terça-feira, 24 de março de 2020

ABRI-ME! - APELO DE CÁRITA[1]



Allan Kardec

Escrevem-nos de Lyon:
...O Espiritismo, esse grande traço de união entre todos os filhos de Deus, abriu-nos tão vastos horizontes que podemos olhar, de um a outro ponto, todos os corações esparsos que as circunstâncias colocaram no Oriente e no Ocidente, e os ver vibrar a um só apelo de Cárita. Ainda me lembro da profunda emoção que senti quando, no ano passado, a Revista Espírita nos dava conta da impressão produzida em todas as partes da Europa por uma comunicação desse bondoso Espírito. Por certo se poderá dizer tudo quanto se queira contra o Espiritismo: é uma prova de que ele cresce, pois geralmente não se atacam as pequenas causas, mas os grandes efeitos. Aliás, a que se assemelham esses ataques?
À cólera de uma criança que atirasse pedras ao oceano, para o impedir de murmurar. Os detratores do Espiritismo quase não suspeitam que, denegrindo a doutrina, pagam todas as despesas de uma propaganda que dá aos que a leem vontade de conhecer esse temível inimigo, que tem como palavra de ordem: Fora da caridade não há salvação...

Esta carta estava acompanhada da seguinte comunicação, ditada pelo Espírito Cárita, a eloquente e graciosa pedinte, que os bons corações conhecem tão bem.

(Lyon, 8 de novembro de 1865)

Faz frio, chove, o vento sopra muito forte; abri-me.
Fiz uma longa viagem através do país da miséria e volto com o coração mortificado, os ombros sobrecarregados pelo fardo de todas as dores. Abri-me bem depressa, meus amados, vós que sabeis que a caridade só bate à vossa porta quando encontra muitos infelizes em seu caminho. Abri o vosso coração para receber as minhas confidências; abri a vossa bolsa para enxugar as lágrimas de meus protegidos e escutai-me com essa emoção que a dor faz subir de vossa alma aos vossos lábios. Oh! Vós que sabeis o que Deus reserva, e que muitas vezes chorais essas lágrimas de amor que o Cristo chamava o orvalho da vida celeste, abri-me!...
Obrigada! Eu entrei.
Parti esta manhã; chamavam-me de todos os lados. O sofrimento tem a voz tão vibrante que um único apelo é suficiente.
Minha primeira visita foi para dois pobres velhos: marido e mulher.
Viveram ambos esses longos dias em que o pão escasseia, o sol se esconde e falta trabalho aos braços valentes que o chamam; sepultaram a miséria no lar da dignidade e ninguém pôde adivinhar que muitas vezes o dia transcorria sem trazer seu pão quotidiano.
Depois chegou a idade, os membros se enrijeceram, os olhos ficaram velados e o patrão, que fornecia trabalho, disse: Nada mais tenho a fazer. Entretanto, a morte não veio; a fome e o frio são os visitantes habituais, diários, da pobre morada. Como responder a essa miséria? Proclamando-a? Oh, não! Há feridas que não se curam arrancando o aparato que as cobre. O que acalma o coração é uma palavra de consolo, dita por uma voz amiga que adivinhou, com sua alma, o que lhe ocultaram aos olhos. Para esses pobres, abri-me!
 E, depois, vi uma mãe repartir seu único pedaço de pão com os três filhinhos; e como o naco era muito pequeno, nada guardou para si. Vi a lareira apagada, o pobre catre; vi os membros tiritantes envolvidos em farrapos; vi o marido entrar em casa sem ter encontrado trabalho; enfim, vi o filho caçula morrer sem socorro, porque o pai e a mãe são espíritas e tiveram que sofrer humilhações das obras de beneficência.
Vi a miséria em toda a sua horrenda chaga; vi os corações se atrofiarem e a dignidade extinguir-se sob o verme roedor da necessidade de viver. Vi criaturas de Deus renegarem sua origem imortal, porque não compreendiam a provação. Vi, enfim, o materialismo crescer com a miséria e em vão gritei: Abri-me! Eu sou a caridade; venho a vós com o coração cheio de ternura; não choreis mais, eu venho vos consolar. Mas o coração dos infelizes não me escutou: suas entranhas tinham muita fome!
Então me aproximei de vós, meus bons amigos, de vós que me escutastes, de vós que sabeis que Cárita pede esmola para os pobres e vos disse: Abri-me!
Acabo de vos contar o que vi em minha longa jornada e, eu vos suplico, tendes para os meus pobres um pensamento, uma palavra, uma doce lembrança, a fim de que à noite, à hora da prece, eles não adormeçam sem agradecer a Deus, porque lhes sorristes de longe. Sabeis que os pobres são a pedra de toque que Deus envia a Terra para experimentar vossos corações. Não os repilais, a fim de que, um dia, quando tiverdes transposto o limiar que conduz ao espaço, Deus vos reconheça pela pureza de vossos corações e vos admita na morada dos eleitos!
Cárita.
É com alegria que nos fazemos intérpretes da boa Cárita, esperando que ela não tenha dito em vão: Abri-me! Se bate à porta com tanta insistência, é que o inverno aí bate por seu lado.




[1] Revista Espírita – Dezembro/1865 – Allan Kardec

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