terça-feira, 9 de fevereiro de 2021

O Zuavo[1] Curador do Campo de Châlons[2]

 

O Zuavo francês em 1870

Allan Kardec

 

Lê-se no Écho de l’Aisne, de 1º de agosto de 1866:

 

Não se fala em nossa terra senão das maravilhas realizadas no campo de Châlons por um jovem zuavo espírita, que diariamente faz novos milagres.

Numerosos comboios de doentes se dirigem a Châlons e, coisa incrível, um bom número deles volta curado.

Nestes últimos dias um paralítico, vindo de carro, depois de ter sido visto pelo ‘jovem espírita’ achou-se radicalmente curado e voltou para casa galhardamente a pé.

Quem puder explique estes fatos, que tocam ao prodígio; sempre há os que são exatos e afirmados por grande número de pessoas inteligentes e dignas de fé.

Renaud

 

Este artigo é reproduzido textualmente pela Presse illustrée de 6 de agosto. O Petit Journal, de 17 de agosto, narra o fato nestes termos:

 

Depois de ter visitado o quartel imperial, que penso já tenhais descrito aos vossos leitores, isto é, a morada mais adequada e, ao mesmo tempo, mais simples que pode ter um soberano, mesmo que apenas por alguns dias, passei a noite a correr à procura do zuavo magnetizador.

Simples músico, esse zuavo é, há três meses, o herói do campo e dos arredores. É um homenzinho magro, moreno, de olhos profundamente encovados; uma verdadeira fisionomia de monge maometano. Dele contam coisas incríveis e sou forçado a não falar senão do que contam, porque, há vários dias, por ordem superior, teve ele que interromper as sessões públicas que dava no ‘hotel de la Meuse’. Vinham de dez léguas, um de cada vez; ele recebia vinte e cinco a trinta doentes ao mesmo tempo, e à sua voz, ao seu olhar, ao seu toque, pelo menos dizem, subitamente os surdos ouviam, os mudos falavam, os coxos se iam, muletas sob os braços.

Tudo isto é verdade? Nada sei. Conversei uma hora com ele. Chama-se Jacob, é um simples borgonhês, exprime-se com facilidade, deu-me a impressão dos mais convencidos e dos mais inteligentes. Sempre recusou qualquer espécie de remuneração e nem mesmo gosta de agradecimentos. Ademais, prometeu-me um manuscrito que lhe foi ditado por um Espírito. Inútil dizer que vos falarei dele assim que o receber, se, contudo, o Espírito tiver espírito.

René de Pont-Jest

 

Enfim, o Écho de l’Aisne, depois de haver citado o fato em seu número de 1º de agosto, comenta-o da seguinte maneira, no número 4 do mesmo mês:

 

 No número de quarta-feira última, dissestes que em nossa terra não se falava de outra coisa, senão das curas realizadas no campo de Châlons por um jovem zuavo espírita.

Creio fazer bem em vos pedir que o reprima, porque um verdadeiro exército de doentes se dirige diariamente para o campo; os que voltam satisfeitos animam outros a imitá-los; ao contrário, os que nada ganharam, não param de censurar e de escarnecer.

Entre essas duas opiniões extremas, há uma prudente reserva, que ‘bom número de doentes’ devem tomar como regra de conduta, como guia do que podem fazer.

Essas ‘curas maravilhosas’, esses ‘milagres’, como os chamam o comum dos mortais, nada têm de maravilhoso, nada de miraculoso.

Ao primeiro contato, causam admiração porque não são comuns; mas como nada do que se realiza não deixa de ter uma causa, foi preciso procurar o que produz tais fatos, e a Ciência os explicou.

As impressões morais vivas sempre tiveram a faculdade de agir sobre o ‘sistema nervoso’; as curas obtidas pelo zuavo espírita não se operam senão sobre as moléstias deste sistema. Em todas as épocas, na Antiguidade como nos tempos modernos, têm sido assinaladas curas tão-só pela força da influência da imaginação, influência constatada por grande número de fatos; nada, há, pois de extraordinário em que hoje as mesmas causas produzam os mesmos resultados.

