terça-feira, 2 de abril de 2024

O ESPÍRITO BATEDOR DE BERGZABERN – Segundo Artigo[1]

 


Allan Kardec

 

Extraímos as passagens seguintes de uma nova brochura alemã, publicada em 1853, pelo Sr. Blanck, redator do jornal de Bergzabern, sobre o Espírito batedor de que falamos em nosso número do mês de maio. Os fenômenos extraordinários ali relatados, cuja autenticidade não poderia ser posta em dúvida, provam que, a esse respeito, nada podemos invejar da América. Notar-se-á, nesse relato, o cuidado minucioso com que os fatos foram observados.

Seria desejável que em casos semelhantes se votasse a mesma atenção e a mesma prudência. Sabe-se hoje que os fenômenos desse gênero não resultam de um estado patológico, mas denotam sempre, entre aqueles em que se manifestam, uma excessiva sensibilidade, fácil de ser superexcitada. O estado patológico não é a causa eficiente, mas pode ser-lhe consecutivo. A mania de experimentação, em casos análogos, mais de uma vez causou acidentes graves que não teriam ocorrido se se tivesse deixado a Natureza agir por si mesma. Em nossa Instrução Prática sobre as Manifestações Espíritas, encontram-se os conselhos necessários para esse fim. Sigamos o Sr. Blanck em seu relato:

“Os leitores de nossa brochura, intitulada Os Espíritos Batedores, viram que as manifestações de Philippine Senger têm um caráter enigmático e extraordinário. Relatamos esses fatos maravilhosos desde seu início até o momento em que a criança foi conduzida ao médico real do cantão. Examinaremos, agora, o que se passou desde aquele dia.

Quando a criança deixou a casa do Dr. Bentner para regressar à casa paterna, as batidas e arranhaduras recomeçaram na casa do pai Senger; até esse momento, e mesmo depois da cura completa da jovem, as manifestações foram mais marcantes e mudaram de natureza[2]. Neste mês de novembro (1852) o Espírito começou a assobiar; a seguir ouvia-se um ruído comparável ao de uma roda de carrinho de mão que girasse sobre o seu eixo seco e enferrujado; mas o mais extraordinário de tudo, incontestavelmente, foi a desordem dos móveis no quarto de Philippine[3], desordem que durou quinze dias. Uma ligeira descrição do lugar parece-me essencial. O quarto tem aproximadamente 18 pés de comprimento por 8 de largura; chega-se a ele pela sala comum. A porta que comunica essas duas peças abre-se à direita. O leito da criança estava colocado à direita; no meio havia um armário e, no canto esquerdo, a mesa de trabalho de Senger, na qual foram feitas duas cavidades circulares, cobertas por tampas.

Na noite em que começou o tumulto, a Sra. Senger e Francisque, sua filha mais velha, estavam sentadas na primeira sala, perto de uma mesa, ocupadas em descascar vagens; de repente uma pequena roda, lançada do quarto de dormir, caiu perto delas. Ficaram tanto mais amedrontadas quanto sabiam que ninguém, além de Philippine, então mergulhada em sono profundo, se encontrava no quarto. Além disso, a rodinha fora lançada do lado esquerdo, embora se achasse na prateleira de um pequeno móvel, colocado à direita.

Se houvesse partido do leito, deveria ter alcançado a porta e aí se detido; tornava-se evidente, portanto, que a criança nada tinha a ver com o caso. Enquanto a família Senger externava sua surpresa sobre o acontecimento, alguma coisa caiu da mesa no chão: era um pedaço de pano que, antes, estava mergulhado numa bacia cheia de água. Ao lado da rodinha jazia também uma cabeça de cachimbo, havendo a outra metade ficado sobre a mesa. O que tornava a coisa ainda mais incompreensível era que a porta do armário onde estava a pequena roda, antes de ser atirada, achava-se fechada, a água da bacia não estava agitada e nenhuma gota se havia derramado sobre a mesa. De repente a criança, sempre adormecida, grita do leito:

Pai, vá embora, ele atira! Saiam! Eles vos atirarão também. Obedeceram a essa ordem, e assim que foram à primeira sala a cabeça do cachimbo foi atirada com muita força, sem que, no entanto, se quebrasse.

Uma régua, que Philippine usava na escola, seguiu o mesmo caminho. O pai, a mãe e sua filha mais velha entreolhavam-se apavorados e, como refletissem sobre o caminho a tomar, uma grande plaina do Sr. Senger e uma grande tora de madeira foram lançadas de sua banca de carpinteiro para o outro quarto. Sobre a mesa de trabalho, as tampas estavam no lugar e, apesar disso, os objetos que elas cobriam também haviam sido jogados longe. Na mesma noite os travesseiros da cama foram lançados sobre o armário e o cobertor atirado contra a porta.

Num outro dia haviam posto aos pés da menina, debaixo do cobertor, um ferro de passar pesando cerca de seis libras; logo foi atirado na outra sala; o cabo tinha sido retirado e foi encontrado sobre uma cadeira no quarto de dormir.

Fomos testemunhas de que cadeiras colocadas a cerca de três pés do leito foram derrubadas e as janelas abertas, embora antes estivessem fechadas, e isso tão logo havíamos virado as costas para entrar na peça vizinha. Uma outra vez, duas cadeiras foram levadas para cima da cama, sem desarrumar as cobertas. No dia 7 de outubro havia-se fechado firmemente a janela e estendido diante dela um lençol branco. Desde que deixamos o quarto, foram dados golpes redobrados e tão violentos que as pessoas que passavam pela rua fugiram espavoridas. Correram para o quarto: a janela estava aberta, o lençol jogado sobre o pequeno armário ao lado, a coberta do leito e os travesseiros no chão, as cadeiras de pernas para o ar e a criança em seu leito, protegida unicamente pela camisola. Durante catorze dias a Sra. Senger somente se ocupou de arrumar a cama.

