morreu havia caído de uma janela. Nós nem sabíamos a idade dele até agora. Daryl estava certo. Provavelmente apenas um palpite de sorte ou algo assim, mas ele acertou. O que é assustador, porém, é que ele não apenas acertou a idade e alguma ideia de como morreu, como também acertou o nome. O nome do menino era Thomas, mas por algum motivo sua família imediata o chamava de 'Tim'.

 

A mãe do destinatário acrescentou:

Você vai contar a ele a verdadeira coisa da Twilight Zone? Timmy caiu tentando alcançar um brinquedo Power Ranger que havia caído no parapeito da janela. Daryl nem toca mais em seus Power Rangers[16].

 

Caso 8

Este caso vem de relatórios de tabloides e, neste caso, a identidade do receptor do órgão não foi ocultada[17].

William Sheridan, um gerente de catering aposentado de 60 e poucos anos, recebeu um transplante de coração no Hospital Mount Sinai, em Nova York. Enquanto ele estava no hospital, ele começou a arteterapia para aliviar o tédio (e presumivelmente a ansiedade) de esperar por um doador. Parecia claro que o Sr. Sheridan não tinha talento para desenhar. Evidentemente, suas 'habilidades de desenho estavam presas no nível do berçário. Seus bonecos de palito eram do tipo que você esperaria de uma criança'[18]. No entanto, após a cirurgia descobriu que podia produzir belos desenhos de animais selvagens e paisagens. Anos mais tarde, no entanto (quando conheceu a mãe do doador), ele soube que seu doador (um corretor de Wall Street de 24 anos que morreu em um acidente de carro) tinha sido um artista perspicaz - na verdade, demonstrando seu interesse pela arte começando com dois anos de idade.

O arteterapeuta de Sheridan insistiu que os esforços pré-operatórios de Sheridan não eram nem remotamente artísticos, e relatou: '...dias após seu transplante, ele começou a criar essa incrível e elaborada obra de arte... Foi realmente incrível como seu talento floresceu'[19].

 

Análise

É claro que o testemunho nesses casos é fascinante, e deve ficar claro que não podemos desconsiderá-lo simplesmente apelando para o que Braude[20] chamou de Suspeitos Usuais – ou seja, má observação, relato incorreto, memórias ocultas ou fraude. Talvez a estratégia explicativa mais comum desse tipo seja a chamada Teoria da Videira Hospitalar, segundo a qual os pacientes podem involuntariamente, e mesmo sob anestesia, receber informações que ouvem de enfermeiras ou cirurgiões.

Agora concedido, o destinatário no Caso 2 sabia que seu doador era do sexo feminino. Assim, pode-se interpretar com credibilidade o uso de uma bolsa pelo destinatário e seu novo interesse em fazer compras como uma espécie de role-playing devido à sugestão. Poderíamos afirmar que o conhecimento do sexo de seu doador desencadeou seu lado feminino, que até então estava em grande parte latente. No entanto, outras características do comportamento do destinatário parecem não apenas menos genericamente femininas, mas, na verdade, bastante específicas para o doador – por exemplo, seu interesse recém-descoberto por museus e paisagens.

Além disso, não podemos simplesmente supor que a equipe do hospital conheça esses fatos idiossincráticos sobre o doador. Da mesma forma, não está claro por que o conhecimento do sexo de seu doador levaria a um conhecimento mais específico e íntimo sobre a anatomia feminina demonstrado durante o ato sexual, muito menos o conhecimento demonstrado naqueles momentos, mas nunca antes. O Caso 1 oferece um exemplo igualmente (se não mais) mais marcante de comportamento específico do doador (o interesse repentino e intenso do receptor pela música clássica), porque esse novo interesse contrariava as expectativas e os estereótipos raciais do receptor.

Na mesma linha, a mudança na libido da receptora no Caso 5 pode ser atribuída plausivelmente à sua saúde e otimismo recém-descobertos. No entanto, esse tipo de interesse renovado pelo sexo poderia naturalmente ter assumido outras formas, menos claramente apropriadas ao caráter e estilo de vida da doadora. Poderíamos fazer uma observação semelhante sobre o destinatário do Caso 6 e seu súbito interesse por música rock alta e fantasias de adolescentes. Embora se possa razoavelmente esperar que o receptor desfrute de um renovado senso de energia e otimismo, isso poderia facilmente – e talvez de forma mais plausível – ter assumido formas menos apropriadas à idade e aos interesses do doador. Além disso, a súbita erupção de talento artístico de William Sheridan não pode ser explicada de maneira plausível em termos de mera recepção de informações.

