Dora Incontri – publicada em
03 de outubro de 2017
Kardec permanece o grande
desconhecido, como dizia Herculano Pires, pois sua proposta foi tão original,
que pouca gente o entendeu até hoje. Nem adversários, nem adeptos, compreendem
o que ele fez e propôs e tão pouco percebem a grandeza moral que mostrou em
toda a sua vida.
Uma pessoa séria, devotada à
educação das crianças e, depois, à educação da humanidade, um pensador crítico,
aberto, perquiridor.
O que nos interessa aqui
comentar é que Kardec não considerava suas obras uma revelação fechada, para
ser entendida e acatada como algo sagrado e imutável. Na medida em que propunha
ser o Espiritismo uma forma de ciência, baseada na observação, então, estaria
sempre aberto a novas descobertas e a outros contextos históricos e culturais.
O problema é que alguns que se
apegam a essa visão do Espiritismo como um corpo flexível de ideias, muitas
vezes querem enxertar nele coisas sem pé nem cabeça, opiniões pessoais e
atrativos comerciais.
Outros se fecham numa
interpretação sacralizada das obras de Kardec, chamando-as de pentateuco, como
se fosse uma reedição do Velho Testamento, com todas as características de um
texto inquestionável.
Nem uma coisa, nem outra.
O Espiritismo deve avançar, mas
avançar significa adotar o método, o cuidado, a dimensão cultural e pedagógica
que Kardec usou para lançar seus fundamentos.
Kardec justamente foi a
personalidade escolhida para a sua missão, pelo seu rigor, pela sua
racionalidade, pela sua modéstia pessoal, nem um pouco interessado em
conquistar seguidores cegos e bajuladores.
Para entendermos, porém, o seu
percurso, como chegou à formulação dos princípios básicos do Espiritismo, temos
que ler e estudar Kardec de cabo a rabo, todos os livros, incluindo a Revista Espírita. Não adianta querer
conhecer Kardec em cursos apostilados, onde não temos leitura direta e
aprofundada de suas obras.
Deixe-me explicar melhor. Quando
estudamos resumos ou apostilas, livros supostamente didáticos de espiritismo,
dá-se o seguinte problema: passamos a adotar princípios espíritas como dogmas,
como coisas prontas e acabadas. Quando lemos Kardec no original (incluindo a Revista Espírita), vamos acompanhando o
seu método, como ele chegou a tal ou qual conclusão. Observamos seus
argumentos, como ele trabalhava com hipóteses, para depois confirmá-las e como
ele deixa algumas coisas em aberto mesmo.
Essas apostilas/livros de
estudo, que correm as casas espíritas do Brasil não são Kardec por ele mesmo,
mas Kardec por um determinado viés. E o que é pior, nas referências
bibliográficas e nas citações, ainda aparecem trechos de médiuns brasileiros,
que não passaram pelo crivo da crítica racional, como queria Kardec que todos
os textos mediúnicos passassem.
Então, para recuperarmos o
espírito de Kardec e não a letra engessada, leiamos Kardec diretamente.
Além disso, entendamos que mesmo
com a solidez de uma pesquisa bem feita, há coisas em Kardec que são do
contexto histórico de sua época, que precisam ser lidas assim.
O que considero a melhor e maior
contribuição de Kardec para a história da espiritualidade no planeta Terra é
que pela primeira vez, a revelação é submetida a critérios de pesquisa e
avaliação racional, (aliás, ela própria entendida de maneira muito mais ampla
do que só a revelação religiosa, como Kardec bem explica em seu indispensável
capítulo da Gênesis, Caracteres da
Revelação Espírita).
Entendendo-se o Espiritismo como
Kardec o entendia, trata-se de um pensamento aberto, em permanente construção,
universalista (porque considera que a verdade está em toda parte). Mas em toda
parte, ela deve ser fruto da pesquisa, da razão e da experiência subjetiva de
cada um.
É também uma proposta humanista,
de confiança na capacidade do ser humano, de se governar a si mesmo,
dispensando gurus, mestres… a mediunidade democratizada, a ética clara e
evidente, a reencarnação como chave de entendimento dos seres humanos, de
maneira essencialmente igualitária e não o contrário.
Um pensamento com contribuições
importantíssimas, um mestre que não se fez de mestre, um filósofo que não se
aferrou a sistemas e um pesquisador que aliou sempre sua busca a uma dimensão
moral e crítica. Pena que tão pouca gente entendeu!
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