terça-feira, 6 de abril de 2021

O SEXTO SENTIDO E A VISÃO ESPIRITUAL[1]

 

Ensaio Teórico sobre os Espelhos Mágicos

Allan Kardec

 

Dá-se o nome de espelhos mágicos a objetos, geralmente de reflexos brilhantes, tais como gelo, placas metálicas, garrafas, vidros etc., nos quais certas pessoas veem imagens que lhes projetam acontecimentos afastados, passados, presentes e, por vezes, futuros, e as põem em condição de responder às perguntas que lhes são dirigidas. O fenômeno não é excessivamente raro. Os espíritos fortes os tacham de crença supersticiosa, efeito da imaginação, charlatanismo, como tudo o que não podem explicar pelas leis naturais conhecidas; o mesmo se dá com todos os efeitos sonambúlicos e mediúnicos. Mas se o fato existe, sua opinião não poderia prevalecer contra a realidade, e se é mesmo forçado a admitir a existência de uma nova lei, ainda não observada.

Até agora não nos estendemos sobre este assunto, a despeito dos numerosos fatos que nos eram relatados, porque temos por princípio não afirmar senão o que podemos dar conta, já que é nosso hábito, tanto quanto possível, dizer o como e o porquê das coisas, isto é, juntar ao relato uma explicação racional.

Mencionamos o fato com o testemunho de pessoas sérias e respeitáveis; mas, admitindo a possibilidade do fenômeno e, mesmo, a sua realidade, ainda não tínhamos visto com suficiente clareza a que lei podia ligar-se para ficar em condições de dar-lhe uma solução. Daí por que nos abstivemos. Além disso, os relatos que tínhamos à vista podiam estar carregados de exagero; faltavam, sobretudo, certos detalhes de observação, os únicos que podem ajudar a fixar as ideias. Agora que vimos, observamos e estudamos, podemos falar com conhecimento de causa.

Inicialmente vamos relatar, de modo sumário, os fatos que testemunhamos. Não pretendemos convencer os incrédulos; queremos apenas tentar esclarecer um ponto ainda obscuro da ciência espírita.

Durante a excursão espírita que fizemos este ano, tendo ido passar alguns dias na casa do Sr. de W..., membro da Sociedade Espírita de Paris, no cantão de Berna, na Suíça, este último nos falou de um camponês das cercanias, torneiro de profissão, que goza da faculdade de descobrir fontes e de ver num copo as respostas às perguntas que lhe fazem. Para a descoberta das fontes, algumas vezes ele se transporta aos lugares, servindo-se da varinha usada em semelhantes casos; outras vezes, sem se deslocar, serve-se de seu copo e dá as indicações necessárias. Eis um notável exemplo de sua lucidez: na propriedade do Sr. de W... havia um conduto de águas muito extenso; mas, em razão de certas causas locais, acharam melhor que a captação da água fosse mais próxima. A fim de poupar, na medida do possível, escavações inúteis, o Sr. de W... recorreu ao descobridor de fontes. Este, sem deixar o seu quarto, lhe disse, olhando o seu copo: “No percurso dos tubos existe uma outra fonte; está a tantos pés de profundidade, abaixo do décimo quarto tubo, a partir de tal ponto”. A coisa foi encontrada tal qual ele o havia indicado. A ocasião era muito favorável para ser aproveitada, no interesse de nossa instrução. Então fomos à casa desse homem, com o Sr. e a Sra. de W... e duas outras pessoas.

Algumas informações por ele dadas não deixam de ser úteis.

Trata-se de um homem de sessenta e quatro anos, bem alto, magro, de boa saúde, embora aleijado e andando com dificuldade. É protestante, muito religioso e faz suas leituras habituais da Bíblia e de livros de preces. Sua enfermidade, consequente a uma doença, data da idade de trinta anos. Foi nessa época que a faculdade se lhe revelou. Diz que foi Deus que lhe quis dar uma compensação. Sua fisionomia é expressiva e alegre, o olhar vivo, inteligente e penetrante. Só fala o dialeto alemão da região e não entende uma palavra de francês. É casado e pai de família; vive do produto de alguns pedaços de terra e de seu trabalho pessoal, de modo que, sem estar folgado, não passa por necessidades.

