Allan Kardec
Um de nossos correspondentes nos
escreve o seguinte:
Eis o que escrevi,
há dois anos, ao Sr. Nefftzer, diretor do jornal Le Temps:
Eu era assinante de vosso
jornal, cujas tendências e opiniões me eram simpáticas. É, pois, com pesar que
não prossigo a assinatura. Permiti vos dê os motivos. Em vosso número de 3 de junho,
vos esforçáveis em lançar o ridículo sobre o Espiritismo e os espíritas,
narrando uma história mais ou menos autêntica, sem citar nomes, datas e
lugares, o que é cômodo. Procuráveis estabelecer, tema hoje obrigatório dos
materialistas, incomodados imensamente pelo Espiritismo, que essa crença leva à
loucura. Sem dúvida, espíritos fracos, já tendo tendências para uma perturbação
das faculdades cerebrais, puderam perder a cabeça inteiramente, ao se ocuparem
do Espiritismo, como lhes teria acontecido sem isto, e como acontece aos que se
ocupam de Química, de Física ou de Astronomia, e mesmo a escritores que não
acreditam nos Espíritos.
Também não nego que não
haja charlatães que exploram o Espiritismo, porque qual a ciência que possa
escapar ao charlatanismo? Não temos charlatães literários, industriais, agrícolas,
militares, políticos, sobretudo destes últimos? Mas concluir daí contra o
Espiritismo em geral é pouco lógico e pouco sensato. Antes de lançar uma
acusação dessa natureza, seria preciso, ao menos, conhecer a coisa de que se
fala; no mais das vezes, porém, é a menor preocupação de quem escreve. Cortam e
decidem a torto e a direito, o que é mais fácil do que aprofundar e aprender.
Se alguma vez
experimentardes grandes desgraças, vivas dores, crede-me, senhor, estudai o
Espiritismo; somente nele encontrareis a consolação e as verdades que vos farão
suportar vossos desgostos, vossos desenganos ou vossos desesperos, o que será
preferível ao suicídio. Que nos queríeis dar mais que esta bela e consoladora
filosofia cristã? O culto dos interesses materiais, do bezerro de ouro? É
talvez o que convém ao temperamento da generalidade dos felizardos de hoje, mas
é preciso outra coisa para os que não mais querem o fanatismo, a superstição,
as práticas ridículas e grosseiras da Idade Média, nem o ateísmo, o panteísmo e
a incredulidade sistemática dos séculos dezoito e dezenove.
Permiti-me, senhor, vos
aconselhar a ser mais prudente em vossas diatribes contra o Espiritismo, porque
hoje elas se dirigem, só na França, a algo em torno de trezentas ou quatrocentas
mil pessoas.
Blanc
de Lalésie
(Proprietário em Genouilly, perto de Joncy, Saône-et-Loire)
Há poucos dias os
jornais nos informaram da morte do filho único do Sr. Nefftzer. Não sei se essa
desgraça o terá feito lembrar-se de minha carta.
Acabo de enviar ao
Sr. Émile Aucante, administrador do jornal Univers illustré, a seguinte carta:
Há dezoito meses sou
assinante do Univers illustré e, desde essa época, quase não há números em que
o vosso cronista, sob o pseudônimo de Gérôme, não tenha julgado útil, para ocupar
sua pena, zombar do Espiritismo e dos espíritas de todos os modos possíveis.
Até aí essa diversão, um tanto fastidiosa por sua frequência, é muito inocente:
O Espiritismo não vai mal por isto.
Mas o Sr. Gérôme,
sem dúvida percebendo que pouco se inquietam com suas pilhérias, muda de
linguagem e, no número de 7 de outubro, trata todos os espíritas, em bloco, de
idiotas; da zombaria passa à injúria e não teme insultar milhares de pessoas
tão instruídas, tão esclarecidas e tão inteligentes quanto ele, porque creem
ter uma alma imortal e pensam que essa alma, numa outra vida, será recompensada
ou punida conforme seus méritos ou deméritos. O Sr. Gérôme não tem semelhantes
preconceitos. Irra!
Sem dúvida crê que
come, bebe, reproduz sua espécie, nem mais nem menos do que meu cachorro ou meu
cavalo. Rendo-lhe meus cumprimentos.