É, pois, somente aos doentes do ‘sistema nervoso’ que é possível ‘ir, ver e esperar’.

X.

 

Antes de qualquer outro comentário, faremos uma ligeira observação sobre este último artigo. O autor constata os fatos e os explica à sua maneira. Em sua opinião, essas curas nada têm de maravilhoso ou de miraculoso. Sobre este ponto estamos perfeitamente de acordo: o Espiritismo diz claramente que não faz milagres; que todos os fatos, sem exceção, que se produzem pela influência mediúnica, são devidos a uma força natural e se realizam em virtude de uma lei tão natural quanto a que faz transmitir um telegrama para o outro lado do Atlântico em alguns minutos. Antes da descoberta da lei da eletricidade, semelhante fato teria passado pelo milagre dos milagres.

Suponhamos por um instante que Franklin, ainda mais iniciado do que o era sobre as propriedades do fluido elétrico, tivesse lançado um fio metálico através do oceano e estabelecido uma correspondência instantânea entre a Europa e a América, sem lhe indicar o processo; que teriam pensado dele?

Incontestavelmente teriam gritado milagre; ter-lhe-iam atribuído um poder sobrenatural; aos olhos de muita gente ele teria passado por feiticeiro e por ter o diabo às suas ordens. O conhecimento da lei da eletricidade reduziu esse suposto prodígio às proporções dos efeitos naturais. Assim com uma porção de outros fenômenos.

Mas são conhecidas todas as leis da Natureza? A propriedade de todos os fluidos? Não é possível que um fluido desconhecido, como por tanto tempo foi a eletricidade, seja a causa de efeitos inexplicados e produza, sobre a economia, resultados impossíveis para a Ciência, com o auxílio dos meios limitados de que dispõe? Pois bem! Aí está todo o segredo das curas mediúnicas, ou, melhor, não há segredo, pois o Espiritismo só tem segredos para os que não se dão ao trabalho de estudá-lo. Essas curas têm, muito simplesmente, por princípio uma ação fluídica dirigida pelo pensamento e pela vontade, em vez de o ser por um fio metálico.

Tudo está em conhecer as propriedades desse fluido, as condições em que pode agir, e o saber dirigir. Ademais, é preciso um instrumento humano suficientemente provido desse fluido, e apto a lhe dar a energia suficiente.

Esta faculdade não é privilégio de um indivíduo; porque está na Natureza, muitos a possuem, mas em graus muito diferentes, como todo o mundo a de ver, embora mais ou menos longe. No número dos que dela são dotados, alguns agem com conhecimento de causa, como o zuavo Jacob; outros à sua revelia, e sem se dar conta do que neles se passa; sabem que curam, e eis tudo. Perguntai-lhes como, e nada sabem. Se são supersticiosos, atribuirão seu poder a uma causa oculta, à virtude de algum talismã ou amuleto que, na realidade, para nada servem. Dá-se o mesmo com todos os médiuns inconscientes, e seu número é grande.

Inúmeras pessoas são, elas próprias, a causa primeira dos efeitos que as surpreendem e que não sabem explicar. Entre os negadores mais obstinados muitos são médiuns sem o saber.

Diz o jornal em questão:

 

As curas obtidas pelo zuavo espírita não se operam senão sobre as moléstias do sistema nervoso; são devidas à influência da imaginação, constatada por grande número de fatos; houve dessas curas na Antiguidade, como nos tempos modernos; assim, nada têm de extraordinário.

 

Dizendo que o Sr. Jacob só curou afecções nervosas o autor se adianta um tanto levianamente, porque os fatos contradizem essa afirmação. Mas admitamos que seja assim; essas espécies de afecções são inumeráveis e precisamente destas em que a Ciência é, o mais das vezes, forçada a confessar a sua impotência.