Quando pessoas desconhecidas se apresentam em sua casa para consultá-lo, seu primeiro movimento é de desconfiança; perscruta de certo modo as suas intenções e, por pouco favorável que seja essa impressão, responde que só se ocupa de fontes e recusa qualquer experiência com o copo. Nega-se, sobretudo, a responder a perguntas que tenham por objetivo a cupidez, tais a busca de tesouros, as especulações arriscadas, ou a realização de algum propósito mau; numa palavra, a todas as que possam chocar a lealdade e a delicadeza. Diz que Deus lhe retiraria a faculdade, caso se ocupasse dessas coisas. Quando alguém lhe é apresentado por pessoas de conhecimento, ou desperte a sua simpatia, logo sua fisionomia se torna aberta e benevolente. Se o motivo pelo qual se o interroga for sério e útil, ele se interessa e condescende nas buscas; mas se as perguntas forem fúteis e de mera curiosidade, ou se a ele se dirigem como a um ledor de buena-dicha, não responde.

Graças à presença e à recomendação do Sr. de W... tivemos a felicidade de ser bem recebido por ele, não tendo senão que demonstrar satisfação pela sua cordial acolhida e boa vontade.

Esse homem revela a mais completa ignorância no que concerne ao Espiritismo; não tem a menor ideia dos médiuns, nem das evocações, das intervenções dos Espíritos ou da ação fluídica.

Para ele, sua faculdade está nos nervos, numa força que não sabe explicar, nem jamais buscou compreender, porque, quando lhe pedimos que dissesse de que maneira via em seu copo, pareceu-nos que era a primeira vez que sua atenção era despertada para tal ponto. Isto, para nós, era coisa essencial; não foi senão depois de algumas perguntas sucessivas que chegamos a compreender ou, melhor, a destrinçar o seu pensamento.

Seu copo é um copo comum para água, vazio, mas é sempre o mesmo; só tem essa serventia e não deveria utilizar outro.

Na previsão de um acidente, foi-lhe indicado onde podia encontrar outro copo para substituí-lo. Havendo conseguido um, guarda-o de reserva. Quando o interroga, segura-o na palma da mão e olha no seu interior; se o copo for colocado na mesa, nada vê. Quando fixa o olhar no fundo, parece que os olhos se velam por um instante, mas logo retomam seu brilho habitual; então, olhando alternativamente para o copo e para os interlocutores, fala como de costume, dizendo o que vê, respondendo às perguntas de maneira simples, natural e sem ênfase. Em suas experiências não faz invocação, não emprega sinais cabalísticos nem pronuncia fórmulas ou palavras sacramentais. Quando lhe fazem uma pergunta, ele concentra a atenção e a vontade no assunto proposto, olhando no fundo do copo, onde se formam instantaneamente as imagens das pessoas e das coisas relativas ao tema de que se ocupa. Quanto às pessoas, descreve-as do ponto de vista físico e moral, como o faria um sonâmbulo lúcido, de maneira a não deixar nenhuma dúvida quanto à sua identidade. Também descreve, com maior ou menor precisão, lugares que não conhece, destruindo, assim, a ideia de que aquilo que vê seja produto da sua imaginação. Quando disse ao Sr. de W... que a fonte estava a tantos pés abaixo do décimo quarto tubo, por certo não podia tomá-lo do seu próprio cérebro. Para se tornar mais inteligível, ele se serve, em caso de necessidade, de um pedaço de giz, com o qual traça, na mesa, pontos, círculos, linhas de vários tamanhos, indicando as pessoas e os lugares de que fala, sua posição relativa etc., de modo a não ter senão que as mostrar quando volta a elas, dizendo: É este que faz tal coisa, ou é em tal ponto que tal coisa se passa.