Os apelos a psi entre os vivos também têm utilidade limitada, embora se possa argumentar que eles nos levam um pouco mais longe do que os apelos aos Suspeitos Habituais. Por exemplo, a influência telepática do receptor-PES ou da família do doador pode ajudar a explicar o comportamento específico do doador exibido no Caso 1, o comportamento semelhante ao Jerry do jovem Carter no Caso 3 e até mesmo as experiências no Caso 4 da luz ofuscante e da imagem de Jesus . E em todos os casos é fácil imaginar por que a família do doador e o receptor podem desejar profundamente indicações da persistência pós-morte do doador, e por que isso pode levar a intervenções psíquicas de vários tipos ocorrendo apenas entre os vivos. Mas, assim como a Teoria da Videira Hospitalar, essa estratégia explicativa tem dificuldade em acomodar as novas habilidades artísticas do Sr. Sheridan,

Mas talvez a principal questão diante de nós seja: quão bem os casos de transplantes suportam o que poderíamos chamar de hover hypothesis (hipótese de pairar): que a personalidade sobrevivente do doador (ou um fragmento dela) permanece próxima (em um sentido que precisa ser explicado) ao receptor do órgão (ou aos órgãos transplantados)? Alguns casos sugerem isso com bastante clareza e até se parecem um pouco com casos de possessão. Na verdade, a posse aparente pode ser um exemplo relativamente claro do tipo de explicar a questão. Se assim for, os casos de transplante seriam um subconjunto de casos de possessão: ou seja, aqueles casos de possessão em que os órgãos transplantados fornecem uma ligação motivadora clara entre possuidor e possuído. E se for esse o caso, então os casos de transplante podem não ser tão inéditos quanto parecem à primeira vista. Ainda seriam casos de um novo tipo, mas esse tipo não diferiria radicalmente de outras formas de possessão.

Os casos que mais fortemente favorecem a hover hypothesis podem ser aqueles em que os receptores de órgãos são crianças. Os sobreviventes podem argumentar que as crianças estarão particularmente abertas à influência pós-morte, presumivelmente porque não tiveram sua receptividade "educada" nelas. É claro que os defensores da agente-vivo-psi  poderiam fazer uma afirmação análoga - a saber, que as crianças são particularmente receptivas à PES antemortem porque não foram condicionadas a considerar a PES como impossível ou tabu. E, de fato, há alguma evidência de que as crianças obtêm notas mais baixas nos testes de PES à medida que envelhecem, passam pelo sistema educacional e presumivelmente aprendem que outros consideram as exibições de psi inaceitáveis ​​ou impossíveis[21].

É interessante, então, que o jovem receptor de órgãos no Caso 7 se refira ao seu doador no tempo presente. No entanto, dos casos apresentados acima, provavelmente o Caso 3 sugere mais claramente pairar ou posse. O jovem Carter atribuiu seu comportamento na igreja ao doador, Jerry. Ele disse que não foi ele (isto é, Carter) que correu para o pai de Jerry (que ele não conhecia), o abraçou e o chamou de 'papai'. Carter disse que Jerry fez isso e foi com ele. E Carter disse aos pais de Jerry para não chorarem porque Jerry disse que estava tudo bem. Na superfície, pelo menos, isso sugere uma interação entre duas mentes ou indivíduos distintos, Carter e Jerry. De fato, assemelha-se a uma forma de mediunidade em que o comunicador interage e às vezes controla o corpo do médium. Assim, pode haver alguma força na afirmação de que a descrição do jovem Carter é menos "poluída" conceitualmente do que as de outros destinatários, cujas expectativas do que é empiricamente possível são desfavoravelmente dispostas contra a opção de posse.

Outro caso da modesta coleção de Pearsall, Schwartz e Russek sugere um tipo semelhante de comunicação entre o receptor do órgão e a personalidade sobrevivente do doador. A doadora era uma menina de 3 anos que se afogou na piscina da casa do namorado da mãe. A mãe e o namorado haviam deixado a menina aos cuidados de uma babá adolescente. Aparentemente, os pais da menina passaram por um divórcio feio e, desde então, o pai nunca mais viu a filha. Jimmy, o destinatário, era um menino de 9 anos que alegou não saber quem era o doador. Ele relatou,

Eu converso com ela às vezes. Eu posso senti-la lá. Ela parece muito triste. Ela está com muito medo. Eu digo a ela que está tudo bem, mas ela está com muito medo. Ela diz que deseja que os pais não joguem fora seus filhos. Não sei por que ela diria isso[22].

A mãe de Jimmy acrescentou que, desde a operação, seu filho tinha "um medo mortal da água", embora já a adorasse antes.

Embora a hipótese de pairar pareça lidar com casos de transplante com bastante facilidade, uma característica marcante dos casos pode ser problemática: a saber, as alterações de personalidade aparentemente duradouras no receptor do órgão. Por exemplo, no Caso 1, o destinatário adquiriu o que parece ser um interesse novo e permanente pela música clássica, e no Caso 2, o destinatário começou a manifestar um interesse novo e aparentemente permanente pela arte e atitude em relação ao sexo. Se esses casos realmente formam um subconjunto de casos de possessão, presumivelmente teríamos que considerar a possessão como permanente, ou quase.

