quarta-feira, 31 de janeiro de 2018

Entre a pureza da ortodoxia e a salada mística: o que estamos fazendo com o Espiritismo?[1]



Dora Incontri[2] - Publicado em 2 de Julho de 2017
Associação Brasileira de Pedagogia Espírita


Vários articulistas já manifestaram aqui suas posições a respeito desse polêmico assunto: pureza doutrinária. Chegou a minha vez de dizer algo a respeito.
Em primeiro lugar, é preciso esclarecer (ou resgatar) alguns conceitos básicos do Espiritismo:
Não se trata de uma revelação sagrada, por isso considero muito problemática a denominação das obras de Kardec de o “pentateuco espírita”.
Os livros de Kardec não são como a Bíblia é para os fundamentalistas cristãos – palavra de Deus, revelada, que pode ser citada como fonte de autoridade absoluta.
A obra de Kardec é de pesquisa, em que encarnados e desencarnados participaram da construção.
Justamente uma das grandes contribuições de Kardec foi dessacralizar a revelação.
E ele fez isso estabelecendo um método de pesquisa dos fenômenos espíritas, uma abordagem nova da vida espiritual, com racionalidade crítica e observação empírica.
Então, conservar-se fiel à obra de Kardec é muito mais conhecer, entender, aprofundar e mesmo desdobrar com os recursos atuais, o método criado por ele.
E foi criado por ele e não pelos Espíritos! Esses são na verdade ao mesmo tempo o objeto de estudo e os cooperadores de Kardec.
O conteúdo do Espiritismo está sujeito à revisão, reelaboração e leituras históricas (compreendendo que algumas coisas que estão nas obras de Kardec são próprias do século XIX, têm uma influência da cultura europeia da época).
O próprio fundador do Espiritismo não o queria fechado, num corpo de dogmas, a que leitores futuros teriam que se submeter cegamente.
O tempo inteiro, Kardec alerta para o aspecto científico de sua proposta, cujas hipóteses poderiam ser revistas.
Mas é claro que encarar o Espiritismo como um pensamento aberto, em constante construção, porque se trata de um pensamento racional, científico, sempre pronto ao diálogo com as descobertas da ciência e com os avanços culturais, não significa fazer dele uma colcha de retalhos, uma salada mística, incorporando modismos, novidades sem fundamento, práticas bizarras e ideias irracionais.
Então, podemos dizer a grosso modo que temos duas tendências predominantes no movimento espírita brasileiro atual:
Dos ortodoxos – vamos chamá-los assim – que não compreenderam o caráter dinâmico e aberto do Espiritismo (e muitos não compreenderam também o caráter fraterno da doutrina) e usam os textos de Kardec como argumento de autoridade, consideram suas obras como uma Bíblia.
Esses ortodoxos, que estão dentro das instituições estabelecidas “como movimento oficial” são em geral pessoas avessas ao diálogo, praticam a censura, a exclusão, não aceitam nenhum tipo de pensamento crítico e fazem uma reprodução pobre, descontextualizada, reacionária do texto de Kardec – que se torna um texto apostilado, interpretado apenas por um viés religioso, com muito pouca articulação racional e nenhum enraizamento científico.
Devo dizer que nós, da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita, apesar de mantermos um forte apelo à volta a Kardec, na linha de Herculano Pires, que temos um compromisso com pesquisa, filosofia e uma ética espírita, somos muitas vezes hostilizados ou silenciosamente excluídos por essa facção oficial, que se pretende ortodoxa.
Meus livros são censurados em muitos centros espíritas, a ABPE não é chamada a participar de grandes eventos federativos para falarmos sobre Educação, quando nós somos a entidade especializada no assunto, com uma produção reconhecida, inclusive academicamente. Mas somos críticos.
E para esse lado do movimento, quem critica é polêmico, persona non grata.
E assim, o Espiritismo vai se tornando nas mãos no movimento institucional, mais uma religião fechada, sem nenhum avanço.
Do outro lado, estão os adeptos do vale-tudo. New Age, autoajuda, cristais, livros mediúnicos com revelações estapafúrdias etc.
É a salada mística.
Para esses, atualizar Kardec é simplesmente esquecê-lo, ignorando seus critérios de racionalidade, coerência e busca metódica da verdade.
Mas é claro que esses criticam os ortodoxos e os ortodoxos os excluem sem pena.
E quais as motivações emocionais, inconscientes (ou conscientes) que estão por trás dos dois grupos?
No primeiro, a motivação é o poder – querem um movimento hierarquizado, que não debate, que não dá espaço para contestação (por mais qualificada que seja a pessoa que conteste), que se mantém sempre acrítico.
E devo dizer, que embora esses se digam os reais seguidores de Kardec, não o compreenderam nem pela rama, pois falta de diálogo é falta de humildade, falta de criticidade é dogmatismo, exclusão é falta de fraternidade.
Portanto, nada disso é espírita.
No segundo grupo, a motivação é o comércio: médiuns que viram terapeutas holísticos, médiuns que se pretendem gurus em todos os assuntos.
Livros que vendem às pencas nas grandes redes de livrarias e que mais parece ficção científica de mau gosto do que obras mediúnicas sérias, comprometidas com o esclarecimento e a edificação dos leitores.
Então, logo se vê que, como dizia Kardec: contra interesses, não há fatos que convençam.
Quando a motivação é o poder, a vaidade, a projeção pessoal ou o lucro financeiro, pura e simplesmente, não há verdadeiro amor ao Espiritismo, sincera busca da verdade, esforço sacrificial pela ideia, trabalho sério e profundo – mas de ambos os lados reina a mediocridade.
É claro que tudo isso faz parte do contexto em que vivemos no momento.
Todos os movimentos religiosos e espiritualistas têm alas fundamentalistas e alas de autoajuda light.
Tem aqueles que desejam reter o movimento numa redoma de ideias fechadas e os que querem abrir, sem nenhum critério, a não ser o critério comercial.
Isso tudo em relação às posições existentes no momento espírita atual.
Há muitos desgarrados, insatisfeitos, críticos em relação a ambos os lados e são para essas pessoas que nós, da ABPE, temos oferecido uma alternativa que não se pretende nem dogmática, nem superficial e descomprometida com a verdade (ou a sua busca, pois estamos ainda muito aquém de verdades definitivas).
Há duas coisas que deveriam unir todos os espíritas: o elo de fraternidade e o compromisso com a busca isenta e desinteressada da verdade.
Podemos nos enganar, e as verdades por enquanto são relativas, mas por isso mesmo, temos que aprender a dialogar com o outro e temos que fazer um processo de autoconhecimento (aconselho inclusive com terapia) para observarmos em nós as paixões, as inclinações, as motivações obscuras que possam estar nos guiando em nossas atitudes em relação a essa ideia tão bela e fecunda, tão libertária e progressista, que se chama Espiritismo.
Portanto, nem pureza ortodoxa, nem salada mística, mas estudo sério, aprofundado das obras de Kardec, diálogo aberto, civilizado, amistoso, desinteresse real, fraternidade – eis o que proponho aqui, para encerrar por enquanto, esse debate em nosso blog.




