terça-feira, 29 de março de 2022

O ZUAVO JACOB[1]

 


Allan Kardec

 

Estando na ordem do dia a faculdade curadora, não é de admirar que a ela tenhamos consagrado a maior parte deste número e, seguramente, estamos longe de ter esgotado o assunto.

Por isso a ele voltaremos.

Logo de saída, para fixar as ideias de muitas pessoas interessadas na questão relativa ao Sr. Jacob, as quais nos escreveram ou poderiam escrever-nos a respeito, dizemos:

 

1.       Que as sessões do Sr. Jacob estão suspensas. Assim, seria inútil apresentar-se no lugar onde se realizavam (Rue de la Roquette, 80) e que, até o presente, não as retomou em parte alguma. O motivo foi a excessiva aglomeração de pessoas, que dificultava a circulação numa rua muito frequentada, e um beco sem saída, ocupado por grande número de industriais, que se viam impedidos em seus negócios, não podendo receber os clientes, nem expedir as suas mercadorias. Neste momento o Sr. Jacob não dá sessões públicas, nem particulares.

2.       Dada a afluência, e devendo cada um esperar muito tempo a sua vez, aos que nos perguntaram, ou no futuro nos perguntarem se, conhecendo pessoalmente o Sr. Jacob, poderiam, com uma recomendação nossa, conseguir atendimento preferencial, diremos que nunca pedimos e jamais o pediríamos, sabendo que seria inútil. Se ingressos preferenciais tivessem sido concedidos, teria sido em prejuízo dos que esperam e não deixariam de provocar justas reclamações. O Sr. Jacob não fez exceções para ninguém; o rico devia esperar como o infeliz, porque, em última análise, o infeliz sofre tanto quanto o rico; como este, não tem o conforto por compensação e, além disso, muitas vezes espera a saúde para ter de que viver. Por isso felicitamos o Sr. Jacob; e se ele não tivesse agido assim, ao solicitarmos um favor apenas teríamos feito uma coisa que nele haveríamos de censurar.

3.       Aos doentes que nos perguntaram, ou poderiam perguntar, se lhes aconselhamos fazer a viagem de Paris, dizemos: O Sr. Jacob não cura todo o mundo, como ele mesmo declara; nunca sabe por antecipação se curará ou não um doente; é somente quando está em sua presença que julga da ação fluídica e vê o resultado; é por isso que nunca promete nada e jamais responde. Aconselhar alguém a fazer a viagem de Paris, seria assumir uma responsabilidade sem certeza de sucesso. É, pois, um risco que se corre, e se não se obtiver resultado, a gente está livre das despesas de viagem, ao passo que se gastam, muitas vezes, somas enormes em consultas, sem maiores vantagens. Se não se fica curado, não se pode dizer que se pagou cuidados inutilmente.

4.       Aos que nos perguntam se, indenizando o Sr. Jacob de suas despesas de viagem, já que não aceita honorários, ele concordasse em vir a tal ou qual localidade para cuidar de um doente, respondemos: O Sr. Jacob não atende a convites desse gênero, pelas razões desenvolvidas acima. Não podendo responder previamente pelos resultados, consideraria uma indelicadeza induzir gastos sem certeza de êxito; e em caso de insucesso, seria dar ensejo à crítica.

 

Aos que escrevem ao Sr. Jacob, ou nos enviam cartas para fazê-las chegar até ele, dizemos: O Sr. Jacob tem em sua casa um armário cheio de cartas, que ele não lê, e não responde a ninguém. Com efeito, que poderia dizer? Aliás, ele não cura por correspondência. Falar com afetação? Não é o seu gênero; dizer se tal doença é curável por ele? Ele não o sabe. Pelo fato de ter curado uma pessoa de tal doença, não se segue que cure a mesma doença em outras pessoas, porque as condições fluídicas não são as mesmas; indicar um tratamento? Ele não é médico e se absteria de fornecer esta arma contra si.

Assim, escrever a ele é trabalho inútil. A única coisa a fazer, caso ele retomasse as sessões, classificadas por engano como consultas, já que não o consultam, é apresentar-se tão logo chegue, entrar na fila, esperar pacientemente e arriscar a chance. Se não se ficar curado, não se pode queixar de ter sido enganado, desde que ele nada promete.

Há fontes que têm a propriedade de curar certas doenças. Vão lá; uns se sentem bem, outros são apenas aliviados; outros, enfim, não experimentam absolutamente nada. Deve-se considerar o Sr. Jacob como uma fonte de fluidos salutares, a cuja influência vão submeter-se, mas que, não sendo uma panaceia universal, não cura todos os males e pode ser mais ou menos eficaz, conforme as condições do doente.