Se, por um meio qualquer, dela se pode triunfar, não é um resultado importante? Se este meio estiver na influência da imaginação, que importa? Por que o negligenciar? Não é melhor curar pela imaginação do que não curar absolutamente? Contudo, parece-nos difícil que só a imaginação, ainda que excitada no mais alto grau, possa fazer andar um paralítico e retificar um membro ancilosado.

Em todo o caso, uma vez que, segundo o autor, curas de doenças nervosas em todos os tempos foram obtidas por influência da imaginação, os médicos são menos desculpáveis por se obstinarem em empregar meios impotentes, quando a experiência lhes mostra outros eficazes. Sem o querer, o autor os ataca.

Mas, diz ele, o Sr. Jacob não cura todo o mundo. É possível e mesmo certo. Mas, o que isto prova? Que ele não tem um poder curador universal. O homem que tivesse tal poder seria igual a Deus, e o que tivesse a pretensão de o possuir não passaria de um tolo presunçoso. Ainda que curasse apenas quatro ou cinco doentes em dez, reconhecidos incuráveis pela Ciência, já bastaria para provar a existência da faculdade. Há muitos médicos que possam fazer tanto?

Há muito tempo conhecemos pessoalmente o Sr. Jacob como médium escrevente e propagador zeloso do Espiritismo; sabíamos que havia feito alguns ensaios parciais de mediunidade curadora, mas parece que esta faculdade teve nele um desenvolvimento rápido e considerável durante sua estada no campo de Châlons. Um dos nossos colegas da Sociedade de Paris, o Sr. Boivinet, que reside no Departamento do Aisne, houve por bem nos enviar um relatório muito circunstanciado dos fatos que são de seu conhecimento pessoal. Seus profundos conhecimentos de Espiritismo, aliados a um caráter isento de exaltação e de entusiasmo, permitiram-lhe apreciar as coisas judiciosamente. Seu testemunho tem, pois, para nós, todo o valor de um homem honrado, imparcial e esclarecido, e seu relatório toda a autenticidade desejável. Temos, assim, os fatos atestados por ele como constatados, como se nós mesmos os tivéssemos testemunhado pessoalmente. A extensão desses documentos não nos permite publicá-los por inteiro nesta revista, mas nós os coordenamos para os utilizar posteriormente, limitando-nos por hoje a citar algumas de suas passagens essenciais:

 

...Com o intuito de bem justificar a confiança que depositastes em mim, informei-me, por mim mesmo e também por pessoas absolutamente honradas e dignas de fé, das curas bem constatadas, operadas pelo Sr. Jacob. Aliás, essas pessoas não são espíritas, o que tira às suas afirmações toda suspeita de imparcialidade em favor do Espiritismo.

Reduzo de um terço as apreciações do Sr. Jacob quanto ao número dos doentes por ele recebidos; mas parece que estou aquém, talvez muito aquém da verdade, estimando esta cifra em 4.000, sobre os quais um quarto foi curado e três quartos aliviados. A afluência era tal que a autoridade militar se inquietou, interditando as visitas futuras. Sei pelo próprio chefe da estação que o trem de ferro transportava diariamente massas de doentes ao campo.

Quanto à natureza das doenças sobre as quais exerceu mais particularmente a sua influência, é-me impossível dizê-lo. São, sobretudo, os enfermos que se dirigiram a ele e, por conseguinte, são eles que figuram em maior número entre seus clientes satisfeitos; mas muitos outros aflitos poderiam apresentar-se a ele com sucesso.

Foi assim que em Chartères, vilarejo bem próximo daquele em que habito, vi e revi um homem de cerca de cinquenta anos que, desde 1856, vomitava tudo o que comia. No momento em que foi ver o zuavo, tinha partido muito doente e vomitava pelo menos três vezes ao dia. Vendo-o, o Sr. Jacob lhe disse: ‘Estais curado!’ E, durante a sessão, convidou-o a comer e beber. O pobre camponês, dominando sua apreensão, comeu e bebeu e não se sentiu mal. Há mais de três semanas que não sente o menor mal-estar. A cura foi instantânea. Inútil acrescentar que o Sr. Jacob não o fez tomar qualquer medicamento, nem lhe prescreveu nenhum tratamento. Somente a sua ação fluídica, como uma comoção elétrica, tinha bastado para restituir os órgãos ao seu estado normal.