[2] Dora Incontri (São Paulo, 1962) é educadora, jornalista, poetisa e escritora brasileira; autora de mais de 40 obras publicadas, dentre elas livros didáticos de filosofia e ensino inter-religioso.
É mestre, doutora e pós-doutora em História e Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo.
Também é um importante nome da pedagogia espírita e coordena um curso de Pós-Graduação Latu-Senso nessa área, pela Universidade Livre Pampédia, de que é idealizadora e coordenadora.
A Universidade Livre Pampédia é um projeto alternativo de educação superior, com sede em Bragança Paulista.
É também coordenadora da Associação Brasileira de Pedagogia Espírita.
É uma das divulgadoras do pensamento de Jan Amos Comenius (1.592 - 1.670, bispo protestante da Igreja Morávia, educador, cientista e escritor checo; como pedagogo, é considerado o fundador da didática moderna) no Brasil.
Em 1998 fundou a Editora Comenius e já publicou duas obras clássicas desse autor no Brasil: Pampédia (ou da Educação Universal) e O Labirinto do Mundo e o Paraíso do Coração.
Em 2014, foi agraciada com a medalha Comenius, do Museu Comenius, da República Checa.
É uma das poucas estudiosas do educador Johann Heinrich Pestalozzi (1.746 - 1.827, um pedagogo suíço e educador pioneiro da reforma educacional) no Brasil e também é uma notória estudiosa de seu discípulo Allan Kardec (pseudônimo de Hippolyte Léon Denizard Rivail, 1.804 - 1.869, influente educador, autor e tradutor francês; notabilizou-se como o codificador da Doutrina Espírita), o "fundador" do Espiritismo.

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

A Reencarnação na América[1]



Muitas vezes as pessoas se admiram de que a doutrina da reencarnação não tenha sido ensinada na América, e os incrédulos não deixam de aproveitar o fato para acusarem os Espíritos de contradição. Não repetiremos aqui as explicações que nos foram dadas e que publicamos a respeito, limitando-nos a lembrar de que nisto os Espíritos mostraram a sua prudência habitual; quiseram que o Espiritismo surgisse num país de liberdade absoluta, quanto à emissão de opiniões.
O ponto essencial era a adoção do princípio e para isto não quiseram ser incomodados de maneira alguma. O mesmo não haveria de dar-se com todas as suas consequências, sobretudo com a reencarnação, que se teria chocado contra os preconceitos da escravidão e da cor. A ideia de que um negro pudesse tornar-se um branco; de que um branco poderia ter sido um negro; de que um senhor tivesse sido um escravo poderia parecer de tal forma monstruosa que seria suficiente para que o resto fosse rejeitado. Assim, os Espíritos preferiram sacrificar momentaneamente o acessório ao principal e sempre nos disseram que, mais tarde, a unidade se faria sobre este como sobre todos os outros pontos. De fato, é o que começa a ocorrer. Várias pessoas daquele país nos disseram que agora essa doutrina conta ali numerosos partidários; que certos Espíritos, depois de fazer com que fosse pressentida, vêm confirmá-la. Eis o que a respeito nos escreveu de Montreal (Canadá), o Sr. Fleury Lacroix, natural dos Estados Unidos.
“(...) A questão da reencarnação, da qual fostes o primeiro promotor visível, aqui nos tomou de surpresa. Hoje, porém, estamos reconciliados com ela, com esse filho do vosso pensamento. Tudo se tornou compreensível por esta nova claridade e agora a estrada eterna se nos descortina um pouco mais longe. Entretanto, isto nos parecia absurdo, como dizíamos no começo; mas se hoje negamos, amanhã acreditamos – eis a Humanidade. Felizes os que querem saber, porque a luz se fará para eles; infelizes os outros, porquanto permanecerão nas trevas”.
Assim, foi a lógica e a força do raciocínio que os levou a essa doutrina; e, também, porque nela encontraram a única chave que poderia resolver problemas até então insolúveis. Todavia, o nosso honrado correspondente equivoca-se quanto a um fato importante, ao atribuir-nos a iniciativa desta doutrina, que chama de filho do nosso pensamento. É uma honra que não nos pertence: além de ser ensinada a nós, a reencarnação foi ensinada pelos Espíritos a outros indivíduos, antes da publicação de O Livro dos Espíritos. Além disso, seu princípio foi claramente exposto em várias obras anteriores, não apenas nas nossas e até nas que surgiram antes do aparecimento das mesas girantes; entre outras em “Céu e Terra”, de Jean Raynaud, e num encantador livrinho do Sr. Louis Jourdan, intitulado “Preces de Ludovico”, publicado em 1849, sem contar que esse dogma era professado pelos druidas, aos quais, por certo, nós não ensinamos[2]. Quando ele nos foi revelado ficamos surpresos e o acolhemos com reserva e desconfiança; chegamos mesmo a combatê-lo durante algum tempo, até que sua evidência nos fosse demonstrada. Assim, nós o aceitamos e não o inventamos, o que é bem diferente.
Isto responde à objeção de um de nossos assinantes, o Sr. Salgues (de Angers), antagonista confesso da reencarnação, o qual pretende que os Espíritos e os médiuns que a ensinam sofrem a nossa influência, pois aqueles que com ele se comunicam dizem o contrário. Aliás, o Sr. Salgues alega contra a reencarnação objeções especiais, das quais faremos, oportunamente, objeto de exame particular. Enquanto esperamos, constatamos um fato: o número de seus partidários cresce sem cessar, enquanto o dos adversários diminui. Se tal resultado se deve à nossa influência, atribuem-nos uma muito grande, visto que ela se estende da Europa à América, da Ásia à África e até à Oceania. Se a opinião contrária é a verdadeira, como se explica que não tenha prevalecido? Seria o erro, então, mais poderoso que a verdade?