Mas, enfim, houve curas? Um fato responde a esta pergunta: Se ninguém tivesse sido curado, a multidão não teria ido para lá, como fez.

Mas a multidão crédula não pode ter sido enganada por falsas aparências e para lá se dirigir confiando numa reputação usurpada? Comparsas não podem ter simulado doenças para parecerem ter sido curados?

Sem dúvida, isto se viu e se vê todos os dias, quando cúmplices têm interesse em representar a comédia. Ora, aqui, que proveito teriam tirado? Quem os teria pago? Certamente não foi o Sr. Jacob, com o seu soldo de músico dos zuavos; nem a concessão de um desconto sobre as consultas, já que ele nada recebia.

Compreende-se que aquele que quer fazer uma clientela a qualquer preço empregue semelhantes meios; mas o Sr. Jacob não tinha o menor interesse em atrair a si a multidão; não a chamou: foi ela que veio a ele e, pode dizer-se, à sua revelia. Se não tivesse havido os fatos, ninguém teria vindo, pois ele não chamava ninguém. Sem dúvida os jornais contribuíram para aumentar o número de visitantes, mas só falaram do caso porque já existia a multidão, sem o que nada teriam dito, pois o Sr. Jacob não lhes tinha pedido que falasse dele, nem pago para fazer propaganda. Deve-se, pois, afastar toda ideia de subterfúgios, que não teriam nenhuma razão de ser na circunstância de que se trata.

Para apreciar os atos de um indivíduo, é preciso buscar o interesse que o pode solicitar na sua maneira de agir. Ora, está comprovado que não havia nenhum da parte do Sr. Jacob; que também não o havia para o Sr. Dufayet, que cedia seu local gratuitamente, e punha seus operários a serviço dos doentes, para carregar os enfermos, e isto com prejuízo de seus próprios interesses; enfim, que comparsas nada tinham a ganhar.

Como as curas operadas pelo Sr. Jacob, nestes últimos tempos, são do mesmo gênero das obtidas o ano passado no campo de Châlons, e tendo-se passado os fatos mais ou menos da mesma maneira, apenas em maior escala, remetemos nossos leitores aos relatos e apreciações que demos na Revista de outubro e novembro de 1866. Quanto aos incidentes particulares deste ano, não poderíamos senão repetir o que todos souberam pelos jornais.

Limitar-nos-emos, pois, quanto ao presente, a algumas considerações gerais sobre o fato em si mesmo.

Há cerca de dois anos, os Espíritos nos haviam anunciado que a mediunidade curadora tomaria grandes desenvolvimentos, e seria um poderoso meio de propagação para o Espiritismo. Até então só havia curadores que operavam, por assim dizer, na intimidade e sem alarido. Dissemos aos Espíritos que, a fim de que a propagação fosse mais rápida, era preciso que surgissem outros mais poderosos, para que as curas tivessem repercussão no público. Isto acontecerá, foi a resposta, e haverá mais de um.

Essa previsão teve um começo de realização o ano passado, no campo de Châlons, e Deus sabe se este ano faltou repercussão às curas da Rua de la Roquette, não só na França, mas no estrangeiro.

A comoção geral que estes fatos causaram é justificada pela gravidade das questões que eles levantam. Não há por que se equivocar: aqui não está um desses acontecimentos de mera curiosidade, que por um momento apaixonam a multidão ávida de novidades e distrações. A gente não se distrai com o espetáculo das misérias humanas; a visão desses milhares de doentes, correndo em busca da saúde, que não puderam encontrar nos recursos da Ciência, nada tem de prazeroso e leva a sérias reflexões.

Sim, há aqui algo mais que um fenômeno vulgar. Sem dúvida admiram-se das curas obtidas em condições tão excepcionais que parecem raiar o prodígio; mas o que impressiona mais ainda que o fato material, é que aí pressentem a revelação de um princípio novo, cujas consequências são incalculáveis, de uma dessas leis por tanto tempo ocultas no santuário da Natureza, que, à sua aparição, mudam o curso das ideias e modificam as crenças profundamente.

Diz uma secreta intuição que se os fatos em questão são reais, é mais que uma mudança nos hábitos: é um elemento novo introduzido na sociedade, uma nova ordem de ideias que se estabelece.

