terça-feira, 16 de abril de 2024

QUESTÕES DE ESPIRITISMO LEGAL[1]

 

Allan Kardec

 

Tomamos o fato seguinte do Courrier du Palais, que o Sr. Frédéric Thomas, advogado na Corte Imperial, publicou na Presse do dia 2 de agosto de 1858. Citamos textualmente para não descolorir a narração do espirituoso escritor. Nossos leitores facilmente se darão conta da forma leve que, tão agradavelmente, ele sabe dar às coisas mais sérias. Após relatar várias delas, acrescenta:

Temos um processo bem mais estranho que aquele para vos oferecer em uma próxima perspectiva: já o vemos despontar no horizonte, no horizonte do sul; mas onde pretende chegar?

Escrevem-nos que os ferros já estão no fogo, mas essa garantia não é suficiente. Eis do que se trata:

Um parisiense leu num jornal que um velho castelo estava à venda nos Pireneus: comprou-o e desde os primeiros dias da primavera lá se foi instalar com seus amigos. Jantaram alegremente, depois foram deitar-se, mais alegres ainda. Restava passar a noite: noite num velho castelo perdido na montanha. No dia seguinte todos os convidados se levantaram de olhos desvairados e fisionomias sobressaltadas; foram encontrar seu hospedeiro e todos lhe fizeram a mesma pergunta, com ar misterioso e lúgubre: Nada vistes esta noite?

O proprietário não respondeu, tão apavorado também se achava, limitando-se a fazer um sinal afirmativo com a cabeça.

Então confiaram uns aos outros as impressões da noite: um ouvira vozes lamentosas; outro ruído de correntes; este viu mover-se a tapeçaria; aquele uma arca que o saudava; vários sentiram morcegos gigantescos a lhes pousarem no peito: Era um castelo da Dama Branca. Os domésticos declararam que, como ao arrendatário Dickson, os fantasmas lhes haviam puxado os pés. O que mais ainda? As camas passeavam, as campainhas tocavam sozinhas e palavras fulgurantes sulcavam velhas lareiras.

Decididamente esse castelo não era habitável: os mais amedrontados fugiram imediatamente, enquanto os mais corajosos desafiaram a prova de uma segunda noite.

Até meia-noite tudo correu bem; porém, quando o relógio da torre Norte lançou no espaço os seus doze soluços, as aparições e os ruídos logo recomeçaram; de todos os cantos surgiam fantasmas, monstros de olhos de fogo, dentes de crocodilo e asas felpudas: tudo isso gritava, saltava, rangia e fazia uma algazarra do inferno.

Impossível resistir a essa segunda experiência. Dessa vez todo mundo deixou o castelo e hoje o proprietário quer mover uma ação por perdas e danos.

 

Que estranho processo, esse! E que triunfo para o Sr. Home, grande evocador de Espíritos! Será nomeado perito nesses assuntos? Seja como for, já que nada há de novo sob o sol da justiça, esse processo, que talvez julgarão uma novidade, não passará de uma velharia: há um outro pendente que, nem por ter duzentos e sessenta e três anos, deixa de ser menos curioso.

Assim, no ano da graça de 1595, perante o senescal de Guienne, um locatário chamado Jean Latapy demandou contra seu proprietário, Robert de Vigne. Alegava o primeiro que a velha casa que de Vigne lhe havia alugado, situada numa antiga rua de Bordeaux, não era habitável, tendo sido obrigado a deixá-la e acionando em seguida a justiça para que se pronunciasse acerca da rescisão do contrato.

Por quais motivos? Latapy os declina muito ingenuamente em suas conclusões.

“Porque havia encontrado a casa infestada de Espíritos, que ora se apresentavam sob forma de crianças, ora sob outras formas terríveis e apavorantes, e que oprimiam e inquietavam as pessoas, remexiam os móveis, provocavam ruídos e algazarras por todos os lados e, com força e violência, derrubavam das camas aqueles que nelas repousavam”.

De Vigne opôs-se energicamente à rescisão do contrato. ‘Depreciais injustamente minha casa’, dizia ele a Latapy; ‘provavelmente não tendes senão o que mereceis e, longe de me censurar, deveríeis, ao contrário, agradecer-me, porquanto vos faço ganhar o paraíso’.