[1] Revista Espírita – Fevereiro/1862 – Allan Kardec.
[2] Vide a Revista Espírita de abril de 1858, O Espiritismo entre os druidas; artigo que contém as Tríades.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

EPES SARGENT[1]



Nascido no dia 27 de setembro de 1813, na cidade de Gloucester, Massachusetts, Estados Unidos, e desencarnado a 30 de dezembro de 1880.
Era filho do mestre-de-navios Epes Sargent e de Hannah Dane Coffin e pertencia à linhagem de William Sargent, a quem o governo havia concedido a posse de terras na região de Gloucester, no ano de 1678. Seus ancestrais foram John Winthroup e Joseph Dudley, antigos governantes da colônia inglesa de Massachusetts.
Transferindo seu domicílio de Gloucester para Roxbury, nas vizinhanças de Boston, no ano de 1818, o genitor de Epes Sargent ali se dedicou ao comércio, no que não foi muito feliz, retornando à sua antiga cidade, onde se dedicou novamente à pesca, como fazia anteriormente.
Esse descontrole financeiro, no entanto, não afetou o aculturamento dos filhos, principalmente por ver em Epes Sargent um jovem superdotado de inteligência. Por isso matriculou-o na "Escola Latina de Boston", onde ele revelou invulgar tendência para a literatura, tendo-se graduado em 1829. Nessa época visitou a Rússia em companhia de seu pai.
Atingindo a idade dos trinta anos, fez parte do corpo redatorial de importantes periódicos editados na época. Posteriormente tornou-se correspondente político do "Boston Daily Atlas", em Washington.
Na capital norte-americana, teve a oportunidade de contrair a amizade de numerosos políticos, especialmente de membros do Partido Liberal Whig, aproveitando o ensejo para publicar, em 1848, o seu notável livro "A Vida e os Serviços Públicos de Henry Clay". Logo a seguir lançou a obra "A Noiva de Gênova" e a tragédia "Velasco", escrita também em 1837 e lançada em 1839.
Nessa época partiu para Nova Iorque, onde permaneceu durante oito anos, trabalhando no célebre jornal "The New York Mirror", fazendo parte, logo a seguir, no "The New World" e do "New Monthly Magazine". Não demorou muito e lançou o seu próprio jornal "Sargenfs New Monthly Standard", que teve vida efêmera.
Retornando a Boston, em 1847, participou do corpo redatorial de numerosos órgãos publicitários, dentre eles o "Boston Evening Transcript", "The School Monthly", "The Knickerbocker Magazine" e "The Atlantic Monthly". Justamente no ano em que regressou a Boston, deu à publicidade o seu melhor volume de versos, intitulado "Canções do Mar, com outros Poemas".
Sargent casou-se a 10 de maio de 1848, com Elisabeth W. Weld, de Roxbury, não tendo tido descendentes diretos.
As suas atividades no campo educacional foram de grande relevância. Escreveu uma quantidade apreciável de obras destinadas a estudantes e professores, tendo mesmo sido catalogado como educador emérito, tornando-se famoso em toda a América do Norte, na segunda metade do século passado. A sua obra "The Standard Speaker", publicada em Filadélfia no ano de 1852, alcançou mais de sessenta edições. De 1852 a 1873 escreveu numerosos compêndios e manuais de instrução, os quais foram largamente adotados nos colégios e escolas dos Estados Unidos. Paralelamente publicou, no ano de 1858, outra coleção de "Poemas", com 300 páginas e, em 1870, a narrativa em versos, com o título "The Women who dared", sem contar outras obras de inquestionável valor.
Em 1859 traduziu e publicou no jornal "The Press", o escrito de Tomás Celano, notável escritor franciscano, sob o título "Dies Irae".
Além do elevado número de obras por ele divulgadas, deve-se acrescentar que muitos dos seus escritos foram publicados anonimamente, deixando por isso de ser registrados em enciclopédias.
Nos últimos vinte ou trinta anos de sua fértil existência, Epes Sargent se interessou pelo Espiritismo, estudando-o profundamente após ter sido um dos que combateram e repudiaram os insólitos fenômenos ocorridos em Hydesville e Rochester, através das médiuns Leah, Margareth e Katherine Fox.
Manteve correspondência epistolar com numerosos dirigentes espíritas dos Estados Unidos e da Europa. Escreveu elevado número de artigos para as publicações que então se ocupavam da matéria. Foram também de sua autoria as seguintes obras versando sobre Espiritismo: "Revelações do Grande Mistério Moderno — Pranchetas, com teorias sobre as mesmas" (Boston, 1869), "Prancheta, ou o Desespero da Ciência face ao Espiritismo" (Boston e Londres, 1869), "A Prova Palpável da Imortalidade" (Boston, 1875). Nessa última obra, ele descreve os fenômenos de materialização e tece comentários, analisando o Espiritismo em face da Teologia, da Moral e da Religião.
Finalmente, escreveu a sua obra mais importante: "Bases Científicas do Espiritismo[2]" (Boston, 1880), tratado de inegável valor sobre o aspecto científico da doutrina.
Em 1868 havia contraído uma afecção brônquica de que nunca mais ficou livre. No ano de 1872 visitou a Europa, permanecendo algum tempo no sul da França. Como que pressentindo o seu próximo desenlace, pois sua saúde se agravava continuamente, trabalhou de forma intensa no afã de terminar "The Scientific Basis of Spiritualism". Finalmente foi acometido de um câncer na boca, o qual se propagou rapidamente, impedindo sua manifestação oral e debilitando sua saúde. No dia 30 de dezembro de 1880, seu Espírito partiu rumo à verdadeira pátria, consciente de ter desempenhado relevante obra na face da Terra.
Epes Sargent foi um homem dotado de talento fora do comum. Sua operosidade foi das mais marcantes, tendo merecido de Edgar Allan Poe, que havia tomado conhecimento dos seus escritos anteriores a 1849, as seguintes palavras: "É um dos mais preeminentes membros da extensíssima família Americana — a dos homens de engenho, talento e tato".