 

Observação – Esse homem é dessas naturezas rudes, que se exaltam muito pouco. Se, pois, uma só palavra tivesse bastado para superexcitar sua imaginação a ponto de curar instantaneamente uma gastrite crônica, seria preciso convir que o fenômeno fosse ainda mais surpreendente que a cura, e bem merecesse alguma atenção.

A filha do dono do ‘hotel de la Meuse’, em Mourmelon, doente do peito, estava tão fraca a ponto de não poder deixar o leito. O zuavo a convidou a levantar-se, o que ela fez imediatamente; para estupefação dos numerosos espectadores, desceu a escada sem ajuda e foi passear no jardim com seu novo médico. Desde esse dia a moça passa bem. Não sou médico, mas não creio que esta seja uma doença nervosa.

 

O Sr. B..., gerente de pensão, que dá pulos à ideia da intervenção dos Espíritos no assunto, contou-me que uma senhora, há muito doente do estômago, tinha sido curada pelo zuavo e que, desde então, tinha engordado notavelmente, cerca de vinte libras.

 

Observação – Esse senhor, que se exaspera à ideia da intervenção dos Espíritos, não ficaria muito contrariado, quando, estando morto, seu próprio Espírito pudesse vir assistir as pessoas que lhe são caras, curá-las e lhes provar que ele não está perdido para elas?

 

Quanto aos enfermos propriamente ditos, os resultados por eles obtidos são mais estupefacientes, porque o olho aprecia imediatamente os resultados.

Em Treloup, vilarejo situado a 7 ou 8 quilômetros daqui, um velho de setenta anos estava entravado e nada podia fazer. Deixar sua cadeira era quase impossível. A cura foi completa e instantânea. Ontem ainda me falavam do caso. Pois bem! Diziam-me, eu o vi, o pai Petit; ele ceifava!

Uma mulher de Mourmelon tinha a perna tolhida, imobilizada; o joelho estava à altura do estômago. Agora anda e passa bem.

 No dia em que o zuavo foi interdito, um pedreiro percorreu exasperado o Mourmelon, dizendo que queria enfrentar os que impediam o médium de trabalhar. Esse pedreiro tinha os dois punhos voltados para o interior dos braços. Hoje os seus punhos se movem como os nossos e ganha dois francos a mais por dia.

Quantas pessoas chegaram carregadas e puderam voltar sozinhas, tendo recuperado o uso de seus membros durante a sessão!

Uma criança de cinco anos, trazida de Reims, que nunca tinha andado, andou imediatamente.

O fato seguinte foi, a bem dizer, o ponto de partida da faculdade do médium, ou, pelo menos, o exercício público dessa faculdade, tornada notável:

Chegando a Ferté-sous-Jouarre, e dirigindo-se para o campo, o regimento de zuavos estava reunido na praça pública.

Antes de dispersar os soldados, a banda executa um trecho musical.

No número dos espectadores achava-se uma menina num carrinho, empurrado pelos pais. A menina foi apontada ao zuavo por um de seus camaradas. Terminada a música, ele se encaminha para ela e, dirigindo-se aos pais, lhes pergunta: Então esta menina é doente? – Ela não pode andar, responderam-lhe. Há dois anos tem na perna um aparelho ortopédico. – Tirai, então, o aparelho; ela não precisa mais dele. Isto foi feito, não sem alguma hesitação, e a menina andou. Então foram ao café e o pai, louco de alegria, queria que o homem dos refrescos trouxesse todo o seu estoque, para que os zuavos bebessem.

 

Agora vou dizer como o médium procedia, isto é, vou relatar uma sessão, à qual não assisti, mas que me foi detalhada por vários doentes.