Eis como o advogado do proprietário estabelecia essa singular proposição: ‘Se os Espíritos vêm atormentar Latapy e afligi-lo com a permissão de Deus, deve ele suportar a justa pena e, como São Jerônimo, dizer: Quidquid patimur nostris peccatis meremur[2], e não voltar-se contra o proprietário, que é de todo inocente; pelo contrário: deveria ser grato àquele que assim lhe forneceu os elementos para se salvar neste mundo das punições que, por seu demérito, o aguardavam no outro’.

Para ser coerente, o advogado deveria ter pedido a Latapy que pagasse uma certa indenização a de Vigne pelo serviço prestado. Um lugar no paraíso não vale o seu peso em ouro? Mas, generoso, o proprietário se contentava com a improcedência da ação, uma vez que, antes de intentá-la, Latapy deveria ter começado a combater e expulsar os Espíritos pelos meios que Deus e a Natureza nos concederam.

Por que não utilizara o loureiro? Exclamou o advogado do proprietário; por que não se servira da arruda ou do sal crepitante nas chamas e carvões ardentes, das penas de poupa e da composição da erva chamada aerolus vetulus, que contém ruibarbo, vinho branco, sal suspenso à porta de entrada, couro de testa de hiena e fel de cachorro, que dizem ser de uma virtude maravilhosa para expulsar os demônios? Por que não usara a erva Moly, que Mercúrio havia dado a Ulisses, que dela se serviu como antídoto contra os encantos de Circe?...

É evidente que o locatário Latapy havia faltado a todos os seus deveres, ao não lançar sal crepitante nas chamas e ao não fazer uso de fel de cachorro e de algumas penas de poupa. Mas, como fora obrigado a obter também couro de testa de hiena, o senescal de Bordeaux achou que esse ingrediente não era tão comum para que Latapy não fosse desculpado por haver deixado em paz as hienas, ordenando, em consequência, a rescisão do contrato de arrendamento.

Em tudo isso, vedes que nem o proprietário, nem o locatário e nem os juízes puseram em dúvida a existência e as algazarras dos Espíritos. Pareceria, pois, que desde mais de dois séculos os homens já eram quase tão crédulos quanto hoje; nós, porém, os ultrapassamos em credulidade: está na ordem do dia. É preciso absolutamente que a civilização e o progresso se mostrem em algum lugar.

 

Do ponto de vista legal, e abstração feita dos acessórios com que a enfeitou o narrador, essa questão não deixa de ter o seu lado embaraçoso, pois a lei não previu o caso em que os Espíritos barulhentos tornariam uma casa inabitável. É um vício redibitório? Em nossa opinião há prós e contras: vai depender das circunstâncias. Primeiro trata-se de examinar se o barulho era sério ou se não foi simulado por um interesse qualquer, questão prévia e de boa-fé que prejulga todas as outras. Admitindo os fatos como reais, é preciso saber se foram de natureza a perturbar o repouso.

Se se passasse, por exemplo, coisas como as que se deram em Bergzabern[3], é evidente que a posição não seria sustentável. O pai Senger suportou tudo isso porque os fatos ocorreram em sua própria casa e não podia agir de outro modo; mas de forma alguma um estranho se conformaria em viver numa casa onde constantemente se ouviam ruídos ensurdecedores, os móveis eram revirados e derrubados, as portas e janelas abriam-se e se fechavam sem qualquer motivo, os objetos eram lançados às cabeças das pessoas por mãos invisíveis etc. Parece incontestável que, em semelhante circunstância, haveria motivo para reclamação e que, em bom direito, um tal contrato não teria validade se os fatos houvessem sido dissimulados. Assim, em tese geral, o processo de 1595 parece ter sido bem julgado; há, porém, uma importante questão subsidiária a esclarecer e somente a ciência espírita poderia levantá-la e resolvê-la.