[1] Personagens do Espiritismo - Antônio de Souza Lucena e Paulo Alves Godoy
[2] Traduzido pela Federação Espírita Brasileira

sábado, 27 de janeiro de 2018

Onde estão os teus mortos?[1]



“O coração não pode errar. A carne é um sonho; ela se dissipa.

Se esse desaparecimento fosse o fim do homem, tiraria à nossa existência toda sanção.

Não nos contentamos com esta fumaça que é a matéria; precisamos de uma certeza.

Quem quer que ame, sabe e sente que nenhum dos pontos de apoio do homem está na Terra.

Amar é viver além da vida. Sem essa fé, nenhum dom perfeito do coração seria possível;

Amar, que é o objetivo do homem, seria o seu suplício.

O paraíso seria o inferno. Não! Digamos bem alto, a criatura amante exige a criatura imortal.

O coração necessita da alma”. (Victor Hugo)


Para que nos lembremos uns dos outros,

Bastam as nossas dores como são,

Uma pequena cruz, um nome e a relva verde e mansa,

Que nos falem de paz e de esperança

Na saudade sem fim do coração . (Maria Dolores[2])


A crença da morte como o fim de toda existência é um delírio criado pela condição dos vivos encerrados na carne, com suas limitadíssimas capacidades sensoriais. Não se deve senão culpar a essa limitação material toda dificuldade presente em apreciar verdadeiramente a vida futura. Essa restrição é necessária para que a experiência do Espírito imortal se restrinja temporariamente àquela determinada pelos sentidos do corpo limitado. É um delírio quase que perpétuo na mente dos que ficam, para sempre destinados ao fim porque seus corpos não permitem ver mais além.
Ainda assim, nossos antepassados em todos os tempos intuíram a continuidade da vida além da morte. A prova disso está na presença da religião, desde os tempos mais primitivos, como uma forma de se cultuar os mortos. O culto aos "antepassados e aos mortos" esteve na origem de todas as crenças antigas[3]. Mas, desde uma perspectiva antropológica moderna, incapaz de perceber essa realidade e desprezando as evidências do Espiritismo ‒ que está na origem de todas as religiões ‒ a crença na vida maior é uma resposta meramente psicológica do homem à ameaça representada pela morte do rompimento de seus laços terrenos, suas amizades, sua família, sua segurança doméstica e social. A única realidade estaria no niilismo e no materialismo. Como colocou o sociólogo Zygmund Bauman (1925-2017):
As sociedades (modernas) existem para esconder de seus integrantes o fato real da morte como o fim da vida. Pois se as pessoas percebessem que vida não tem sentido, perderiam toda esperança e abandonariam definitivamente a vida que têm[4].
Felizmente, isso não acontece de forma generalizada ‒ embora represente a força principal que motiva os que tentam o suicídio todos os dias ‒ porque a grande maioria das pessoas traz inconscientemente uma noção ainda que precária da vida maior, renovada todos os dias durante o sono.
Adquire relevância incomparável assim todos os esforços de pesquisa passados e presentes para demonstrar a comunicação dos espíritos, a ampliação dos sentidos humanos libertos dos laços materiais e as provas da imortalidade. Elas representam a única saída para a mente racional quando confrontada com a morte e seu fim aparente.
Não foi por mera coincidência que a fenomenologia espírita se desenvolveu a partir de 1850, numa época marcada como o apogeu do materialismo. Esse desenvolvimento foi a resposta da providência ao espírito questionador do tempo moderno que zombava das religiões desgastadas pelos excessos de crenças inúteis e contrárias à razão. É como se uma resposta fosse dada aos que acreditavam Deus estar morto, confirmando a precariedade das religiões instituídas ‒ sim porque a alma sobrevive, mas não está condenada eternamente ‒ e ao mesmo tempo reafirmasse a razão última de todos os credos, a existência de um Deus como causa primária de todas as coisas e uma vida real além daquela experimentada pelos sentidos restritos do corpo.
A morte encerra a verdadeira vida em si como um dos seus mais bem guardados mistérios. Os teus mortos estão vivos. Se hoje deles guardamos alguma lembrança, incapazes ainda de entrar em comunicação direta com os nossos mortos, guardamos igualmente a certeza que nos reuniremos inexoravelmente a eles um dia. Por hora apenas a certeza intelectual e intuitiva da sobrevivência, pontuada por inúmeras revelações e evidências constantemente desprezadas pela cultura do momento. Amanhã a certeza final pela prova definitiva dos sentidos do espírito imortal em sua caminhada sem fim.



[2] M. Dolores, Conversa no Campo Santo, "Dádivas de Amor", psicografia F. C. Xavier.
[3] R. A Segal (Ed.)(2006). The Blackwell companion to the study of Religion. Blackwell Publishing. Nessa referência, pode-se ler (p. 7):
De acordo com Spencer, a religião surgiu da observação que, nos sonhos, o eu deixa o corpo. A personalidade humana tem portanto aspecto dual e, depois da morte, o espírito ou alma continua a aparecer para os descendentes ainda vivos através dos sonhos. Fantasmas de ancestrais remotos ou personalidades famosas eventualmente adquiriram status de deuses. Tal era a crença entre os primeiros antropologistas. A situação mudou consideravelmente depois, entretanto.
[4] Citado em (2), p.236.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2018

Plástica no Corpo é conservada após a desencarnação?[1]