 

O zuavo faz entrarem os doentes. As dimensões do local determinam o seu número. Assim, ao que afirmam, teve de transferir-se do ‘hotel de l’Europe’, onde não podia admitir senão dezoito pessoas, por vez, para o ‘hotel de la Meuse’, onde era possível admitir vinte e cinco a trinta. Entram. Os que moram nas regiões mais afastadas são geralmente convidados a vir primeiro. Certas pessoas querem falar: ‘Silêncio! Diz ele; os que falarem eu os... ponho na rua!’ Ao cabo de dez a quinze minutos de silêncio e de imobilidade geral, ele se dirige a alguns doentes, raramente interroga, mas lhes diz o que sofrem. Depois, caminhando ao longo da grande mesa, em torno da qual estão sentados os doentes, fala a todos, mas sem ordem; toca-os, mas sem gestos que lembrem os dos magnetizadores; depois despede todos, dizendo a uns: ‘Estais curados; ide embora;’ a outros: ‘Curareis sem nada fazer; apenas tendes fraqueza;’ a alguns, mais raramente: ‘Nada posso por vós.’ Querem agradecer e ele responde muito militarmente, que nada há que agradecer e põe os clientes para fora. Às vezes lhes diz: ‘É à Providência que deveis dirigir os vossos agradecimentos.’

No dia 7 de agosto uma ordem do marechal veio interromper o curso das sessões. Logo após a interdição, e visto a enorme afluência dos doentes em Mourmelon, tiveram de empregar a respeito do médium um meio sem precedentes. Como não havia cometido nenhuma falta e observava a disciplina com muito rigor, não podiam prendê-lo. Contrataram um plantonista para o seguir a toda parte e impedir que alguém se aproximasse dele, fosse quem fosse.

Disseram-me que todas essas curas seriam toleradas, desde que a palavra Espiritismo não fosse pronunciada, e não creio que o Sr. Jacob o tenha feito. Foi a partir desse momento que usaram de rigor contra ele.

De onde vem o pavor que causa o simples nome do Espiritismo, mesmo quando só faz o bem, consola os aflitos e alivia a Humanidade sofredora? De minha parte, creio que certa gente tem medo que ele faça muito bem.

Nos primeiros dias do mês de setembro o Sr. Jacob quis vir passar dois dias em minha casa, em cumprimento de uma promessa eventual que me fizera no campo de Châlons. O prazer que tive em recebê-lo foi decuplicado pelos serviços que pôde prestar a bom número de infelizes. Depois de sua partida, quase diariamente eu me punha ao corrente do estado dos doentes tratados e a seguir vos dou o resultado de minhas observações. A fim de ser exato como um levantamento estatístico, e a título de informações ulteriores, se for o caso, aqui os inscrevo nominalmente. (Segue uma lista de trinta e poucos nomes, com designação da idade, da doença e do resultado obtido).

O Sr. Jacob é sinceramente religioso. O que eu faço, dizia-me ele, não me surpreende. Eu faria coisas muito mais extraordinárias e não ficaria mais espantado, porque sei que Deus pode o que quiser. Só me admiro de uma coisa: é ter tido o imenso favor de ter sido o instrumento que ele escolheu. Hoje ficam admirados do que obtenho, mas quem sabe se num mês, num ano, não haverá dez, vinte, cinquenta médiuns como eu e mais fortes que eu? O Sr. Kardec, que procura e deve procurar estudar fatos como os que aqui se passam, deveria ter vindo. Hoje, amanhã, posso perder a minha faculdade, o que para ele seria um estudo perdido; ele deve fazer o histórico de semelhantes fatos.

