Dora Incontri[2]
- Publicado em 2 de Julho de 2017
Associação Brasileira de
Pedagogia Espírita
Vários articulistas já
manifestaram aqui suas posições a respeito desse polêmico assunto: pureza
doutrinária. Chegou a minha vez de dizer algo a respeito.
Em primeiro lugar, é preciso
esclarecer (ou resgatar) alguns conceitos básicos do Espiritismo:
Não se trata de uma revelação
sagrada, por isso considero muito problemática a denominação das obras de
Kardec de o “pentateuco espírita”.
Os livros de Kardec não são como
a Bíblia é para os fundamentalistas cristãos – palavra de Deus, revelada, que
pode ser citada como fonte de autoridade absoluta.
A obra de Kardec é de pesquisa,
em que encarnados e desencarnados participaram da construção.
Justamente uma das grandes
contribuições de Kardec foi dessacralizar a revelação.
E ele fez isso estabelecendo um
método de pesquisa dos fenômenos espíritas, uma abordagem nova da vida espiritual,
com racionalidade crítica e observação empírica.
Então, conservar-se fiel à obra
de Kardec é muito mais conhecer, entender, aprofundar e mesmo desdobrar com os
recursos atuais, o método criado por ele.
E foi criado por ele e não pelos
Espíritos! Esses são na verdade ao mesmo tempo o objeto de estudo e os
cooperadores de Kardec.
O conteúdo do Espiritismo está
sujeito à revisão, reelaboração e leituras históricas (compreendendo que
algumas coisas que estão nas obras de Kardec são próprias do século XIX, têm
uma influência da cultura europeia da época).
O próprio fundador do
Espiritismo não o queria fechado, num corpo de dogmas, a que leitores futuros
teriam que se submeter cegamente.
O tempo inteiro, Kardec alerta
para o aspecto científico de sua proposta, cujas hipóteses poderiam ser
revistas.
Mas é claro que encarar o
Espiritismo como um pensamento aberto, em constante construção, porque se trata
de um pensamento racional, científico, sempre pronto ao diálogo com as
descobertas da ciência e com os avanços culturais, não significa fazer dele uma
colcha de retalhos, uma salada mística, incorporando modismos, novidades sem
fundamento, práticas bizarras e ideias irracionais.
Então, podemos dizer a grosso
modo que temos duas tendências predominantes no movimento espírita brasileiro
atual:
Dos ortodoxos – vamos chamá-los
assim – que não compreenderam o caráter dinâmico e aberto do Espiritismo (e
muitos não compreenderam também o caráter fraterno da doutrina) e usam os
textos de Kardec como argumento de autoridade, consideram suas obras como uma
Bíblia.
Esses ortodoxos, que estão
dentro das instituições estabelecidas “como movimento oficial” são em geral
pessoas avessas ao diálogo, praticam a censura, a exclusão, não aceitam nenhum
tipo de pensamento crítico e fazem uma reprodução pobre, descontextualizada,
reacionária do texto de Kardec – que se torna um texto apostilado, interpretado
apenas por um viés religioso, com muito pouca articulação racional e nenhum
enraizamento científico.
Devo dizer que nós, da Associação
Brasileira de Pedagogia Espírita, apesar de mantermos um forte apelo à volta a
Kardec, na linha de Herculano Pires, que temos um compromisso com pesquisa,
filosofia e uma ética espírita, somos muitas vezes hostilizados ou
silenciosamente excluídos por essa facção oficial, que se pretende ortodoxa.
Meus livros são censurados em
muitos centros espíritas, a ABPE não é chamada a participar de grandes eventos
federativos para falarmos sobre Educação, quando nós somos a entidade
especializada no assunto, com uma produção reconhecida, inclusive
academicamente. Mas somos críticos.
E para esse lado do movimento,
quem critica é polêmico, persona non
grata.
E assim, o Espiritismo vai se
tornando nas mãos no movimento institucional, mais uma religião fechada, sem
nenhum avanço.
Do outro lado, estão os adeptos
do vale-tudo. New Age, autoajuda, cristais, livros mediúnicos com revelações
estapafúrdias etc.
É a salada mística.
Para esses, atualizar Kardec é
simplesmente esquecê-lo, ignorando seus critérios de racionalidade, coerência e
busca metódica da verdade.
Mas é claro que esses criticam
os ortodoxos e os ortodoxos os excluem sem pena.
E quais as motivações
emocionais, inconscientes (ou conscientes) que estão por trás dos dois grupos?