Fernando Rossit

Trata-se de dúvida recorrente dos alunos nas salas de aulas de Doutrina Espírita.
Poderá, sim, manter os benefícios da plástica, a depender, em primeiro lugar, da sua “beleza interior”.
Isso porque o exterior sempre reflete o interior, aqui na Terra e muito mais no Plano Espiritual.
A boa aparência do corpo espiritual após a desencarnação dependerá da posição espiritual do ser, do seu equilíbrio, da sua conduta aqui na Terra, enfim, da sua depuração.
A plástica realizada no corpo físico de nada valerá se o Espírito não tiver uma condição espiritual que o favoreça a assumir uma forma mais bela. Ação no Bem, responsabilidade pelos atos, consciência do dever cumprido são requisitos básicos que irão lhe garantir um períspirito, do ponto de vista espiritual, mais belo.
Os que atingem essa condição, por méritos próprios, quase sempre buscam adquirir, com o poder do seu pensamento, formas mais jovens e belas (ou outra qualquer que deseje ou se sinta bem).
Podemos “concluir que a operação plástica não muda nada. O que realmente interfere na estrutura e aparência do perispírito é a posição espiritual da alma. As ações no campo do bem ou do mal são, pois, determinantes na forma de apresentação do perispírito, entendendo-se por bem tudo aquilo que é feito em obediência à lei maior do amor universal” [2].
“No livro Carmelo por ele Mesmo, de Carmelo Grisi, recebido por Chico Xavier, temos o relato de exercícios mentais que são feitos na vida espiritual para favorecer o rejuvenescimento. No excelente livro Memórias de um Suicida, recebido por Ivonne Pereira, também há referências quanto à aparência do períspirito” 2.
Outrossim, no livro “Libertação” [3], de André Luiz, verificamos o caso de uma senhora que se apresentava muito bonita aos olhos humanos, mas que, ao afastar-se do corpo pelo sono, transfigurava-se numa mulher horrível, uma bruxa, revelando aos olhos dos Espíritos desencarnados a sua baixa condição espiritual.
A explicação para a estranha ocorrência foi clara: a referida senhora levava uma existência de futilidades, dissimulações e ações maléficas.
Vejamos um trecho, do cap. 10 do citado livro, sobre o caso em tela:
O homem e a mulher, com os seus pensamentos, atitudes, palavras e atos criam, no íntimo, a verdadeira forma espiritual a que se acolhem. Cada crime, cada queda, deixam aleijões e sulcos horrendos no campo da alma, tanto quanto cada ação generosa e cada pensamento superior acrescentam beleza e perfeição à forma perispirítica, dentro da qual a individualidade real se manifesta, mormente depois da morte do corpo denso.
Fonte: Agenda Espírita Brasil





[2] Marlene Nobre – trechos de texto do site da Associação Médico-Espírita.
[3] André Luiz/Chico Xavier, Libertação, cap. 10.

quinta-feira, 25 de janeiro de 2018

ANDAR COM FÉ EU VOU...[1]



Jorge Hessen - jorgehessen@gmail.com

“Andá com fé eu vou. Que a fé não costuma faiá”, diz o refrão da música do cantor Gilberto Gil.
Narra a carta aos Hebreus que a fé é o firme fundamento das coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não veem. Cremos que fé é a certeza da aquisição daquilo que se tem como finalidade.
Sem a fé racional, nas situações de crise, seja de ordem econômica ou agravamento da insegurança pública, as relações sociais, pessoais e familiares se deterioram. Diante das incertezas, é comum que o medo domine as mentes de uns ou de outros. Pensar que não se conseguirá enfrentar uma doença, lidar com os erros, a perda do emprego ou dos bens materiais amplia o temor de muitos. Surge o pânico nalguns ante a chegada da velhice, da solidão, da perda de um amor e assim por diante. Caminha o tímido sob a ansiedade e desconfortos psicológicos.
Os irrequietos, os estressados visitam, cinco vezes mais, médicos que uma pessoa normal. O sintoma crônico da ausência de fé e do medo estão gerando enigmas físicos e emocionais, tais como infarto do miocárdio, úlcera e insônia. Para nós, estudiosos do Espiritismo, sabemos que a solução para o enfrentamento dos embates da vida e do medo é o exercício da fé coerente, apontando-nos o rumo do equilíbrio emocional. É igualmente a certeza da reencarnação e a convicção da imortalidade que nos reforça o alimento da fé diante dos desafios do viver.
Fundamentalmente, a fé deve apoiar-se na razão sempre. Até porque a fé não é um dom fornecido por Deus para alguém em especial, nem deve ser imposta de fora para dentro. A fé é o produto da conquista pessoal na busca da compreensão do caminho correto, das verdades que permeiam a essência das próprias vidas, por meio do conhecimento, da experiência, das reflexões pessoais e pelo esforço que se faz para o auto-amor e por entender que o amor é a causa da vida, e a vida é o efeito desse amor.
Na mensagem de Jesus, aprendemos a lição da fé (transportadora de montanhas) da coragem, do otimismo, do bom senso capazes de renovar nossas tendências, impedindo que o medo, a depressão e a angústia se apossem de nosso cotidiano. Até porque “a fé não costuma faiá”.


Fonte: A Luz na Mente

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Kardec, 213 anos depois...[1]



