Cão da Raça Galgo
Escrevem-nos de Dieppe:
... Parece-me, caro senhor, que
chegamos a uma época em que se devem realizar coisas incríveis. Não sei o que
pensar de um dos mais estranhos fenômenos que acaba de ocorrer em minha casa.
Nos tempos de cepticismo em que vivemos, dele não ousaria falar a ninguém,
temendo que me tomassem por alucinado. Mas, caro senhor, com risco de trazer
aos vossos lábios o sorriso da dúvida, quero contar-vos o fato. Aparentemente
fútil, no fundo, talvez seja mais sério do que se poderia pensar.
Meu pobre filho, falecido em
Boulogne-sur-Mer, onde continuava os estudos, tinha ganhado de um de seus
amigos uma linda galga, que adestramos com extremo cuidado. Na sua espécie era
a mais adorável criaturinha que se pudesse imaginar. Nós a queríamos como se
ama tudo o que é belo e bom. Ela nos compreendia pelo gesto, pelo olhar. Tal
era a expressão dos seus olhos que parecia fosse nos responder quando lhe
dirigíamos a palavra.
Depois da morte de seu jovem dono, a pequena
Mika (era o seu nome) foi trazida para Dieppe e, conforme seu hábito, dormia
bem agasalhada aos pés de minha cama. No inverno, quando o frio castigava
muito, ela se levantava, dava um gemido baixinho de extrema doçura, o que era
sua maneira habitual de formular um pedido e, compreendendo o que ela desejava,
eu permitia que viesse pôr-se ao meu lado. Então ela se estendia como possível
entre seus panos, com o focinho em meu pescoço, que usava como travesseiro,
entregando-se ao sono como os felizes da Terra, recebendo meu calor,
transmitindo-me o seu, o que aliás não me desagradava. Comigo a pobre pequenina
passava dias felizes.
Mil coisas boas não lhe faltavam. Mas,
em setembro último, adoeceu e morreu, malgrado os cuidados do veterinário a
quem a confiei. Muitas vezes falávamos dela, minha mulher e eu, e a
lamentávamos quase como se fora um filho amado, tanto ela tinha sabido, pela
doçura, pela inteligência e por seu apego fiel, cativar-nos a afeição.
Ultimamente, pelo meio da noite,
estando deitado, mas não dormindo, ouço partir dos pés de meu leito aquele
gemidinho que soltava a pequena galga, quando queria alguma coisa. Fiquei de
tal modo impressionado que estendi o braço fora do leito, como se a quisesse
atrair para mim e julguei mesmo que ia sentir suas carícias. Ao me levantar de
manhã, contei o fato à minha mulher, que me disse: “Ouvi a mesma voz, não uma,
mas duas vezes. Parecia vir da porta de meu quarto. Meu primeiro pensamento foi
que nossa pobre cadelinha não estava morta e que, escapando da casa do
veterinário, que dela se teria apropriado graças à sua gentileza, queria voltar
à nossa casa”.
Minha pobre filha doente, que tem sua
caminha no quarto da mãe, afirma que também ouviu. Apenas lhe pareceu que a voz
não partia da porta de entrada, mas do próprio leito de sua mãe, que é pertinho
da porta.
Devo dizer-vos, caro senhor, que o quarto de
minha mulher fica acima do meu. Esses sons estranhos viriam da rua, como pensa
minha mulher, que não partilha de minhas convicções espíritas? É impossível.
Vindos da rua, esses sons tão suaves não teriam chegado ao meu ouvido, pois
estou de tal modo acometido de surdez que, mesmo no silêncio da noite, sou
incapaz de ouvir o barulho de um carro que passa. Nem sequer escuto o trovão
durante uma tempestade. Por outro lado, se o som da voz viesse da rua, como
explicar a ilusão de minha esposa e de minha filha, que julgaram ouvi-lo vindo
de um ponto oposto, da porta de entrada, por minha mulher, do leito desta por
minha filha?