Certo dia uma senhora o interrogava quanto à sorte de uma mocinha, raptada por ciganos há mais de quinze anos, sem que, desde então, jamais tivessem tido notícias suas. Partindo, à maneira dos sonâmbulos, do local onde a coisa se dera, seguia os traços da menina que, dizia, via no copo, e que, segundo ele, tinha seguido pelas bordas de uma grande água, isto é, o mar. Afirmou que vivia e descreveu sua situação, sem, contudo, ser capaz de precisar o local de sua residência, pois ainda não havia chegado o momento de ser devolvida à sua mãe; que, antes, seria preciso se realizassem certas coisas que especificou, e que uma circunstância fortuita levasse a mãe a reconhecer a filha. A fim de melhor precisar a direção a seguir para encontrá-la, pediu que de outra vez lhe trouxessem uma carta geográfica. O mapa lhe foi mostrado em nossa presença, no dia de nossa visita; mas, porque não tivesse nenhuma noção de geografia, foi preciso explicar-lhe o que representava o mar, os rios, as cidades, as estradas e as montanhas.

Então, pondo o dedo sobre o ponto de partida, indicou o caminho que levava ao lugar em questão. Embora houvesse decorrido algum tempo desde a primeira consulta, recordou-se perfeitamente de tudo quanto havia dito e foi o primeiro a falar da mocinha, antes mesmo que o interrogassem.

Como a questão ainda não fora esclarecida, nada podemos prejulgar quanto ao resultado de suas previsões. Diremos apenas que, em relação às circunstâncias passadas e conhecidas, ele tinha visto com total precisão. Citamos o caso apenas como exemplo de sua maneira de ver.

Pelo que nos respeita pessoalmente, também pudemos constatar a sua lucidez. Sem pergunta prévia e, mesmo, sem que pensássemos no caso, ele nos falou espontaneamente de uma afecção que nos faz sofrer há algum tempo, cujo termo fixou. E, coisa notável, esse termo é o mesmo indicado pela sonâmbula, Sra. Roger, que tínhamos consultado sobre o assunto, seis meses antes.

Ele não nos conhecia nem de vista, nem de nome; e embora lhe fosse difícil compreender a natureza dos nossos trabalhos, em razão de sua ignorância, indicou claramente, por meio de circunlóquios, imagens e expressões à sua maneira, o seu objetivo, as suas tendências e os resultados inevitáveis. Sobretudo este último ponto parecia interessá-lo vivamente, pois repetia sem cessar que a coisa deveria realizar-se, que a ela estávamos destinados desde o nascimento, e que nada se lhe poderia opor. Por si mesmo falou da pessoa chamada a continuar a obra depois da nossa morte, dos obstáculos que certos indivíduos procuravam lançar em nosso caminho, das rivalidades ciumentas e das ambições pessoais; designou de maneira inequívoca os que podiam utilmente nos secundar e aqueles dos quais devíamos desconfiar, voltando sempre sobre uns e outros com certa obstinação; por fim entrou em detalhes circunstanciados de perfeita justeza, tanto mais notáveis quanto a maioria deles não eram provocados por nenhuma pergunta, coincidindo, em todos os pontos, com as revelações muitas vezes feitas por nossos guias espirituais, para o nosso governo.

Esse gênero de pesquisas escapava totalmente dos hábitos e dos conhecimentos desse homem, como ele próprio o dizia. Várias vezes repetiu: “Digo aqui muitas coisas que não diria a outros, porque não compreenderiam; mas ele (designando-nos) me compreende perfeitamente”. Com efeito, havia coisas intencionalmente ditas em meias palavras, só inteligíveis para nós.

Vimos no fato uma marca especial da benevolência dos Espíritos bons que, por esse meio novo e inesperado, quiseram confirmar as instruções que nos haviam dado em outras circunstâncias e, ao mesmo tempo, oferecer-nos um assunto de observação e de estudo.