Dora Incontri – publicada em 03 de outubro de 2017


Kardec permanece o grande desconhecido, como dizia Herculano Pires, pois sua proposta foi tão original, que pouca gente o entendeu até hoje. Nem adversários, nem adeptos, compreendem o que ele fez e propôs e tão pouco percebem a grandeza moral que mostrou em toda a sua vida.
Uma pessoa séria, devotada à educação das crianças e, depois, à educação da humanidade, um pensador crítico, aberto, perquiridor.
O que nos interessa aqui comentar é que Kardec não considerava suas obras uma revelação fechada, para ser entendida e acatada como algo sagrado e imutável. Na medida em que propunha ser o Espiritismo uma forma de ciência, baseada na observação, então, estaria sempre aberto a novas descobertas e a outros contextos históricos e culturais.
O problema é que alguns que se apegam a essa visão do Espiritismo como um corpo flexível de ideias, muitas vezes querem enxertar nele coisas sem pé nem cabeça, opiniões pessoais e atrativos comerciais.
Outros se fecham numa interpretação sacralizada das obras de Kardec, chamando-as de pentateuco, como se fosse uma reedição do Velho Testamento, com todas as características de um texto inquestionável.
Nem uma coisa, nem outra.
O Espiritismo deve avançar, mas avançar significa adotar o método, o cuidado, a dimensão cultural e pedagógica que Kardec usou para lançar seus fundamentos.
Kardec justamente foi a personalidade escolhida para a sua missão, pelo seu rigor, pela sua racionalidade, pela sua modéstia pessoal, nem um pouco interessado em conquistar seguidores cegos e bajuladores.
Para entendermos, porém, o seu percurso, como chegou à formulação dos princípios básicos do Espiritismo, temos que ler e estudar Kardec de cabo a rabo, todos os livros, incluindo a Revista Espírita. Não adianta querer conhecer Kardec em cursos apostilados, onde não temos leitura direta e aprofundada de suas obras.
Deixe-me explicar melhor. Quando estudamos resumos ou apostilas, livros supostamente didáticos de espiritismo, dá-se o seguinte problema: passamos a adotar princípios espíritas como dogmas, como coisas prontas e acabadas. Quando lemos Kardec no original (incluindo a Revista Espírita), vamos acompanhando o seu método, como ele chegou a tal ou qual conclusão. Observamos seus argumentos, como ele trabalhava com hipóteses, para depois confirmá-las e como ele deixa algumas coisas em aberto mesmo.
Essas apostilas/livros de estudo, que correm as casas espíritas do Brasil não são Kardec por ele mesmo, mas Kardec por um determinado viés. E o que é pior, nas referências bibliográficas e nas citações, ainda aparecem trechos de médiuns brasileiros, que não passaram pelo crivo da crítica racional, como queria Kardec que todos os textos mediúnicos passassem.
Então, para recuperarmos o espírito de Kardec e não a letra engessada, leiamos Kardec diretamente.
Além disso, entendamos que mesmo com a solidez de uma pesquisa bem feita, há coisas em Kardec que são do contexto histórico de sua época, que precisam ser lidas assim.
O que considero a melhor e maior contribuição de Kardec para a história da espiritualidade no planeta Terra é que pela primeira vez, a revelação é submetida a critérios de pesquisa e avaliação racional, (aliás, ela própria entendida de maneira muito mais ampla do que só a revelação religiosa, como Kardec bem explica em seu indispensável capítulo da Gênesis, Caracteres da Revelação Espírita).
Entendendo-se o Espiritismo como Kardec o entendia, trata-se de um pensamento aberto, em permanente construção, universalista (porque considera que a verdade está em toda parte). Mas em toda parte, ela deve ser fruto da pesquisa, da razão e da experiência subjetiva de cada um.
É também uma proposta humanista, de confiança na capacidade do ser humano, de se governar a si mesmo, dispensando gurus, mestres… a mediunidade democratizada, a ética clara e evidente, a reencarnação como chave de entendimento dos seres humanos, de maneira essencialmente igualitária e não o contrário.
Um pensamento com contribuições importantíssimas, um mestre que não se fez de mestre, um filósofo que não se aferrou a sistemas e um pesquisador que aliou sempre sua busca a uma dimensão moral e crítica. Pena que tão pouca gente entendeu!




terça-feira, 23 de janeiro de 2018

MANIFESTAÇÃO DO ESPÍRITO DOS ANIMAIS[1]

Cão da Raça Galgo

Escrevem-nos de Dieppe:

... Parece-me, caro senhor, que chegamos a uma época em que se devem realizar coisas incríveis. Não sei o que pensar de um dos mais estranhos fenômenos que acaba de ocorrer em minha casa. Nos tempos de cepticismo em que vivemos, dele não ousaria falar a ninguém, temendo que me tomassem por alucinado. Mas, caro senhor, com risco de trazer aos vossos lábios o sorriso da dúvida, quero contar-vos o fato. Aparentemente fútil, no fundo, talvez seja mais sério do que se poderia pensar.
Meu pobre filho, falecido em Boulogne-sur-Mer, onde continuava os estudos, tinha ganhado de um de seus amigos uma linda galga, que adestramos com extremo cuidado. Na sua espécie era a mais adorável criaturinha que se pudesse imaginar. Nós a queríamos como se ama tudo o que é belo e bom. Ela nos compreendia pelo gesto, pelo olhar. Tal era a expressão dos seus olhos que parecia fosse nos responder quando lhe dirigíamos a palavra.
 Depois da morte de seu jovem dono, a pequena Mika (era o seu nome) foi trazida para Dieppe e, conforme seu hábito, dormia bem agasalhada aos pés de minha cama. No inverno, quando o frio castigava muito, ela se levantava, dava um gemido baixinho de extrema doçura, o que era sua maneira habitual de formular um pedido e, compreendendo o que ela desejava, eu permitia que viesse pôr-se ao meu lado. Então ela se estendia como possível entre seus panos, com o focinho em meu pescoço, que usava como travesseiro, entregando-se ao sono como os felizes da Terra, recebendo meu calor, transmitindo-me o seu, o que aliás não me desagradava. Comigo a pobre pequenina passava dias felizes.
Mil coisas boas não lhe faltavam. Mas, em setembro último, adoeceu e morreu, malgrado os cuidados do veterinário a quem a confiei. Muitas vezes falávamos dela, minha mulher e eu, e a lamentávamos quase como se fora um filho amado, tanto ela tinha sabido, pela doçura, pela inteligência e por seu apego fiel, cativar-nos a afeição.
Ultimamente, pelo meio da noite, estando deitado, mas não dormindo, ouço partir dos pés de meu leito aquele gemidinho que soltava a pequena galga, quando queria alguma coisa. Fiquei de tal modo impressionado que estendi o braço fora do leito, como se a quisesse atrair para mim e julguei mesmo que ia sentir suas carícias. Ao me levantar de manhã, contei o fato à minha mulher, que me disse: “Ouvi a mesma voz, não uma, mas duas vezes. Parecia vir da porta de meu quarto. Meu primeiro pensamento foi que nossa pobre cadelinha não estava morta e que, escapando da casa do veterinário, que dela se teria apropriado graças à sua gentileza, queria voltar à nossa casa”.
Minha pobre filha doente, que tem sua caminha no quarto da mãe, afirma que também ouviu. Apenas lhe pareceu que a voz não partia da porta de entrada, mas do próprio leito de sua mãe, que é pertinho da porta.
 Devo dizer-vos, caro senhor, que o quarto de minha mulher fica acima do meu. Esses sons estranhos viriam da rua, como pensa minha mulher, que não partilha de minhas convicções espíritas? É impossível. Vindos da rua, esses sons tão suaves não teriam chegado ao meu ouvido, pois estou de tal modo acometido de surdez que, mesmo no silêncio da noite, sou incapaz de ouvir o barulho de um carro que passa. Nem sequer escuto o trovão durante uma tempestade. Por outro lado, se o som da voz viesse da rua, como explicar a ilusão de minha esposa e de minha filha, que julgaram ouvi-lo vindo de um ponto oposto, da porta de entrada, por minha mulher, do leito desta por minha filha?
Confesso, caro senhor, que embora esses fatos se reportem a um ser privado de razão, me fazem refletir singularmente. Que pensar disto? Nada ouso decidir e não posso me estender muito a respeito; mas eu me pergunto se o princípio imaterial, que, como nos homens, deve sobreviver nos animais, não adquiriria, em certo grau, a faculdade de comunicação, como a alma humana. Quem sabe? Conhecemos todos os segredos da Natureza? Evidentemente não. Quem explicará a lei das afinidades? Quem explicará as leis da repulsão? Ninguém. Se a afeição, que é do domínio do sentimento, como o sentimento é do domínio da alma, possui em si uma força atrativa, que haveria de admirável que um pobre animalzinho em estado imaterial se sinta arrastado para onde o leva sua afeição? Mas, perguntarão, como admitir o som da voz?
E se ele foi ouvido uma, duas vezes, por que não todos os dias? Esta objeção pode parecer séria. Todavia, seria uma insensatez pensar que esse som não possa produzir-se fora de certas combinações de fluídos que, reunidos, agem num sentido qualquer, como em química se produzem certas efervescências, certas explosões, em consequência da mistura de tais ou quais elementos?
Se essa hipótese tem ou não fundamento, não a discuto; direi apenas que pode estar nas coisas possíveis e, sem ir muito longe, acrescentarei que constato um fato apoiado num tríplice testemunho e que se o fato se produziu é porque pôde produzir-se.
Além disso, esperemos que o tempo nos esclareça; talvez não tardemos a ouvir falar de fenômenos da mesma natureza.

