Rebecca Kesby - BBC World Service - 17 dezembro 2019
Na década de 1920, uma
misteriosa epidemia matou cerca de um milhão de pessoas e deixou quase quatro
milhões no que parecia ser um estado catatônico por décadas, incapazes de falar
ou de se mover de forma independente.
Eram como estátuas vivas.
Os pacientes permaneceram assim
por décadas, até que, no fim dos anos 1960, um experimento médico "os
despertou".
Conhecido como "Tempo de
Despertar", esse experimento mudou nossa compreensão sobre as
condições neurológicas e revolucionou o atendimento a pacientes.
Adormecidos
Logo após a Primeira Guerra
Mundial, em 1917, e até por volta de 1927, a misteriosa epidemia se espalhou
pelo mundo.
Sua origem era um mistério, mas
se sabia que era uma doença que atacava o cérebro, deixando suas vítimas sem
fala e movimentos voluntários.
Na Suíça, uma noiva adormeceu no altar; na França, nem as dores do
parto despertaram uma mãe, informava a BBC, em seus primeiros anos de
transmissão.
O conjunto de sintomas já havia
sido descrito várias vezes no passado, inclusive por Hipócrates, o grande
médico da Grécia Antiga, que batizou o fenômeno de lethargus:
Febre, tremor, forte
fraqueza física com a preservação da inteligência, que afeta indivíduos com
mais de 25 anos, sobretudo quando está frio, e que pode levar à morte por
pneumonia terminal.
No início do século 1920, quando
a neurologia dava os primeiros passos como disciplina científica, a condição
foi chamada de encefalite letárgica
ou "doença do sono", e
quem escreveu o manuscrito mais preciso sobre ela foi o austríaco Constantin
von Economo.
... desde o Natal, tivemos a oportunidade de observar uma série de
casos na clínica psiquiátrica que não atendem aos critérios de nossos
diagnósticos habituais. Apesar disso, mostram semelhança na forma como
começaram e na sintomatologia, o que nos obriga a agrupá-los em uma única
entidade clínica", escreveu o médico.
Aqueles que sobreviveram foram
"congelados" no tempo, presos em corpos quase sem vida por anos.
'Tem alguém vivo lá
dentro?'
Em 1966, Oliver Sacks, um jovem neurologista
britânico, chegou ao Hospital Beth Abraham, no Bronx, em Nova York, onde havia
dezenas de pacientes com encefalite letárgica.
Eu nunca tinha visto nada assim: tantos pacientes como aqueles imóveis,
às vezes pareciam estar congelados em posições inusitadas, e você se
perguntava: o que está acontecendo? Tem alguém vivo lá dentro?", disse
Sacks à BBC nos anos 1970.
Sacks começou a observar seus
novos pacientes e percebeu que havia sinais de consciência... principalmente
quando um assistente do hospital tocava piano para os residentes.
O que ele viu é que, quando tocava uma música, algumas pessoas se
levantavam e dançavam. Havia algo na música que penetrava e estimulava o
sistema motor delas a ponto de entrarem em ação... Era incrível: não conseguia
entender como era possível, lembra a médica Concetta Tomaino, diretora e
cofundadora do Instituto de Música e Função Neurológica de Nova York.
Uma solução musical
Na década de 1970, Tomaino tinha
acabado de começar sua carreira em musicoterapia, que na época era uma área de
pesquisa nova.
Oliver Sacks me
escreveu um bilhete que dizia: “Toda doença é um problema musical, toda cura,
uma solução musical”.
Despertou minha
curiosidade e perguntei quem ele era. As pessoas diziam: “É um louco britânico
excêntrico que escreve os atestados médicos mais surpreendentes; você precisa
conhecê-lo”.
Connie Tomaino e Oliver Sacks
iniciaram assim uma parceria de trabalho pioneira nos estudos de musicoterapia
e nos efeitos neurológicos da música.
Os pacientes
pareciam catatônicos, parecia que estavam em estado semivegetativo, mas quando
havia música por perto, você via que eles estavam mentalmente presentes: eles
conseguiam tocar tambor com ritmo e cantar, mesmo sem ser capaz de falar.