Sabemos que as manifestações espontâneas dos Espíritos podem ocorrer sem um fim determinado, e sem ser dirigidas contra tal ou qual indivíduo; que há, efetivamente, lugares assombrados por Espíritos batedores que, parece, os teriam escolhido para fixar domicílio, e contra os quais todas as conjurações empregadas fracassaram. Digamos, entre parêntesis, que há meios eficazes de nos desembaraçarmos deles; entretanto, esses meios não consistem na intervenção de pessoas conhecidas para produzir à vontade semelhantes fenômenos, porque os Espíritos que estão às suas ordens são exatamente da mesma natureza dos que queremos expulsar. Longe de os afastar, sua presença não poderia senão atrair outros. Mas sabemos também que em uma porção de casos essas manifestações são dirigidas contra certas pessoas, como em Bergzabern, por exemplo. Os fatos provaram que a família, principalmente a jovem Philippine, era seu objetivo direto, de tal sorte que estamos convencidos de que se essa família abandonasse a sua residência, os novos moradores nada teriam a temer; com ela a família levaria suas tribulações para o novo domicílio. O ponto a examinar numa questão legal seria, pois, este: as manifestações ocorriam antes ou somente depois da entrada do novo proprietário?

Neste último caso, torna-se evidente que este é que teria levado os Espíritos perturbadores, cabendo-lhe inteira responsabilidade; se, ao contrário, as perturbações já ocorriam anteriormente e de maneira persistente, é que elas se prendiam ao próprio local e, assim, a responsabilidade seria do vendedor. O advogado do proprietário raciocinava com a primeira hipótese, não deixando de ser lógica a sua argumentação. Resta saber se o locatário tinha levado consigo esses hóspedes importunos, mas isso o processo não esclarece.

Quanto ao processo atualmente pendente, acreditamos que o melhor meio de fazer boa justiça seria proceder às constatações que acabamos de falar. Se elas conduzirem à prova da anterioridade das manifestações, e se esse fato foi dissimulado pelo vendedor, trata-se de mais um caso em que o comprador foi enganado quanto à qualidade da coisa vendida. Ora, manter o contrato em semelhante condição talvez seja prejudicar o adquirente pela depreciação do imóvel; é, pelo menos, causar-lhe um prejuízo notável, constrangendo-o a guardar uma coisa de que não poderá mais fazer uso. É como se houvesse adquirido um cavalo cego, que fizeram passar por sadio.

Seja como for, o julgamento em questão deve ter consequências graves; quer seja o contrato rescindido, ou mantido por falta de provas suficientes, é igualmente reconhecer a existência do fato das manifestações. Repelir a proposta do adquirente, sob argumento de que se baseia numa ideia ridícula, é expor-se a receber, cedo ou tarde, um desmentido da experiência, como já ocorreu com os homens mais esclarecidos, por se haverem apressado a negar as coisas que não compreendiam. Se podemos censurar nossos ancestrais por excessiva credulidade, sem dúvida nossos descendentes nos reprovarão por havermos pecado pelo excesso contrário.

Enquanto aguardamos, eis o que acaba de se passar sob nossos olhos, cuja realidade chegamos mesmo a constatar.

Vejamos a crônica da Patrie, de 4 de setembro de 1858:

A Rua du Bac está em grande confusão. Ocorrem ainda por ali algumas diabruras!

A casa, que leva o número 65, compõe-se de dois prédios; o que dá para a rua tem duas escadas que se defrontam.

Há uma semana, a qualquer hora do dia ou da noite, e nos dois pavimentos dessa casa as campainhas agitam-se e tilintam com violência; quando vão abrir a porta não há ninguém à entrada.

Primeiramente acreditou-se numa brincadeira de mau gosto, e cada um se pôs a observar para descobrir o autor. Um dos locatários teve o cuidado de despolir um vidro de sua cozinha para espiar. Enquanto vigiava com mais atenção, sua campainha foi sacudida; pôs o olho no postigo: ninguém! Correu à escadaria: ninguém!

Voltou para casa e tirou o cordão da campainha. Uma hora depois, quando pensava haver triunfado, a campainha pôs-se a repicar de forma mais bela ainda. Mirou-a, permanecendo mudo e consternado.

Em outras portas, os cordões das campainhas estavam torcidos e amarrados como serpentes feridas; Procuraram uma explicação e chamaram a polícia. Que mistério era esse? Ainda o ignoram.



[1] Revista Espírita – outubro/1858 – Allan Kardec

[2] Tudo o que sofremos pelos nossos pecados nós merecemos.

[3] Ver os números de maio, junho e julho da Revista Espírita.

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