Nosso honrado correspondente age com sabedoria ao não decidir a questão categoricamente. De um único fato, que ainda não passa de uma probabilidade, ele não tira uma conclusão absoluta. Constata, observa, aguardando que a luz se faça. Assim o quer a prudência. Os fatos deste gênero ainda não são bastante numerosos, nem suficientemente provados para deles deduzir-se uma teoria, afirmativa ou negativa. A questão do princípio e do fim do Espírito dos animais apenas começa a destrinchar, e o fato de que se trata a ela se liga essencialmente. Se não for uma ilusão, pelo menos constata o vínculo de afinidade existente entre o Espírito dos animais, ou, melhor, de certos animais e o do homem. Aliás, parece positivamente provado que há animais que veem os Espíritos e por estes são impressionados; temos referido vários exemplos na Revista, entre os quais o do Espírito e o cãozinho, no número de junho de 1860. Se os animais veem os Espíritos, evidentemente não é pelos olhos do corpo. Portanto, eles também têm uma espécie de visão espiritual.
Até agora a Ciência não fez senão constatar as relações fisiológicas entre o homem e os animais. Ela nos mostra, no físico, todos os elos da cadeia dos seres sem solução de continuidade. Mas entre o princípio espiritual dos dois Espíritos havia um abismo. Se os fatos psicológicos, melhor observados, vêm lançar uma ponte sobre esse abismo, será um novo passo para a unidade da escala dos seres e da Criação. Não é por meio de sistemas que se poderá resolver esta grave questão, mas pelos fatos. Se o deve ser um dia, só o Espiritismo, criando a psicologia experimental, poderá lhe fornecer os meios. Em todo o caso, se existem pontos de contato entre a alma animal e alma humana, este não pode ser, do lado da primeira, senão da parte dos animais mais adiantados. Um fato importante a constatar é que, entre os seres do mundo espiritual, jamais se fez menção de que existissem Espíritos de animais. Disso pareceria resultar que aqueles não conservam a sua individualidade após a morte, mas, por outro lado, a pequena galga, que se teria manifestado, pareceria provar o contrário.
De acordo com isto, vê-se que a questão ainda está pouco adiantada, e que não se deve apressar a sua solução. Tendo sido lida a carta acima na Sociedade de Paris, a respeito foi dada a seguinte comunicação:

(Paris, 21 de abril de 186518[2] – Médium: Sr. E. Vézy)
Esta noite vou abordar uma grave questão, falando-vos das relações que podem existir entre a animalidade e a Humanidade. Mas neste recinto, quando, pela primeira vez, minhas instruções vos ensinam a solidariedade de todas as existências e as afinidades que existem entre elas, elevou-se um murmúrio numa parte desta assembleia, e eu me calei. Deveria fazer o mesmo hoje, malgrado vossas perguntas? Não, porque, enfim, vejo que entrais no caminho que vos indicava.
Mas não basta apenas crer no progresso incessante do Espírito, embrião na matéria, desenvolvendo-se ao passar pela peneira do mineral, do vegetal e do animal, para chegar à humanimalidade, onde começa a ensaiar-se apenas a alma que se encarnará, orgulhosa de sua tarefa, na Humanidade. Entre essas diferentes fases existem laços importantes, que é necessário conhecer, e que chamarei períodos intermediários ou latentes; porque é aí que se operam as transformações sucessivas. Mais tarde eu vos falarei dos laços que unem o mineral ao vegetal, o vegetal ao animal. Já que um fenômeno que vos causa admiração nos leva aos laços que ligam o animal ao homem, vou entreter-vos com estes últimos.
Entre os animais domésticos e os homens as afinidades são produzidas pelas cargas fluídicas que vos cercam e sobre eles recaem. É um pouco a Humanidade que se distingue sobre a animalidade, sem alterar as cores de uma ou de outra. Daí esta superioridade inteligente do cão sobre o instinto brutal do animal selvagem e é somente a essa causa que poderão ser devidas essas manifestações que vos acabam de ler. Assim, não se enganaram ouvindo um grito alegre do animal reconhecido pelos cuidados de seu dono, o qual veio, antes de passar ao estado intermediário de um desenvolvimento a outro, trazer-lhe uma lembrança. A manifestação, portanto, pode ocorrer, mas é passageira, porque o animal, para subir um degrau, precisa de um trabalho latente, que aniquila, em todos, qualquer sinal exterior de vida. Esse estado é a crisálida espiritual, onde se elabora a alma, perispírito informe, não tendo nenhuma figura reprodutiva de traços, irrompendo num estado de maturidade para deixar escapar, nas correntes que a arrastam, os germes de almas que aí se originam. Assim, pois, ser-nos-ia difícil falar-vos dos Espíritos de animais do espaço: eles não existem; ou, melhor, sua passagem é tão rápida como se nula fosse e, no estado de crisálida, não poderiam ser descritos.
Já sabeis que nada morre da matéria que sucumbe. Quando um corpo se dissolve, os diversos elementos de que é composto reclamam a parte que lhe deram: oxigênio, hidrogênio, azoto, carbono voltam ao seu foco primitivo para alimentar outros corpos. Dá-se o mesmo com a parte espiritual: os fluidos organizados espirituais tomam, de passagem, cores, perfumes, instintos, até a constituição definitiva da alma.
Compreendeis bem? Talvez eu precisasse explicar-me melhor, mas, para terminar esta noite, e não vos deixar supor o impossível, eu vos asseguro que o que é do domínio da inteligência animal não pode ser reproduzido pela inteligência humana, isto é, que o animal, seja qual for, não pode expressar seu pensamento pela linguagem humana; suas ideias são apenas rudimentares. Para ter a possibilidade de exprimir-se, como faria o Espírito de um homem, precisaria de ideias, conhecimentos e um desenvolvimento que não tem, que não pode ter. Tende, pois, como certo, que nem o cão, nem o gato, nem o burro, nem o cavalo, nem o elefante podem manifestar-se por via mediúnica. Só os Espíritos chegados ao grau da Humanidade podem fazê-lo, e ainda em razão de seu adiantamento, porquanto o Espírito de um selvagem não vos poderá falar como o de um homem civilizado.