Confesso, caro senhor, que embora
esses fatos se reportem a um ser privado de razão, me fazem refletir
singularmente. Que pensar disto? Nada ouso decidir e não posso me estender
muito a respeito; mas eu me pergunto se o princípio imaterial, que, como nos
homens, deve sobreviver nos animais, não adquiriria, em certo grau, a faculdade
de comunicação, como a alma humana. Quem sabe? Conhecemos todos os segredos da
Natureza? Evidentemente não. Quem explicará a lei das afinidades? Quem
explicará as leis da repulsão? Ninguém. Se a afeição, que é do domínio do
sentimento, como o sentimento é do domínio da alma, possui em si uma força
atrativa, que haveria de admirável que um pobre animalzinho em estado imaterial
se sinta arrastado para onde o leva sua afeição? Mas, perguntarão, como admitir
o som da voz?
E se ele foi ouvido uma, duas vezes,
por que não todos os dias? Esta objeção pode parecer séria. Todavia, seria uma
insensatez pensar que esse som não possa produzir-se fora de certas combinações
de fluídos que, reunidos, agem num sentido qualquer, como em química se
produzem certas efervescências, certas explosões, em consequência da mistura de
tais ou quais elementos?
Se essa hipótese tem ou não
fundamento, não a discuto; direi apenas que pode estar nas coisas possíveis e,
sem ir muito longe, acrescentarei que constato um fato apoiado num tríplice
testemunho e que se o fato se produziu é porque pôde produzir-se.
Além disso, esperemos que o tempo nos
esclareça; talvez não tardemos a ouvir falar de fenômenos da mesma natureza.
Nosso honrado correspondente age
com sabedoria ao não decidir a questão categoricamente. De um único fato, que
ainda não passa de uma probabilidade, ele não tira uma conclusão absoluta.
Constata, observa, aguardando que a luz se faça. Assim o quer a prudência. Os
fatos deste gênero ainda não são bastante numerosos, nem suficientemente
provados para deles deduzir-se uma teoria, afirmativa ou negativa. A questão do
princípio e do fim do Espírito dos animais apenas começa a destrinchar, e o
fato de que se trata a ela se liga essencialmente. Se não for uma ilusão, pelo
menos constata o vínculo de afinidade existente entre o Espírito dos animais,
ou, melhor, de certos animais e o do homem. Aliás, parece positivamente provado
que há animais que veem os Espíritos e por estes são impressionados; temos
referido vários exemplos na Revista, entre os quais o do Espírito e o cãozinho,
no número de junho de 1860. Se os animais veem os Espíritos, evidentemente não
é pelos olhos do corpo. Portanto, eles também têm uma espécie de visão
espiritual.
Até agora a Ciência não fez
senão constatar as relações fisiológicas entre o homem e os animais. Ela nos
mostra, no físico, todos os elos da cadeia dos seres sem solução de
continuidade. Mas entre o princípio espiritual dos dois Espíritos havia um
abismo. Se os fatos psicológicos, melhor observados, vêm lançar uma ponte sobre
esse abismo, será um novo passo para a unidade da escala dos seres e da
Criação. Não é por meio de sistemas que se poderá resolver esta grave questão,
mas pelos fatos. Se o deve ser um dia, só o Espiritismo, criando a psicologia
experimental, poderá lhe fornecer os meios. Em todo o caso, se existem pontos
de contato entre a alma animal e alma humana, este não pode ser, do lado da
primeira, senão da parte dos animais mais adiantados. Um fato importante a
constatar é que, entre os seres do mundo espiritual, jamais se fez menção de
que existissem Espíritos de animais. Disso pareceria resultar que aqueles não
conservam a sua individualidade após a morte, mas, por outro lado, a pequena
galga, que se teria manifestado, pareceria provar o contrário.
De acordo com isto, vê-se que a
questão ainda está pouco adiantada, e que não se deve apressar a sua solução.
Tendo sido lida a carta acima na Sociedade de Paris, a respeito foi dada a
seguinte comunicação:
(Paris, 21 de abril
de 186518[2]
– Médium: Sr. E. Vézy)
Esta noite vou abordar uma grave
questão, falando-vos das relações que podem existir entre a animalidade e a
Humanidade. Mas neste recinto, quando, pela primeira vez, minhas instruções vos
ensinam a solidariedade de todas as existências e as afinidades que existem
entre elas, elevou-se um murmúrio numa parte desta assembleia, e eu me calei.