No primeiro, a motivação é o poder
– querem um movimento hierarquizado, que não debate, que não dá espaço para
contestação (por mais qualificada que seja a pessoa que conteste), que se
mantém sempre acrítico.
E devo dizer, que embora esses
se digam os reais seguidores de Kardec, não o compreenderam nem pela rama, pois
falta de diálogo é falta de humildade, falta de criticidade é dogmatismo,
exclusão é falta de fraternidade.
Portanto, nada disso é espírita.
No segundo grupo, a motivação é
o comércio: médiuns que viram terapeutas holísticos, médiuns que se pretendem
gurus em todos os assuntos.
Livros que vendem às pencas nas
grandes redes de livrarias e que mais parece ficção científica de mau gosto do
que obras mediúnicas sérias, comprometidas com o esclarecimento e a edificação
dos leitores.
Então, logo se vê que, como
dizia Kardec: contra interesses, não há fatos que convençam.
Quando a motivação é o poder, a
vaidade, a projeção pessoal ou o lucro financeiro, pura e simplesmente, não há
verdadeiro amor ao Espiritismo, sincera busca da verdade, esforço sacrificial
pela ideia, trabalho sério e profundo – mas de ambos os lados reina a
mediocridade.
É claro que tudo isso faz parte
do contexto em que vivemos no momento.
Todos os movimentos religiosos e
espiritualistas têm alas fundamentalistas e alas de autoajuda light.
Tem aqueles que desejam reter o
movimento numa redoma de ideias fechadas e os que querem abrir, sem nenhum
critério, a não ser o critério comercial.
Isso tudo em relação às posições
existentes no momento espírita atual.
Há muitos desgarrados,
insatisfeitos, críticos em relação a ambos os lados e são para essas pessoas
que nós, da ABPE, temos oferecido uma alternativa que não se pretende nem
dogmática, nem superficial e descomprometida com a verdade (ou a sua busca,
pois estamos ainda muito aquém de verdades definitivas).
Há duas coisas que deveriam unir
todos os espíritas: o elo de fraternidade e o compromisso com a busca isenta e
desinteressada da verdade.
Podemos nos enganar, e as
verdades por enquanto são relativas, mas por isso mesmo, temos que aprender a
dialogar com o outro e temos que fazer um processo de autoconhecimento
(aconselho inclusive com terapia) para observarmos em nós as paixões, as
inclinações, as motivações obscuras que possam estar nos guiando em nossas atitudes
em relação a essa ideia tão bela e fecunda, tão libertária e progressista, que
se chama Espiritismo.
Portanto, nem pureza ortodoxa,
nem salada mística, mas estudo sério, aprofundado das obras de Kardec, diálogo
aberto, civilizado, amistoso, desinteresse real, fraternidade – eis o que
proponho aqui, para encerrar por enquanto, esse debate em nosso blog.
[2] Dora Incontri (São Paulo, 1962) é educadora,
jornalista, poetisa e escritora brasileira; autora de mais de 40 obras
publicadas, dentre elas livros didáticos de filosofia e ensino inter-religioso.
É mestre, doutora e
pós-doutora em História e Filosofia da Educação pela Universidade de São Paulo.
Também é um importante
nome da pedagogia espírita e coordena um curso de Pós-Graduação Latu-Senso
nessa área, pela Universidade Livre Pampédia, de que é idealizadora e
coordenadora.
A Universidade Livre
Pampédia é um projeto alternativo de educação superior, com sede em Bragança
Paulista.
É também coordenadora da
Associação Brasileira de Pedagogia Espírita.
É uma das divulgadoras
do pensamento de Jan Amos Comenius (1.592 - 1.670, bispo protestante da Igreja
Morávia, educador, cientista e escritor checo; como pedagogo, é considerado o
fundador da didática moderna) no Brasil.
Em 1998 fundou a Editora
Comenius e já publicou duas obras clássicas desse autor no Brasil: Pampédia (ou
da Educação Universal) e O Labirinto do Mundo e o Paraíso do Coração.
Em 2014, foi agraciada
com a medalha Comenius, do Museu Comenius, da República Checa.
É uma das poucas
estudiosas do educador Johann Heinrich Pestalozzi (1.746 - 1.827, um pedagogo
suíço e educador pioneiro da reforma educacional) no Brasil e também é uma
notória estudiosa de seu discípulo Allan Kardec (pseudônimo de Hippolyte Léon
Denizard Rivail, 1.804 - 1.869, influente educador, autor e tradutor francês;
notabilizou-se como o codificador da Doutrina Espírita), o "fundador"
do Espiritismo.