Para nós, está comprovado que este homem é dotado de uma faculdade especial e que, realmente, ele vê. Vê sempre certo? Esta não é a questão; basta que tenha visto muitas vezes para constatar a existência do fenômeno. A infalibilidade não é dada a ninguém na Terra, já que aqui ninguém goza da perfeição absoluta.

Como vê ele? Eis o ponto essencial, que só pode ser deduzido pela observação.

Em consequência de sua falta de instrução e dos preconceitos do meio em que sempre viveu, está imbuído de certas ideias supersticiosas, que mistura com os seus relatos. É assim, por exemplo, que acredita na influência dos planetas sobre o destino das criaturas e na dos dias felizes e infelizes. Conforme o que tinha visto de nós, deveríamos ter nascido não sabemos sob que signo; deveríamos abster-nos de empreender coisas importantes em certo dia da Lua. Não tentamos dissuadi-lo, o que certamente não conseguiríamos e só teria servido para perturbá-lo. Mas o fato de ele ter algumas ideias falsas não constitui motivo para negar a faculdade que possui, como a presença do joio num monte de trigo não significa ausência de grãos de boa qualidade. Do mesmo modo, porque nem sempre um homem vê certo, não se segue absolutamente que não veja.

Quando mais ou menos se deu conta do fim e dos resultados de nossos trabalhos, perguntou muito seriamente e com certa ansiedade ao ouvido do Sr. de W... se por acaso teríamos encontrado o sexto livro de Moisés. Ora, segundo uma tradição popular em algumas localidades, Moisés teria escrito um sexto livro, contendo novas revelações e a explicação de tudo o que há de obscuro nos cinco primeiros. Conforme a mesma tradição, o livro será descoberto um dia. Se alguma coisa pode dar a chave de todas as alegorias das Escrituras, é, seguramente, o Espiritismo, que, assim, realizaria a ideia vinculada ao pretenso sexto livro de Moisés.

É muito singular que esse homem haja concebido tal ideia.

Um exame atento dos fatos acima demonstra completa analogia entre esta faculdade e o fenômeno designado sob o nome de segunda vista, dupla vista ou sonambulismo desperto, e que é descrito em O Livro dos Espíritos, cap. VIII: Emancipação da alma, e em O Livro dos Médiuns, cap. XIV. Ela tem, pois, o seu princípio na propriedade irradiante do fluido perispiritual que, em certos casos, permite à alma perceber coisas a distância, ou seja, a emancipação da alma, que é uma lei da Natureza. Não são os olhos que veem; é a alma que, por seus raios, atingindo um ponto dado, exerce sua ação exteriormente e sem o concurso dos órgãos corporais. Esta faculdade é muito mais comum do que se pensa e se apresenta com graus de intensidade e de aspectos muito diversos, conforme os indivíduos: nuns ela se manifesta pela percepção permanente ou acidental, mais ou menos clara, das coisas afastadas; noutros, pela simples intuição dessas mesmas coisas; em outros, enfim, pela transmissão do pensamento. É de notar que muitos a possuem sem o suspeitar e, sobretudo, sem se darem conta; ela é inerente ao seu ser, e lhes parece tão natural como a faculdade de ver pelos olhos; muitas vezes, mesmo, confundem as duas percepções. Se se lhes perguntar como veem, na maioria das vezes não sabem explicar melhor do que explicariam o mecanismo da visão ordinária.

O número de pessoas que gozam espontaneamente dessa faculdade é muito considerável, de modo que ela independe de um aparelho qualquer. O copo de que esse homem se serve é um acessório que só lhe é útil por hábito, pois constatamos que em várias circunstâncias ele descrevia as coisas sem o olhar. Pelo que nos concerne, notadamente falando de indivíduos, ele os indicava com o giz, por sinais característicos de suas qualidades e de sua posição. Era, sobretudo, sobre esses sinais que ele falava, olhando a mesa, sobre a qual parecia ver tão bem quanto no copo, que apenas olhava; mas, para ele, o copo é necessário, e eis como o podemos explicar: a imagem que ele observa forma-se nos raios do fluido perispiritual, que lhe transmitem a sua sensação; concentrando-se sua atenção no fundo do copo, para aí dirige os raios fluídicos e, muito naturalmente, a imagem aí se concentra, como se se concentrasse sobre um objeto qualquer: num copo de água, numa garrafa, numa folha de papel, num mapa ou num ponto vago do espaço. É um meio de fixar o pensamento e o circunscrever, e estamos convencidos de que quem quer que exerça tal faculdade com o auxílio de um objeto material verá igualmente bem com um pouco de exercício e com a firme vontade de o dispensar.

