terça-feira, 24 de agosto de 2021

SENTIDO ESPIRITUAL[1]

 

Allan Kardec

 

Uma segunda carta do doutor Gregóry contém o seguinte:

Numa comunicação, Erasto enunciou uma ideia que me surpreendeu e me fez refletir. O homem, diz ele, tem sete sentidos: os sentidos bem conhecidos da audição, do olfato, da visão, do gosto e do tato e, além destes, o sentido sonambúlico e o sentido mediúnico.

Acrescento a estas palavras que estes dois últimos não existem senão por exceção, bastante desenvolvidos nalgumas naturezas privilegiadas, caso existam em todo homem em estado rudimentar. Ora, há em mim uma convicção adquirida por mais de uma observação e por uma experiência bastante longa dos poderes homeopáticos: é que nossos medicamentos, bem escolhidos e tomados por longo tempo, podem desenvolver essas duas admiráveis faculdades.

Em nossa opinião seria erro considerar o sonambulismo e a mediunidade como o produto de dois sentidos diferentes, considerando-se que não passam de dois efeitos resultantes de uma mesma causa. Essa dupla faculdade é um dos atributos da alma e tem por órgão o perispírito, cuja irradiação transporta a percepção além dos limites da ação dos sentidos materiais. A bem dizer é o sexto sentido, que é designado sob o nome de sentido espiritual.

O sonambulismo e a mediunidade são duas variedades da atividade desse sentido que, como se sabe, apresentam inúmeros matizes e constituem aptidões especiais. Fora destas duas faculdades, mais notáveis porque mais aparentes, seria erro crer que o sentido espiritual não exista senão em estado rudimentar. Como os outros sentidos, é mais ou menos desenvolvido, ou mais ou menos sutil conforme os indivíduos, mas todo o mundo o possui, e não é o que presta menos serviços, pela natureza toda especial das percepções das quais é a fonte. Longe de ser a regra, sua atrofia é exceção, e pode ser considerada como uma enfermidade, assim como a ausência da vista ou da audição. É por este sentido que recebemos os eflúvios fluídicos dos Espíritos, que nos inspiramos, mal grado nosso, em seus pensamentos, que nos são dados os avisos íntimos da consciência, que temos o pressentimento e a intuição das coisas futuras ou ausentes, que se exercem a fascinação, a ação magnética inconsciente e involuntária, a penetração do pensamento, etc. Essas percepções são dadas ao homem pela Providência, assim como a visão, a audição, o olfato, o gosto e o tato, para a sua conservação; são fenômenos muito vulgares, que ele apenas os nota pelo hábito que tem de experimentá-los, e dos quais não se deu conta até hoje, devido sua ignorância das leis do princípio espiritual, da própria negação, em alguns, da existência desse princípio. Mas, quem quer que leve sua atenção sobre os efeitos que acabamos de citar, e sobre muitos outros da mesma natureza, reconhecerá quanto eles são frequentes e como são completamente independentes das sensações percebidas pelos órgãos do corpo.

A vista espiritual, vulgarmente chamada dupla vista ou segunda vista, é um fenômeno menos raro do que se pensa; muitas pessoas têm esta faculdade sem o suspeitar; apenas é mais ou menos acentuada, e é fácil certificar-se de que ela é estranha aos órgãos da visão, pois que se exerce sem o auxílio desses órgãos e até os cegos a possuem. Existe em certas pessoas no mais perfeito estado normal, sem o menor traço aparente de sono nem de estado estático. Conhecemos em Paris uma senhora na qual ela é permanente, e tão natural quanto a vista ordinária; ela vê sem esforço e sem concentração o caráter, os hábitos, os antecedentes de quem quer que dela se aproxime; descreve as doenças e prescreve tratamentos eficazes com mais facilidade que muitos sonâmbulos ordinários; basta pensar numa pessoa ausente para que a veja e a designe. Um dia estávamos em sua casa e vimos passar na rua alguém com quem temos relações, e que ela jamais tinha visto.

Sem ser provocada por qualquer pergunta, fez-lhe o mais exato retrato moral e nos deu a seu respeito conselhos muito sensatos.

E, contudo, essa senhora não é sonâmbula. Fala do que vê, como falaria de qualquer outra coisa, sem se desviar de suas ocupações. É médium? Ela mesma não sabe, porque até pouco tempo atrás nem mesmo conhecia de nome o Espiritismo. Assim, nela essa faculdade é tão natural e tão espontânea quanto possível.

Como ela percebe, senão pelo sentido espiritual?

Devemos acrescentar que essa senhora tem fé nos sinais da mão, examinando-a quando a interrogam e dizendo aí ver o indício das doenças. Como vê certo e é evidente que muitas das coisas que diz não podem ter nenhuma relação fisiológica com a mão, estamos persuadidos de que para ela é simplesmente um meio de se pôr em relação e desenvolver sua vista, fixando-a num ponto determinado; a mão faz o papel de espelho mágico ou psíquico; ela aí vê como outros veem num vaso, numa garrafa ou noutro objeto.

Sua faculdade tem muita relação com a do Vidente da floresta de Zimmerwald, mas lhe é superior em certos aspectos. Aliás, como não tira disto nenhum proveito, esta consideração afasta toda suspeita de charlatanismo e, considerando-se que dela só se serve para prestar serviço, deve ser assistida por Espíritos bons. (Vide a Revista de outubro de 1864: O sexto sentido e a visão espiritual; outubro de 1865: Novos estudos sobre os espelhos psíquicos. O vidente da floresta de Zimmerwald).



[1] Revista Espírita – Junho/1867 – Allan Kardec

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