Um milagre
Antes de Connie Tomaino chegar
ao hospital Beth Abraham, Oliver Sacks havia começado a testar um novo
medicamento que é usado para tratar pessoas com doença de Parkinson.
Ele pensava que a "doença
do sono" poderia ser uma forma extrema de Parkinson. E deu a medicação, levodopa, aos pacientes — os efeitos
foram, em alguns casos, imediatos e dramáticos.
Lola havia passado décadas em estado catatônico e seu despertar ocorreu
em segundos. Ela pulou da cadeira e começou a falar. Foi uma cena incrível, e
eu duvidaria da minha própria memória, se não fosse respaldada por todas as
outras pessoas que também se lembram, recordou Sacks.
Parecia um milagre. Os pacientes
de Sacks podiam conversar, caminhar e sentir alegria novamente.
O clima no pavilhão do hospital era de carnaval, era de festa. Era um
sentimento de euforia: as pessoas se apaixonavam, queriam sair e fazer coisas,
explorar o mundo. Havia realmente um sentimento de magia e milagre... e
provavelmente uma expectativa um tanto alarmante, afirmou o neurologista.
Muitos haviam contraído a doença
do sono na infância e despertaram como adultos de meia-idade em um mundo
completamente diferente.
Quando conseguiram entender quanto tempo havia se passado, ficaram com
medo e estupefatos. Alguns ficaram amargurados por terem perdido tanto tempo, mas
a maioria queria viver cada segundo que tinha, disse Tomaino à BBC.
Às vezes, isso era um desafio para a equipe do hospital, completou
rindo.
Sacks, por sua vez, se sentia muito responsável por eles e, às vezes,
se perguntava se havia feito a coisa certa, porque quem eram eles agora que
estavam acordados? Acrescentou a terapeuta.
Fim da magia
A euforia durou pouco. O
levodopa começou a perder efeito. E, depois de algumas semanas, em alguns
casos, a medicação parou de funcionar, o que levou à piora de saúde dos
pacientes.
Alguns mantiveram mais funções
que outros, mas nenhum se recuperou completamente novamente.
Durante aquele breve período de
despertar, Sacks encorajou os pacientes a descrever como tinha sido viver
imóvel em um limbo; os relatos foram valiosos para se entender mais tarde
muitas condições neurológicas.
Tomaino foi uma das pessoas que
leram os diários escritos pelos pacientes.
Eles descreveram
como os cuidados eram horríveis quando estavam incapacitados, e isso me ajudou
a mudar a maneira como os tratávamos.
E a música permaneceu sendo uma
solução.
Lembro-me de uma
paciente, Lola, que adorava cantar e dançar. Mas quando ela piorou, não tinha
controle da língua ou das mãos. No entanto, quando tocava tambor, conseguia
acompanhar o ritmo com a voz, ela fazia isso tão bem que desfrutava e acabava
sempre caindo na gargalhada.
Lilian era um pouco
mais autista e gostava do aspecto mais intelectual da música. Ela amava
Rachmaninoff e, quando escutava, movia os dedos como se estivesse tocando
piano.
O que Concetta Tomaino e Oliver
Sacks estavam descobrindo por meio de pesquisas e observações práticas era
inovador, mas naquela época alguns cientistas tratavam com ceticismo.
Na década de 1980, os neurologistas não acreditavam que alguém pudesse
se recuperar de uma lesão cerebral, e ainda assim podíamos ver as mudanças
diante de nossos olhos, diz.
Pesquisas subsequentes mostraram
que a musicoterapia pode melhorar e até ajudar a reparar lesões cerebrais.
A música é tão
complexa — tom, ritmo, padrões complexos de sons que ocorrem simultaneamente —,
que se você vê o cérebro quando está ouvindo uma melodia, muitas de suas redes
são ativadas e compartilhadas por outras formas de funções cognitivas.
Essa é a beleza da música: permite que algumas funções da área onde
ocorreu a lesão retornem, explica Tomaino.
Oliver Sacks, falecido em 2015,
publicou vários livros, incluindo um chamado “Tempo de Despertar”, que deu
origem ao filme homônimo, protagonizado por Robert De Niro e Robin Williams.
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