Contudo, admitindo-se, o que ainda não está provado, que o objeto possa agir sobre certas organizações, à maneira dos excitantes, de modo a provocar o desprendimento fluídico e, em consequência, o isolamento do Espírito, há um fato capital, adquirido pela experiência: é que não existe nenhuma substância especial que, a tal respeito, desfrute de uma propriedade exclusiva.

O homem em questão só vê num copo vazio, seguro na palma da mão; não pode ver noutro copo e nem mesmo em seu próprio copo, desde que colocado de outro modo. Se a propriedade fosse inerente à substância e à forma do objeto, por que dois objetos, da mesma natureza e da mesma forma, não a possuiriam para o mesmo indivíduo? Por que o que tem efeito sobre um não o teria sobre outro? Por que, enfim, tantas pessoas possuem essa faculdade sem o concurso de nenhum aparelho? É, como dissemos, porque a faculdade é inerente ao indivíduo, e não ao copo. A imagem forma-se nele mesmo, ou, melhor, nos raios fluídicos que dele emanam. A bem dizer, o copo não oferece senão o reflexo dessa imagem: é um efeito, e não uma causa. Tal a razão por que nem todos veem no que se convencionou chamar espelhos mágicos.

Para isto não basta a visão corporal; é necessário ser dotado da faculdade chamada dupla vista, que seria designada, mais apropriadamente, visão espiritual. E isto é tão verdadeiro que certas pessoas veem perfeitamente com os olhos fechados.

A visão espiritual é, na realidade, o sexto sentido ou sentido espiritual, de que tanto se falou e que, como os demais sentidos, pode ser mais ou menos obtuso ou sutil. Ele tem como agente o fluido perispiritual, como a visão corporal tem por agente o fluido luminoso. Assim como a irradiação do fluido luminoso leva a imagem dos objetos à retina, a irradiação do fluido perispiritual leva à alma certas imagens e certas impressões. Esse fluido, como todos os outros, tem seus efeitos próprios, suas propriedades sui generis.

Sendo o homem composto de Espírito, perispírito e corpo, durante a vida as percepções e sensações se produzem, ao mesmo tempo, pelos sentidos orgânicos e pelo sentido espiritual; depois da morte os sentidos orgânicos são destruídos, mas, restando o perispírito, o Espírito continua a perceber pelo sentido espiritual, cuja sutileza aumenta em razão do desprendimento da matéria. O homem em que tal sentido é desenvolvido, goza, assim, por antecipação, de uma parte das sensações do Espírito livre.

Embora amortecido pela predominância da matéria, nem por isto o sentido espiritual deixa de produzir sobre todos os homens uma multidão de efeitos reputados maravilhosos, por falta de conhecimento do princípio.

Estando na Natureza, já que se prende à constituição do Espírito, essa faculdade existiu em todos os tempos; mas, como todos os efeitos cuja causa é desconhecida, a ignorância a atribuía a causas sobrenaturais. Os que a possuíam em grau eminente podiam dizer, saber e fazer coisas acima do alcance vulgar; dentre estes, uns eram acusados de pactuar com o diabo; qualificados de feiticeiros, eram queimados vivos, enquanto outros foram beatificados, como tendo o dom dos milagres, quando, na realidade, tudo se reduzia à aplicação de uma lei natural.

