Humberto de Campos (13/12/1935)
Ainda não me encontro bastante
desapegado desse mundo para que não me sentisse tentado a voltar a ele, no dia
que assinalou o meu desprendimento da carcaça de ossos.
Se o vinte e sete de outubro
marcou o meu ingresso no reino das sombras, que é a vida daí, o cinco de
dezembro representou a minha volta ao país de claridades benditas, cujas portas
de ouro são escancaradas pelas mãos poderosas da morte.
Nessa noite, o ambiente do
cemitério de São João Batista parecia sufocante. Havia um "quê" de
mistérios, entre catacumbas silenciosas, que me enervava, apesar da ausência
dos nervos tangíveis no meu corpo estranho de espírito. Todavia, toquei as
flores cariciosas que a Saudade me levara, piedosa e compungidamente. O seu
aroma penetrava o meu coração como um consolo brando, conduzindo-me, num
retrospecto maravilhoso, às minhas afeições comovidas, que haviam ficado a
distância.
E foi entregue a essas
cogitações, a que são levados os mortos quando penetram o mundo dos vivos, que
vi, acocorado sobre a terra, um dos companheiros que me ficavam próximos ao
bangalô subterrâneo com que fui mimoseado na terra carioca.
‒ O senhor é o dono
desses ossos que estão por aí apodrecendo? - interpelou-me.
‒ Sim, e a que vem a
sua pergunta?
‒ Ora, é que me
lembro do dia de sua chegada ao seu palacete subterrâneo. Recordo-me bem,
apesar de sair pouco dessa toca para onde fui relegado há mais de trinta
anos...
– O senhor se
lembra? A urna funerária, portadora dos seus despojos, saiu solenemente da Academia
de Letras, altas personalidades da política dominante se fizeram representar
nas suas exéquias e ouvi sentidos panegíricos pronunciados em sua homenagem.
Muito trabalho tiveram as máquinas fotográficas na camaradagem dos homens da
imprensa e tudo fazia sobressair à importância do seu nome ilustre. Procurei
aproximar-me de si e notei que as suas mãos, que tanto haviam acariciado o
espadim acadêmico, estavam inermes e que os seus miolos, que tanto haviam
vibrado, tentando aprofundar os problemas humanos, estavam reduzidos a um
punhado de massa informe, onde apenas os vermes encontrariam algo de útil.
Entretanto, embora as homenagens, as honrarias, a celebridade, o senhor veio humildemente
repousar entre as tíbias e os úmeros daqueles que o antecederam na jornada da
Morte. Lembra-se o senhor de tudo isso?
‒ Não me lembro
bem... Tinha o meu espírito perturbado pelas dores e emoções sucessivas.
‒ Pois eu me lembro
de tudo. Daqui, quase nunca me afasto, como um olho de Argos, avivando a
memória dos meus vizinhos. O senhor conhece as criptas de Palermo?
‒ Não.
‒ Pois nessa cidade
os monges, um dia, conjugando a piedade com o interesse, inventaram um
cemitério bizarro. Os mortos eram mumificados e não baixavam à sepultura. Prosseguiam
de pé a sua jornada de silêncio e de nudez espantosa. Milhares de esqueletos ali
ficaram, em marcha, vestidos ao seu tempo, segundo os seus gostos e opiniões.
Muito rumor causou essa parada de caveiras e de canelas, até que um dia um
inspetor da higiene, visitando essa casa de sombras da vida e enojado com a
presença dos ratos que roíam displicentemente as costelas dos traspassados
ricos e ilustres que se davam ao gosto de comprar ali um lugar de descanso,
mandou cerrar-lhe as portas pelo ministro Crispi, em 1888. Ora bem: eu sou uma
espécie dos defuntos de Palermo. Aqui estou sempre de pé, apesar dos meus ossos
estarem dissolvidos na terra, onde se encontraram com os ossos dos que foram
meus inimigos.
‒ A vida é assim
disse-lhe eu; mas, por que se dá o amigo a essa inglória tarefa na solidão em
que se martiriza? Não teria vindo do orbe com bastante fé, ou com alguma
credencial que o recomendasse a este mundo cujas fileiras agora integramos?
‒ Credenciais?