Deveria fazer o mesmo hoje, malgrado vossas perguntas? Não, porque, enfim, vejo
que entrais no caminho que vos indicava.
Mas não basta apenas crer no progresso
incessante do Espírito, embrião na matéria, desenvolvendo-se ao passar pela
peneira do mineral, do vegetal e do animal, para chegar à humanimalidade, onde começa a ensaiar-se apenas a alma que se
encarnará, orgulhosa de sua tarefa, na Humanidade. Entre essas diferentes fases
existem laços importantes, que é necessário conhecer, e que chamarei períodos
intermediários ou latentes; porque é aí que se operam as transformações
sucessivas. Mais tarde eu vos falarei dos laços que unem o mineral ao vegetal,
o vegetal ao animal. Já que um fenômeno que vos causa admiração nos leva aos
laços que ligam o animal ao homem, vou entreter-vos com estes últimos.
Entre os animais domésticos e os
homens as afinidades são produzidas pelas cargas fluídicas que vos cercam e
sobre eles recaem. É um pouco a Humanidade que se distingue sobre a
animalidade, sem alterar as cores de uma ou de outra. Daí esta superioridade
inteligente do cão sobre o instinto brutal do animal selvagem e é somente a
essa causa que poderão ser devidas essas manifestações que vos acabam de ler.
Assim, não se enganaram ouvindo um grito alegre do animal reconhecido pelos
cuidados de seu dono, o qual veio, antes de passar ao estado intermediário de
um desenvolvimento a outro, trazer-lhe uma lembrança. A manifestação, portanto,
pode ocorrer, mas é passageira, porque o animal, para subir um degrau, precisa
de um trabalho latente, que aniquila, em todos, qualquer sinal exterior de
vida. Esse estado é a crisálida espiritual, onde se elabora a alma, perispírito
informe, não tendo nenhuma figura reprodutiva de traços, irrompendo num estado
de maturidade para deixar escapar, nas correntes que a arrastam, os germes de
almas que aí se originam. Assim, pois, ser-nos-ia difícil falar-vos dos
Espíritos de animais do espaço: eles não existem; ou, melhor, sua passagem é
tão rápida como se nula fosse e, no estado de crisálida, não poderiam ser
descritos.
Já sabeis que nada morre da matéria
que sucumbe. Quando um corpo se dissolve, os diversos elementos de que é
composto reclamam a parte que lhe deram: oxigênio, hidrogênio, azoto, carbono
voltam ao seu foco primitivo para alimentar outros corpos. Dá-se o mesmo com a
parte espiritual: os fluidos organizados espirituais tomam, de passagem, cores,
perfumes, instintos, até a constituição definitiva da alma.
Compreendeis bem? Talvez eu precisasse
explicar-me melhor, mas, para terminar esta noite, e não vos deixar supor o
impossível, eu vos asseguro que o que é do domínio da inteligência animal não
pode ser reproduzido pela inteligência humana, isto é, que o animal, seja qual
for, não pode expressar seu pensamento pela linguagem humana; suas ideias são
apenas rudimentares. Para ter a possibilidade de exprimir-se, como faria o
Espírito de um homem, precisaria de ideias, conhecimentos e um desenvolvimento
que não tem, que não pode ter. Tende, pois, como certo, que nem o cão, nem o
gato, nem o burro, nem o cavalo, nem o elefante podem manifestar-se por via
mediúnica. Só os Espíritos chegados ao grau da Humanidade podem fazê-lo, e
ainda em razão de seu adiantamento, porquanto o Espírito de um selvagem não vos
poderá falar como o de um homem civilizado.
Observação – Estas
últimas reflexões do Espírito foram motivadas pela citação, feita na sessão, de
pessoas que pretendiam ter recebido comunicações de diversos animais. Como
explicação do fato precitado, sua teoria é racional e concorda, no fundo, com a
que hoje prevalece nas instruções dadas na maioria dos centros.
Quando tivermos reunido documentos
suficientes, resumi-los-emos num corpo de doutrina metódico, que será submetido
ao controle universal. Até lá, são apenas balizas postas no caminho, para o
esclarecer.
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