Embora os acontecimentos do campo de Châlons tenham preparado para o que acaba de se passar, em consequência da inatividade do Sr. Jacob durante um ano, eles quase tinham sido esquecidos; a emoção se havia acalmado, quando, de repente, os mesmos fatos explodem no seio da capital e de súbito tomam proporções inauditas. É, por assim dizer, como se tivéssemos despertado no dia seguinte a uma revolução, e só nos abordássemos perguntando: Sabeis o que se passa na Rua de la Roquette? Tendes notícias? Dispensavam os jornais, como se se tratasse de um grande acontecimento. Em quarenta e oito horas a França inteira ficou sabendo.

Há nesta instantaneidade algo de notável e de mais importante do que se pensa.

A impressão do primeiro momento foi de estupor: ninguém riu. A própria imprensa facciosa simplesmente relatou os fatos e os boatos, sem fazer comentários. Diariamente ela dava o boletim, sem se pronunciar pró, nem contra, e foi possível notar que a maioria dos artigos não eram escritos em tom de zombaria; exprimiam a dúvida, a incerteza quanto à realidade de fatos tão estranhos, inclinando-se, porém, mais para a afirmação do que para a negação. É que o assunto, por si mesmo, era sério; tratava-se do sofrimento e o sofrimento tem algo de sagrado, que impõe respeito; em semelhante caso a pilhéria seria inconveniente e universalmente reprovada. Jamais se viu a verve zombeteira exercitar-se diante de um hospital, mesmo de loucos, ou de um comboio de feridos. Homens de coração e de senso não podiam deixar de compreender que, numa coisa que diz respeito a questões de humanidade, a zombaria teria sido indecorosa, por insultar a dor. Assim, é com um sentimento penoso e uma espécie de desgosto que hoje se vê o espetáculo desses infelizes doentes reproduzido grotescamente nos teatros de feira e traduzido em canções burlescas. Admitindo de sua parte uma credulidade pueril e uma esperança mal fundada, não é uma razão para faltar ao respeito que se deve ao sofrimento.

Em presença de tal repercussão, a denegação absoluta era difícil; a dúvida só é permitida àquele que não sabe ou que não viu. Entre os incrédulos de boa-fé e por ignorância, muitos compreenderam que seria imprudência inscrever-se prematuramente em falso contra fatos que, um dia ou outro, poderiam receber uma consagração e lhes dar um desmentido.

Assim, sem nada negar nem afirmar, a imprensa geralmente limitou-se a registrar o estado de coisas, deixando à experiência o cuidado de os confirmar ou desmentir e, sobretudo, de os explicar.

Era o partido mais prudente.

Passado o primeiro momento de surpresa, os adversários obstinados de toda coisa nova que contraria as suas ideias, atordoados em alguns momentos pela violência da irrupção, tomaram coragem, principalmente quando viram que o zuavo era paciente e de humor pacífico. Começaram o ataque a todo vapor, servindo-se das armas habituais dos que não têm boas razões para objetar: o gracejo e a calúnia excessivos. Mas a sua polêmica acrimoniosa denuncia cólera e evidente embaraço, e seus argumentos, quase sempre assentados em falso e sobre alegações notoriamente inexatas, não são dos que convencem, porque se refutam por si mesmos.

Seja como for, não se trata aqui de uma questão pessoal. Que o Sr. Jacob sucumba, ou não, na luta, é uma questão de princípios que está em jogo, posta com imensa repercussão e que seguirá seu curso. Traz à memória inumeráveis fatos do mesmo gênero, que a História menciona, e que se multiplicam em nossos dias. Se é uma verdade, não está encarnada num homem, e nada poderia abafá-la; a própria violência dos ataques prova que temem que seja uma verdade.

Nesta circunstância, os que testemunham menos surpresa e menos se emocionam são os espíritas, porque essas espécies de fatos nada têm de que eles não se deem conta perfeitamente. Conhecendo a causa, não se admiram dos efeitos.

Quanto aos que não conhecem a causa do fenômeno, nem a lei que o rege, naturalmente se perguntam se é uma ilusão ou uma realidade; se o Sr. Jacob é um charlatão; se realmente cura todas as doenças; se é dotado de um poder sobrenatural e de quem o tem; se voltamos ao tempo dos milagres. Vendo a multidão que o envolve e o segue, como outrora a que seguia a Jesus na Galileia, alguns se perguntam mesmo se não seria o Cristo reencarnado, enquanto outros pretendem que sua faculdade seja um presente do diabo.

Desde muito tempo todas estas questões estão resolvidas para os espíritas, que têm a sua solução nos princípios da doutrina. Não obstante, como daí podem sair vários ensinamentos importantes, nós os examinaremos num próximo artigo, no qual faremos ressaltar igualmente a inconsequência de certas críticas.



[1] Revista Espírita – Outubro/1867 – Allan Kardec

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