Observação – Estas últimas reflexões do Espírito foram motivadas pela citação, feita na sessão, de pessoas que pretendiam ter recebido comunicações de diversos animais. Como explicação do fato precitado, sua teoria é racional e concorda, no fundo, com a que hoje prevalece nas instruções dadas na maioria dos centros.
Quando tivermos reunido documentos suficientes, resumi-los-emos num corpo de doutrina metódico, que será submetido ao controle universal. Até lá, são apenas balizas postas no caminho, para o esclarecer.





[1] Revista Espírita – Maio/1865
 [2] N. do T.: 1845 no original. É evidente que Kardec se refere ao ano de 1865.

segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

ELISABETH D'ESPÉRANCE[1]


 

Nascida em 1849 (Londres, Reino Unido) e desencarnada a 20 de julho de 1918 (Copenhague, Dinamarca).
Elisabeth D'Espérance, ou Madame D'Espérance, cujo verdadeiro nome era Mrs. Hope, foi médium de grande projeção, tendo servido de instrumento para as pesquisas encetadas por muitos sábios de sua época.
Sua carreira no campo mediúnico alcançou grande notoriedade, abrangendo o continente europeu e principalmente a Inglaterra.
Apareceu em público pela primeira vez, graças à interferência de T. P. Barkas, cidadão bastante relacionado na cidade de New Castle. Nessa época a médium era uma mocinha de educação média, entretanto, quando em transe mediúnico, demonstrava bastante discernimento das coisas, revelando um grau elevado de sabedoria, muito acima do consenso geral. Extensas listas de perguntas eram elaboradas por Barkas, abrangendo vários aspectos da Ciência, e as respostas eram obtidas com incrível rapidez, e geralmente em inglês, porém, algumas vezes em alemão ou em latim.
A médium viveu em meio dos casos mais estranhos, desde a mais tenra idade, pois, em suas memórias, ela descreve as suas aventuras com Espíritos de aparência infantil, que com ela brincavam, altercavam-se e logo após se reconciliavam. Suas faculdades mediúnicas foram das mais portentosas e se intensificaram com o decorrer dos anos, especialmente no campo das materializações, onde conseguiu resultados verdadeiramente impressionantes. Na obscuridade escrevia respostas as mais sofisticadas às questões formuladas por pessoas que as buscavam em uma biblioteca inteira. Tais indagações eram formuladas de forma aleatória, em inglês, alemão ou latim e mereciam respostas no mesmo idioma, sem qualquer espécie de erro de estilo ou de gramática.
Por seu intermédio encetaram-se várias e frequentes experiências com o Espírito de belíssima jovem árabe, de negra e ondulada cabeleira, de pele morena e muito graciosa.
Demonstrou notável capacidade nos fenômenos de materializações, principalmente na formação de plantas que passavam a ter prolongada duração e que eram colocadas em jardins.
Afirmou o Dr. William Oxley que conseguiu, através da médium, a materialização de 27 rosas e outras plantas em uma só sessão. Dentre essas plantas salientava-se uma cujo nome científico era "Ixora Crocata", que foi colocada numa estufa, e ali viveu cerca de três meses, quando então se secou.
Oxley também presenciou a materialização, com grande nitidez, de uma jovem de rara beleza, a qual, após apresentar-se em toda a sua magnitude começou a desmaterializar-se, a começar pelos pés, como se fora uma estátua de cera colocada sobre uma placa quente. Vários outros comentários de Oxley estão contidos em sua obra "Revelações Evangélicas".
O Conde Alexander Aksakof também realizou várias pesquisas com a famosa médium, obtendo resultados os mais positivos, o mesmo sucedendo com o professor Butlerof, catedrático de Química da Universidade de Petersburgo.
Certa manhã, a médium, estando ocupada em escrever algumas cartas comerciais, em dado momento verificou, com espanto, que sua mão havia escrito automaticamente o nome "Swen Stromberg". Ninguém soube explicar de quem se tratava. Algum tempo após, quando Aksakof e Buttlerof faziam experimentações no sentido de fotografar Espíritos materializados, atrás da médium apareceu também a figura de um homem.
Consultado, o mentor espiritual explicou tratar-se de um personagem cujo nome era exatamente Swen Stromberg, o qual havia desencarnado no dia 13 de março daquele ano, em New Stockholm, e pedia que seus pais fossem avisados sobre o seu decesso.
Os pais, quando viram a fotografia reconheceram de pronto o filho que havia desencarnado, deixando esposa, filhos e sendo pranteado por muita gente.




[1] Personagens do Espiritismo - Antônio de Souza Lucena e Paulo Alves Godoy