Agora talvez não haja nenhum problema com isso. Seria um problema apenas se supormos, aparentemente sem justificativa, que a posse (supondo que ocorra) só pode ser temporária ou esporádica. É claro que aqui (como em outros lugares) a evidência é ambígua. Mas é também uma fonte fértil de pistas para a construção de teorias. Assim, uma vez que decidimos considerar a possibilidade de posse, devemos tentar deixar os dados nos guiarem, e devemos tentar também não sermos limitados por quaisquer preconceitos que tivemos no início. Os casos de possessão ostensiva abrangem uma ampla gama, incluindo casos tradicionais de mediunidade, possessão de espíritos em contextos xamânicos, casos que se assemelham muito a casos de reencarnação e os casos de transplantes agora em consideração. Assim, neste estágio, a totalidade dos dados parece sugerir que a posse aparente – seja ela qual for – pode ocorrer em formas variadas, graus variados de completude e por períodos de tempo variados.

Podemos querer modificar essa postura mais tarde, depois de elaborar uma teoria detalhada e empiricamente adequada da existência pós-morte. Poderíamos então decidir taxonomizar os casos de possessão de modo a traçar uma linha nítida entre a possessão transitória ou temporária (como na mediunidade ou na possessão ritual xamânica) e suas formas aparentemente mais permanentes. Mas, pelo menos por enquanto, parece que todos esses casos compartilham uma característica crucial comum. A manifestação ostensiva de outro indivíduo, pós-morte, ocorre bem após o nascimento do sujeito, normalmente seguindo algum tipo de ritual, ou indução, ou outro evento (como um transplante de órgão) que fornece uma ocasião ou motivo para a posse aparente. Isso pode ser suficiente para distinguir esses casos de reencarnação ostensiva.

Talvez o principal problema com a evidência de casos de transplante seja que há muito pouco dele (ou seja, as fontes já mencionadas) e nenhuma evidência de que os pesquisadores estejam procurando ativamente mais. Mas à medida que esse corpo de evidências cresce (como presumivelmente crescerá espontaneamente), será interessante ver quais padrões emergem claramente e se jovens receptores como Carter continuam a sugerir a posse como uma explicação viável.

 

Literatura

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§  Braude, S.E. (2014). Crimes of Reason: On Mind, Nature & the Paranormal. Lanham, MD: Rowman & Littlefield.

§  Bunzel, B., Schmidl-Mohl, B., Grundböck, A., et al. (1992). "Does changing the heart mean changing personality? A retrospective inquiry on 47 heart transplant patients." Quality of Life Research, 1 (4): 251-256.

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§  Winkelman, M. (1980). "The Effects of Schooling and Formal Education upon Extrasensory Abilities." In W.G. Roll & J. Beloff (Eds.), Research in Parapsychology 1980 (pp. 26–29). Metuchen, NJ & London: Scarecrow Press.

§  Winkelman, M. (1981). "The Effects of Formal Education on Extrasensory Abilities: The Ozolco Study." Journal of Parapsychology, 45: 321–336.

 

Traduzido por Google Tradutor



[2] Silvia, 1997.

[3] Considere, por exemplo, como, após a descoberta em casos de hipnose de um segundo eu aparente ou dividido, casos anteriormente classificados como possessão demoníaca ostensiva foram posteriormente reconceituados como tipos de distúrbios dissociativos. Ver, por exemplo, Braude, 1995; Crabtree, 1985; Ellenberger, 1970.

[4] Bunzel, Schmidl-Mohl, Grundböck, & Wollenek, 1992; Pearsall, 1998; Pearsall, Schwartz e Russek, 1999.

[5] Braude, 2006, 2014; Bursen, 1978; Heil, 1978; Malcom, 1977.

[6] Society for Psychical Research em Londres.

[7] Bunzel et ai., 1992, p. 251.

[8] Pearsall, 1998, p. 86.

[9] Pearsall, 1998.

[10] Pearsall et ai., 1999, p. 68.

[11] Pearsall et ai., 1999, pp. 67-8.

[12] Pearsall et ai., 1999, p. 67.

[13] Pearsall et ai., 1999, pp. 70-71.

[14] Pearsall, 1998, p.89.

[15] Pearsall, 1998, pp. 89-90.

[16] Pearsall et ai., 1999, p. 70.

[17] “O transplante de arte”, 2006; Green, 2006.

[18] “O transplante de arte”, 2006.

[19] “O transplante de arte”, 2006.

 

[21] Ver, por exemplo, Winkelman, 1980, 1981.

[22] Pearsall et ai., 1999, p. 69.