 

OBSERVAÇÃO

Sem dúvida nos teríamos sentido feliz em testemunhar os fatos relatados acima, e provavelmente teríamos ido ao campo de Châlons, se tivéssemos tido a possibilidade e se tivéssemos sido informado em tempo hábil. Só o soubemos por via indireta dos jornais, quando estávamos em viagem e confessamos não ter uma confiança absoluta em seus relatos. Teríamos muito que fazer se fosse necessário ir pessoalmente controlar tudo o que relatam do Espiritismo, ou mesmo tudo quanto nos é assinalado por nossa correspondência. Ali só podíamos ir com a certeza de não ter uma decepção, e quando o relato do Sr. Boivinet nos chegou, o campo estava interdito. Aliás, a vista desses fatos nada nos teria ensinado de novo, pois cremos compreendê-los. Teria sido simplesmente constatar a sua realidade. Mas o testemunho de um homem como o Sr. Boivinet, ao qual tínhamos mandado uma carta para o Sr.Jacob, pedindo que nos instruísse do que teria visto, nos bastava completamente. Não houve, pois, perda para nós, senão o prazer de ter visto pessoalmente o Sr. Jacob trabalhando, o que, esperamos, tanto poderá acontecer no campo de Châlons quanto em outro lugar.

Assim, só falamos das curas do Sr. Jacob porque são autênticas. Se nos tivessem parecido suspeitas, ou eivadas pelo charlatanismo ou por uma bazófia ridícula, que as tivessem tornado mais prejudiciais do que úteis à causa do Espiritismo, nós nos teríamos abstido, a despeito do que tivessem dito, como o fizemos em várias outras circunstâncias, pois não queremos passar como editor responsável por nenhuma excentricidade, nem secundar as vistas ambiciosas e interesseiras, que por vezes se ocultam sob aparências de devotamento. Eis por que somos circunspectos em nossas apreciações dos homens e das coisas, e também porque nossa Revista não se transforma em incensório em proveito de ninguém.

Mas aqui se trata de uma coisa séria, fecunda em resultados, e capital no duplo ponto de vista do fato em si e da realização de uma das previsões dos Espíritos. Com efeito, desde longa data eles anunciaram que a mediunidade curadora se desenvolveria em proporções excepcionais, de modo a chamar a atenção geral, e nós cumprimentamos o Sr. Jacob por ser um dos primeiros a dar o exemplo. Mas aqui, como em todos os gêneros de manifestações, para nós a pessoa se apaga diante da questão principal.

Desde que o dom de curar não é o resultado do trabalho, nem do estudo, nem de um talento adquirido, aquele que o possui não pode dele vangloriar-se. Louva-se um grande artista, um sábio, porque devem o que são aos próprios esforços. Mas o médium mais bem-dotado não passa de um instrumento passivo, de que os Espíritos se servem hoje e podem deixar amanhã. Que seria o Sr. Jacob se perdesse sua faculdade, que ele é prudente em prever? O que era antes: o músico dos zuavos; ao passo que, aconteça o que acontecer, sempre restará ao sábio a Ciência e ao artista o talento. Somos felizes por ver o Sr. Jacob partilhar destas ideias; por conseguinte, não é a ele que se dirigem estas reflexões.

Não temos dúvida de que ele será igualmente de nossa opinião, quando dissermos que o que constitui um mérito real num médium, o que se pode e deve louvar com razão, é o emprego que faz de sua faculdade; é o zelo, o devotamento, o desinteresse com os quais se põe a serviço daqueles a quem ela pode ser útil; é ainda a modéstia, a simplicidade, a abnegação, a benevolência que transpiram em suas palavras e que todas as suas ações justificam, porque essas qualidades lhe pertencem como coisa particular.

Assim, não é o médium que se deve pôr num pedestal, do qual amanhã poderá descer, mas o homem de bem, que sabe tornar-se útil sem ostentação e sem proveito para a sua vaidade.

O desenvolvimento da mediunidade curadora forçosamente terá consequências de alta gravidade, que serão objeto de um exame especial e aprofundado em próximo artigo.

Allan Kardec



[1] Soldado argelino de origem cabila, de um corpo de infantaria francesa baseado em África, com um uniforme vistoso característico. = ZUAGO - Dicionário Priberam da Língua Portuguesa

[2] Revista Espírita – Outubro/1866 – Allan Kardec

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