Voltemos aos espelhos mágicos. A palavra magia, que outrora significava ciência dos sábios, perdeu sua significação primitiva devido ao abuso que dela fizeram a superstição e o charlatanismo. Está hoje desacreditada com razão e cremos difícil reabilitá-la, por achar-se, desde então, ligada à ideia das operações cabalísticas, dos formulários de feiticeiros, dos talismãs e de uma imensidão de práticas supersticiosas, condenadas pela sã razão.

Declinando de toda solidariedade com essas pretensas ciências, o Espiritismo deve evitar apropriar-se de termos que possam falsear a opinião no que lhe diz respeito. No caso de que se trata, a qualificação de mágico é tão imprópria quanto a de feiticeiros, atribuída aos médiuns. A designação desses objetos sob o nome de espelhos espirituais parece-nos mais exata, porque lembra o princípio em virtude do qual se produzem os efeitos. À nomenclatura espírita podemos, pois, juntar os nomes de visão espiritual, sentido espiritual e espelhos espirituais.

Posto que a natureza, a forma e a substância desses objetos são coisas indiferentes, compreende-se que indivíduos dotados da visão espiritual vejam na borra de café, na clara dos ovos, na palma das mãos e nas cartas o que outros veem num copo de água, dizendo, por vezes, coisas certas. Esses objetos e suas combinações não têm qualquer significado; são apenas um meio de fixar a atenção, um pretexto para falar, a bem dizer um suporte, pois é de notar que, no caso, o indivíduo apenas os olha, apesar de julgar faltar-lhe algo, se não os tiver à frente; ficaria desorientado, como ficaria o nosso homem, caso não tivesse o seu copo na mão; teria dificuldade para falar, como certos oradores que nada sabem dizer se não estiverem em seu lugar habitual, ou se não tiverem na mão um caderno, embora não o leiam.

Mas se há algumas pessoas sobre as quais esses objetos produzem o efeito de espelhos espirituais, há também muita gente que, não tendo outra faculdade senão a de ver pelos olhos, e possuir a linguagem convencional afetada a esses sinais, iludem os outros ou a si mesmos; depois a igualmente numerosa multidão dos charlatães, que exploram a credulidade. Só a superstição pôde consagrar o uso de tais processos, como meio de adivinhação e de uma porção de outros, que não têm mais valor, atribuindo uma virtude a palavras, uma significação a sinais materiais, a combinações fortuitas, sem qualquer ligação necessária com o objeto da pergunta ou do pensamento.

Dizendo que com a ajuda de tais processos certas pessoas podem, às vezes, dizer verdades, não é nosso propósito reabilitá-las na opinião pública, mas mostrar que as ideias supersticiosas por vezes têm sua origem num princípio verdadeiro, desnaturado pelo abuso e pela ignorância. O Espiritismo, ao tornar conhecida a lei que rege as relações entre o mundo visível e o mundo invisível, destrói, por isso mesmo, as ideias falsas que se tinham feito sobre tais relações, como a lei da eletricidade destruiu, não o raio, mas as superstições engendradas pela ignorância das verdadeiras causas do raio.

Em síntese, a visão espiritual é um dos atributos do Espírito e constitui uma das percepções do sentido espiritual; por conseguinte, é uma lei da Natureza.

Sendo o homem um Espírito encarnado, possui os atributos do Espírito e, portanto, as percepções do sentido espiritual.

Em estado de vigília essas percepções geralmente são vagas, difusas e, por vezes, até insensíveis e inapreciáveis, porque amortecidas pela atividade preponderante dos sentidos materiais.

Todavia, pode dizer-se que toda percepção extracorpórea é devida à ação do sentido espiritual que, no caso, supera a resistência da matéria.

Em estado de sonambulismo natural ou magnético, de hipnotismo, de catalepsia, de letargia, de êxtase e, mesmo, no sono ordinário, estando os sentidos corporais momentaneamente adormecidos, o sentido espiritual se desenvolve com mais liberdade.

Toda causa exterior tendente a entorpecer os sentidos corporais provoca, por isto mesmo, a expansão e a atividade do sentido espiritual.

