quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Kardec, 213 anos depois...[1]



Dora Incontri – publicada em 03 de outubro de 2017


Kardec permanece o grande desconhecido, como dizia Herculano Pires, pois sua proposta foi tão original, que pouca gente o entendeu até hoje. Nem adversários, nem adeptos, compreendem o que ele fez e propôs e tão pouco percebem a grandeza moral que mostrou em toda a sua vida.
Uma pessoa séria, devotada à educação das crianças e, depois, à educação da humanidade, um pensador crítico, aberto, perquiridor.
O que nos interessa aqui comentar é que Kardec não considerava suas obras uma revelação fechada, para ser entendida e acatada como algo sagrado e imutável. Na medida em que propunha ser o Espiritismo uma forma de ciência, baseada na observação, então, estaria sempre aberto a novas descobertas e a outros contextos históricos e culturais.
O problema é que alguns que se apegam a essa visão do Espiritismo como um corpo flexível de ideias, muitas vezes querem enxertar nele coisas sem pé nem cabeça, opiniões pessoais e atrativos comerciais.
Outros se fecham numa interpretação sacralizada das obras de Kardec, chamando-as de pentateuco, como se fosse uma reedição do Velho Testamento, com todas as características de um texto inquestionável.
Nem uma coisa, nem outra.
O Espiritismo deve avançar, mas avançar significa adotar o método, o cuidado, a dimensão cultural e pedagógica que Kardec usou para lançar seus fundamentos.
Kardec justamente foi a personalidade escolhida para a sua missão, pelo seu rigor, pela sua racionalidade, pela sua modéstia pessoal, nem um pouco interessado em conquistar seguidores cegos e bajuladores.
Para entendermos, porém, o seu percurso, como chegou à formulação dos princípios básicos do Espiritismo, temos que ler e estudar Kardec de cabo a rabo, todos os livros, incluindo a Revista Espírita. Não adianta querer conhecer Kardec em cursos apostilados, onde não temos leitura direta e aprofundada de suas obras.
Deixe-me explicar melhor. Quando estudamos resumos ou apostilas, livros supostamente didáticos de espiritismo, dá-se o seguinte problema: passamos a adotar princípios espíritas como dogmas, como coisas prontas e acabadas. Quando lemos Kardec no original (incluindo a Revista Espírita), vamos acompanhando o seu método, como ele chegou a tal ou qual conclusão. Observamos seus argumentos, como ele trabalhava com hipóteses, para depois confirmá-las e como ele deixa algumas coisas em aberto mesmo.
Essas apostilas/livros de estudo, que correm as casas espíritas do Brasil não são Kardec por ele mesmo, mas Kardec por um determinado viés. E o que é pior, nas referências bibliográficas e nas citações, ainda aparecem trechos de médiuns brasileiros, que não passaram pelo crivo da crítica racional, como queria Kardec que todos os textos mediúnicos passassem.
Então, para recuperarmos o espírito de Kardec e não a letra engessada, leiamos Kardec diretamente.
Além disso, entendamos que mesmo com a solidez de uma pesquisa bem feita, há coisas em Kardec que são do contexto histórico de sua época, que precisam ser lidas assim.
O que considero a melhor e maior contribuição de Kardec para a história da espiritualidade no planeta Terra é que pela primeira vez, a revelação é submetida a critérios de pesquisa e avaliação racional, (aliás, ela própria entendida de maneira muito mais ampla do que só a revelação religiosa, como Kardec bem explica em seu indispensável capítulo da Gênesis, Caracteres da Revelação Espírita).
Entendendo-se o Espiritismo como Kardec o entendia, trata-se de um pensamento aberto, em permanente construção, universalista (porque considera que a verdade está em toda parte). Mas em toda parte, ela deve ser fruto da pesquisa, da razão e da experiência subjetiva de cada um.
É também uma proposta humanista, de confiança na capacidade do ser humano, de se governar a si mesmo, dispensando gurus, mestres… a mediunidade democratizada, a ética clara e evidente, a reencarnação como chave de entendimento dos seres humanos, de maneira essencialmente igualitária e não o contrário.
Um pensamento com contribuições importantíssimas, um mestre que não se fez de mestre, um filósofo que não se aferrou a sistemas e um pesquisador que aliou sempre sua busca a uma dimensão moral e crítica. Pena que tão pouca gente entendeu!




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