Se o Sr. Gérôme se
dignasse receber um conselho, eu me permitiria exortá-lo a só falar de coisas
que conhece e a calar-se em relação às que não conhece ou, pelo menos, a
estudá-las, o que lhe seria fácil, com sua alta e incontestável inteligência.
Ele aprenderia aquilo que certamente nem desconfia: que o Espiritismo é o
Cristianismo desenvolvido, e que as manifestações dos Espíritos são de todos os
tempos e nada representam para a doutrina, que não deixaria de existir, com ou
sem manifestações.
Mas, por que falo de
Espíritos a um homem que só acredita no seu e talvez ignore se tem uma alma?
Que o Sr. Gérôme seja envolvido na bandeira do materialismo, do panteísmo ou do
paganismo – este último seria melhor, porque nele ao menos se acreditava na
existência da alma e da vida futura – pouco importa!
Mas que ele saiba,
respeitando-se a si mesmo, respeitar a crença de seus leitores. É evidente que
não me seria possível continuar dando dinheiro para me deixar insultar; se
essas injúrias continuarem, deixarei de ser vosso assinante...
O Sr. de Lalésie é modesto ao
avaliar o número de espíritas da França em trezentos ou quatrocentos mil. Teria
podido dobrar esta cifra sem cometer exagero e ainda estaria muito abaixo dos
cálculos do autor de uma brochura que pretendia pulverizar-nos e a elevava a
vinte milhões. Aliás, um recenseamento exato dos espíritas é coisa impossível,
uma vez que não estão arregimentados, cujos membros são registrados e podem ser
contados.
O Espiritismo é uma crença. Quem
quer que creia na existência e na sobrevivência das almas e na possibilidade
das relações entre os homens e o mundo espiritual, é espírita, e muitos o são
intuitivamente, sem jamais terem ouvido falar de Espiritismo nem de médiuns.
É-se espírita por convicção, como outros são incrédulos; para isto, não basta
fazer parte de uma sociedade, e a prova é que nem a milésima parte dos adeptos frequentam
as reuniões. Para fazer a sua contagem não há nenhum registro-matrícula a
consultar; seria preciso fazer um inquérito junto a cada indivíduo e lhe
perguntar o que pensa.
Através da conversa se
descobrem, todos os dias, pessoas simpáticas à ideia e que, só por isto, são
espíritas, sem que haja necessidade de possuir diploma ou de fazer um ato
público qualquer. Seu número cresce diariamente; o fato é constatado por nossos
próprios adversários, que reconhecem com pavor que esta crença invade todas as
camadas da sociedade, de alto a baixo da escala. É, pois, uma opinião com a
qual se deve contar hoje, e que tem a particularidade de não se circunscrever a
uma classe, nem a uma casta, nem a uma seita, nem a uma nação, nem a um partido
político. Tem representantes em toda parte, nas letras, nas artes, nas
ciências, na Medicina, na magistratura, na ordem dos advogados, no exército, no
comércio etc.
Na França o número de espíritas
seguramente ultrapassa de muito o dos assinantes de todos os jornais de Paris.
É evidente que eles entram em notável parte entre os mesmos assinantes. É,
pois, a estes que pagam que os senhores jornalistas dizem injúrias. Ora, como
diz com razão o Sr. de Lalésie, não é agradável dar seu dinheiro para ser
ridicularizado e injuriado. Por isto cancelou a assinatura dos jornais onde se
via maltratado em sua crença, e ninguém deixará de achar muito lógica sua
maneira de agir.
Significa dizer que para agradar
os espíritas os jornais devem adotar suas ideias? Absolutamente. Todos os dias
eles discutem opiniões de que não partilham, mas não injuriam os que as
professam. Esses escritores não são judeus e, no entanto, não se permitem
lançar o anátema e o desprezo sobre os judeus em geral, nem ridicularizar sua
crença. Por que isto? Porque, dizem, deve-se respeitar a liberdade de
consciência. Por que, então, não existiria essa liberdade para os espíritas?
Não são cidadãos como todo o mundo? Reclamam exceções e privilégios? Só pedem
uma coisa: direito de pensar como entenderem. Os que inscrevem em sua bandeira:
Liberdade, igualdade, fraternidade, quereriam então criar na França uma classe
de párias?