sábado, 27 de janeiro de 2018

Onde estão os teus mortos?[1]



“O coração não pode errar. A carne é um sonho; ela se dissipa.

Se esse desaparecimento fosse o fim do homem, tiraria à nossa existência toda sanção.

Não nos contentamos com esta fumaça que é a matéria; precisamos de uma certeza.

Quem quer que ame, sabe e sente que nenhum dos pontos de apoio do homem está na Terra.

Amar é viver além da vida. Sem essa fé, nenhum dom perfeito do coração seria possível;

Amar, que é o objetivo do homem, seria o seu suplício.

O paraíso seria o inferno. Não! Digamos bem alto, a criatura amante exige a criatura imortal.

O coração necessita da alma”. (Victor Hugo)


Para que nos lembremos uns dos outros,

Bastam as nossas dores como são,

Uma pequena cruz, um nome e a relva verde e mansa,

Que nos falem de paz e de esperança

Na saudade sem fim do coração . (Maria Dolores[2])


A crença da morte como o fim de toda existência é um delírio criado pela condição dos vivos encerrados na carne, com suas limitadíssimas capacidades sensoriais. Não se deve senão culpar a essa limitação material toda dificuldade presente em apreciar verdadeiramente a vida futura. Essa restrição é necessária para que a experiência do Espírito imortal se restrinja temporariamente àquela determinada pelos sentidos do corpo limitado. É um delírio quase que perpétuo na mente dos que ficam, para sempre destinados ao fim porque seus corpos não permitem ver mais além.
Ainda assim, nossos antepassados em todos os tempos intuíram a continuidade da vida além da morte. A prova disso está na presença da religião, desde os tempos mais primitivos, como uma forma de se cultuar os mortos. O culto aos "antepassados e aos mortos" esteve na origem de todas as crenças antigas[3]. Mas, desde uma perspectiva antropológica moderna, incapaz de perceber essa realidade e desprezando as evidências do Espiritismo ‒ que está na origem de todas as religiões ‒ a crença na vida maior é uma resposta meramente psicológica do homem à ameaça representada pela morte do rompimento de seus laços terrenos, suas amizades, sua família, sua segurança doméstica e social. A única realidade estaria no niilismo e no materialismo. Como colocou o sociólogo Zygmund Bauman (1925-2017):
As sociedades (modernas) existem para esconder de seus integrantes o fato real da morte como o fim da vida. Pois se as pessoas percebessem que vida não tem sentido, perderiam toda esperança e abandonariam definitivamente a vida que têm[4].
Felizmente, isso não acontece de forma generalizada ‒ embora represente a força principal que motiva os que tentam o suicídio todos os dias ‒ porque a grande maioria das pessoas traz inconscientemente uma noção ainda que precária da vida maior, renovada todos os dias durante o sono.
Adquire relevância incomparável assim todos os esforços de pesquisa passados e presentes para demonstrar a comunicação dos espíritos, a ampliação dos sentidos humanos libertos dos laços materiais e as provas da imortalidade. Elas representam a única saída para a mente racional quando confrontada com a morte e seu fim aparente.
Não foi por mera coincidência que a fenomenologia espírita se desenvolveu a partir de 1850, numa época marcada como o apogeu do materialismo. Esse desenvolvimento foi a resposta da providência ao espírito questionador do tempo moderno que zombava das religiões desgastadas pelos excessos de crenças inúteis e contrárias à razão. É como se uma resposta fosse dada aos que acreditavam Deus estar morto, confirmando a precariedade das religiões instituídas ‒ sim porque a alma sobrevive, mas não está condenada eternamente ‒ e ao mesmo tempo reafirmasse a razão última de todos os credos, a existência de um Deus como causa primária de todas as coisas e uma vida real além daquela experimentada pelos sentidos restritos do corpo.
A morte encerra a verdadeira vida em si como um dos seus mais bem guardados mistérios. Os teus mortos estão vivos. Se hoje deles guardamos alguma lembrança, incapazes ainda de entrar em comunicação direta com os nossos mortos, guardamos igualmente a certeza que nos reuniremos inexoravelmente a eles um dia. Por hora apenas a certeza intelectual e intuitiva da sobrevivência, pontuada por inúmeras revelações e evidências constantemente desprezadas pela cultura do momento. Amanhã a certeza final pela prova definitiva dos sentidos do espírito imortal em sua caminhada sem fim.



[2] M. Dolores, Conversa no Campo Santo, "Dádivas de Amor", psicografia F. C. Xavier.
[3] R. A Segal (Ed.)(2006). The Blackwell companion to the study of Religion. Blackwell Publishing. Nessa referência, pode-se ler (p. 7):
De acordo com Spencer, a religião surgiu da observação que, nos sonhos, o eu deixa o corpo. A personalidade humana tem portanto aspecto dual e, depois da morte, o espírito ou alma continua a aparecer para os descendentes ainda vivos através dos sonhos. Fantasmas de ancestrais remotos ou personalidades famosas eventualmente adquiriram status de deuses. Tal era a crença entre os primeiros antropologistas. A situação mudou consideravelmente depois, entretanto.
[4] Citado em (2), p.236.

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