Trouxe muitas. Além da honorabilidade de velho político do Rio de Janeiro, trazia
as insígnias da minha fé católica, apostólica romana. Morri com todos os
sacramentos da igreja; porém, apesar das palavras sacramentais, da liturgia e
das felicitações dos hissopes, não encontrei viva alma que me buscasse para o
caminho do Céu, ou mesmo do inferno. Na minha condição de defunto
incompreendido, procurei os templos católicos, que certamente estavam na
obrigação de me esclarecer. Contudo, depressa me convenci da inutilidade do meu
esforço. As igrejas estão cheias de mistificações. Se Jesus voltasse agora ao
mundo, não poderia tomar um átomo de tempo pregando as virtudes cristãs, na
base, luminosa da humildade. Teria de tomar, incontinenti, ao regressar a este
mundo, um látego do fogo e trabalhar anos afio no saneamento de sua casa. Os
vendilhões estão muito multiplicados e a época não comporta mais o Sermão da
Montanha. O que se faz necessário, no tempo atual, no tocante a esse problema,
é a creolina de que falava Guerra Junqueiro nas suas blasfêmias.
‒ Mas, o irmão está
muito cético. É preciso esperança e crença...
‒ Esperança e
crença? Não acredito que elas salvem o mundo, com essa geração de condenados.
Parece que maldições infinitas perseguem a moderna civilização. Os homens falam
de fé e de religião, dentro do esnobismo e da elegância da época. A religião é
para uso externo, perdendo-se o espírito nas materialidades do século. As criaturas
parecem muito satisfeitas sob a tutela estranha do diabo. O nome de Deus, na
atualidade, não deve ser evocado senão como máscara para que os enigmas do
demônio sejam resolvidos. Não estamos nós aqui dentro da terra da Guanabara,
paraíso dos turistas, cidade maravilhosa? Percorra o senhor, ainda depois de
morto, as grandes avenidas, as artérias gigantescas da capital e verá as
crianças famintas, as mãos nauseantes dos leprosos, os rostos desfigurados e
pálidos das mães sofredoras, enquanto o governo remodela os teatros, incentiva
as orgias carnavalescas e multiplica regalos e distrações. Vá ver como o câncer
devora os corpos enfermos no hospital da Gamboa; ande pelos morros, para onde
fugiu a miséria e o infortúnio; visite os hospícios e leprosários. Há de se
convencer da inutilidade de todo o serviço em favor da esperança e da crença.
Em matéria de religião, tente materializar-se e corra aos prédios elegantes e
aos bangalôs adoráveis de Copacabana e do Leblon, suba a Petrópolis e grite a
verdade. O seu fantasma seria corrido a pedradas. Todos os homens sabem que hão
de chocalhar os ossos, como nós, algum dia, mas um vinho diabólico envenenou no
berço essa geração de infelizes e de descrentes.
‒ Por que o amigo
não tenta o Espiritismo? Essa doutrina representa hoje toda nossa esperança.
‒ Já o fiz. É
verdade que não compareci em uma reunião de sabedores da doutrina, conhecedores
do terreno que perquiriam; mas estive em uma assembleia de adeptos e procurei
falar-lhes dos grandes problemas da existência das almas. Exprobrei os meus
erros do passado, penitenciando-me das minhas culpas para escarmentá-los;
mostrei-lhes as vantagens da prática do bem, como base única para encontrarmos
a senda da felicidade, relatando-lhes a verdade terrível, na qual me achei um
dia, com os ossos confundidos com os ossos dos miseráveis. Todavia, um dos
componentes da reunião interpelou-me a respeito das suas tricas domésticas,
acrescentando uma pergunta quanto à marcha dos seus negócios. Desiludi-me. Não
tentarei coisa alguma. Desde que temos vida depois da morte, prefiro esperar a
hora do Juízo Final, hora essa em que deverei buscar um outro mundo, porque,
com respeito à Terra, não quero chafurdar-me na sua lama. Por estranho paradoxo
vivo depois da morte, serei adepto da congregação dos descrentes. .
‒ Então, nada o
convence?
‒ Nada. Ficarei aqui
até à consumação dos evos, se a mão do Diabo não se lembrar, de me arrancar
dessa toca de ossos moídos e cinzas asquerosas. E, quanto ao senhor, não
procure afastar-me dessa misantropia. Continue gritando para o mundo que lhe
guarda os despojos.
‒ Eu não o farei.
E o singular personagem,
recolheu-se à escuridão do seu canto imundo, enquanto pesava no meu espírito a
certeza dolorosa da existência dessas almas vazias e incompreendidas na parada
eterna dos túmulos silenciosos para onde os vivos levam de vez em quando as
flores perfumadas da sua saudade e da sua afeição.
[1] Crônicas de
Além-Túmulo – Francisco C. Xavier