As percepções pelo sentido espiritual não estão isentas de erro, desde que o Espírito encarnado pode ser mais ou menos adiantado e, consequentemente, mais ou menos apto a julgar as coisas sensatamente e compreendê-las, e porque ainda sofre a influência da matéria.

Uma comparação fará melhor compreender o que se passa nesta circunstância. Na Terra, aquele que tem melhor visão pode ser enganado pelas aparências. Por muito tempo o homem acreditou no movimento do Sol. Necessitava da experiência e das luzes da Ciência para mostrar-lhe que era joguete de uma ilusão.

Assim, há Espíritos pouco adiantados, encarnados ou desencarnados, que ignoram muitas coisas do mundo invisível, como sucede, aliás, com certos homens inteligentes, que ignoram muitas coisas da Terra; a visão espiritual só lhes mostra o que sabem e não basta para lhes dar os conhecimentos que lhes faltam; daí as aberrações e as excentricidades que se nota com tanta frequência nos videntes e nos extáticos, sem contar que sua ignorância os põe, mais que outros, à mercê dos Espíritos enganadores, que lhes exploram a credulidade e, mais ainda, o seu orgulho. Eis por que haveria imprudência em aceitar suas revelações sem controle. Não se deve perder de vista que estamos na Terra, num mundo de expiação, onde abundam os Espíritos inferiores e onde os Espíritos realmente superiores são exceções.

Nos mundos adiantados dá-se exatamente o contrário.

As pessoas dotadas de visão espiritual podem ser consideradas médiuns? Sim e não, conforme as circunstâncias. A mediunidade consiste na intervenção dos Espíritos; o que se faz por si mesmo não é um ato mediúnico. Aquele que possui a visão espiritual vê pelo seu próprio Espírito e nada implica a necessidade do concurso de um Espírito estranho; ele não é médium porque vê, mas por suas relações com outros Espíritos. Conforme sua natureza boa ou má, os Espíritos que o assistem podem facilitar ou entravar sua lucidez, lhe fazer ver coisas justas ou falsas, o que também depende do objetivo a que se propõe e da utilidade que possam apresentar certas revelações. Aqui, como em todos os outros gêneros de mediunidade, as questões fúteis e de curiosidade, as intenções não sérias, os objetivos cúpidos e interesseiros, atraem os Espíritos levianos, que se divertem à custa das pessoas excessivamente crédulas e se comprazem em mistificá-las. Os Espíritos sérios só intervêm nas coisas sérias, e o vidente mais bem dotado nada verá se não lhe for permitido responder ao que perguntam, ou ser perturbado por visões ilusórias, a fim de punir os curiosos indiscretos.

Embora possua sua própria faculdade, e por mais transcendente que ela seja, nem sempre é livre para usá-la à vontade. Muitas vezes os Espíritos lhe dirigem o emprego e, se dela abusa, será o primeiro punido pela intromissão dos Espíritos maus.

Resta um ponto importante a esclarecer: o da previsão de acontecimentos futuros. Compreende-se a visão das coisas presentes, a visão retrospectiva do passado; mas como pode a visão espiritual dar a certos indivíduos o conhecimento do que ainda não existe? Para não nos repetirmos, aludimos ao nosso artigo do mês de maio de 1864, sobre a Teoria da Presciência, onde a questão é tratada de maneira completa. Apenas acrescentaremos algumas palavras. Em princípio, o futuro é oculto ao homem por motivos tantas vezes já expostos; só excepcionalmente lhe é revelado e, além disso, ele é mais pressentido do que predito. Para o conhecer, Deus não deu ao homem nenhum meio certo. É, pois, em vão que este emprega, para tal finalidade, uma imensidão de processos inventados pela superstição, e que o charlatanismo explora em seu proveito. Se, por vezes, entre os ledores de buena-dicha, profissionais ou não, alguns são dotados da visão espiritual, é de notar que veem no passado e no presente com uma frequência muito maior que no futuro. Seria, pois, uma imprudência confiar de maneira absoluta em suas predições e, em consequência, regular sua conduta.



[1] Revista Espírita – Outubro/1864 – Allan Kardec

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