Uma vez tinham deixado uma harmônica sobre uma cadeira: sons fizeram-se ouvir; entrando precipitadamente no quarto encontraram a criança, como sempre, tranquilamente deitada em sua cama; o instrumento estava sobre a cadeira, mas não tocava mais. Uma noite o Sr. Senger saía do quarto da filha quando recebeu, nas costas, a almofada de um assento. De outra vez, foi um par de chinelos velhos, sapatos que estavam debaixo do leito ou tamancos que lhe iam ao encontro. Muitas vezes também sopravam a vela acesa, colocada sobre a mesa de trabalho. As pancadas e as arranhaduras alternavam-se com essa demonstração do mobiliário.

O leito parecia movimentar-se por mão invisível. À ordem de: “Balançai a cama”, ou “Ninai a criança”, o leito ia e vinha, num e noutro sentido, com barulho; à ordem de “Alto!”, ele parava. Nós, que presenciamos o fato, podemos afirmar que quatro homens que se sentaram na cama foram levantados também, sem poderem deter o seu movimento; foram erguidos com o móvel. Ao fim de catorze dias cessou a desordem dos móveis e a essas manifestações sucederam-se outras.

Na noite do dia 26 de outubro, encontravam-se no quarto, dentre outras pessoas, os Srs. Louis Soëhnee, licenciado em Direito, e o capitão Simon, ambos de Wissembourg, assim como o Sr. Sievert, de Bergzabern. Nesse momento Philippine Senger encontrava-se mergulhada em sono magnético[4]. O Sr. Sievert apresentou-lhe um papel contendo cabelos para ver o que faria com eles. Ela abriu o papel sem, no entanto, pôr os cabelos à mostra, aplicou-os sobre as pálpebras fechadas e depois os afastou, como se quisesse examiná-los a distância, dizendo: “Gostaria muito de saber o que contém esse papel... São cabelos de uma dama que desconheço... Se ela quiser vir, que venha... Não posso convidá-la, já que não a conheço”. Às perguntas que lhe dirigiu o Sr. Sievert, não respondeu; mas, tendo colocado o papel na palma da mão, que estendia e revirava, o papel ficou suspenso. Em seguida o colocou na ponta do indicador e com a mão, por bastante tempo, descreveu um semicírculo, dizendo: “Não caia”, e o papel se manteve na ponta do dedo; em seguida, à ordem de “Agora cai”, ele se destacou sem que ela tivesse feito o menor movimento para determinar-lhe a queda. De repente, virando-se para o lado da parede, disse: “Agora quero pregar-te à parede”; e aplicou o papel à parede, que ali ficou fixado em torno de 5 a 6 minutos, após o que o retirou. Um exame minucioso do papel e da parede não revelou qualquer causa de aderência. Acreditamos ser um dever informar que o quarto estava perfeitamente iluminado, o que nos possibilitava examinar completamente essas particularidades.

Na noite seguinte deram-lhe outros objetos: chaves, moedas, cigarreiras, anéis de ouro e de prata; todos, sem exceção, ficavam suspensos à sua mão. Notaram que a prata aderia a ela mais facilmente que as outras substâncias, pois tiveram dificuldade em retirar-lhe as moedas e essa operação causou-lhe dor. Um dos fatos mais curiosos nesse gênero foi o seguinte: Sábado, 11 de novembro, o oficial que estava presente deu-lhe seu sabre com o tiracolo, pesando ao todo 4 libras, conforme verificação feita; o conjunto ficou suspenso pelo dedo do médium, balançando-se por bastante tempo. O que não é menos singular é que todos os objetos, qualquer que fosse a matéria de que eram feitos, também ficavam suspensos. Essa propriedade magnética comunicava-se pelo simples contato das mãos às pessoas suscetíveis da transmissão do fluido; disso tivemos vários exemplos.

Um capitão, o Sr. Cavaleiro de Zentner, então servindo na guarnição de Bergzabern, testemunha desses fenômenos, teve a ideia de pôr uma bússola perto da menina, para observar suas variações. Na primeira tentativa, a agulha desviou-se 15 graus, permanecendo imóvel nas seguintes, embora a criança a segurasse em uma das mãos e a acariciasse com a outra. Essa experiência provou que esses fenômenos não poderiam ser explicados pela ação do fluido mineral, até porque a atração magnética não se exerce indiferentemente sobre todos os corpos.

Habitualmente, quando a pequena sonâmbula se dispunha a iniciar suas sessões, chamava ao quarto todas as pessoas que lá se encontravam. Simplesmente dizia: “Vinde! Vinde!”, ou então “Dai, dai”. Muitas vezes só se tranquilizava quando todas as pessoas, sem exceção, estavam perto de sua cama. Então pedia, com diligência e impaciência, um objeto qualquer; tão logo lhe era dado, ligava-se a seus dedos. Frequentemente acontecia que dez, doze ou mais pessoas estavam presentes e cada uma lhe apresentava vários objetos. Durante a sessão não permitia que lhe tomassem nenhum deles; parecia sobretudo preferir os relógios; abria-os com grande habilidade, examinava o movimento, fechava-os e depois os colocava perto de si para cuidar de outra coisa. Ao final, devolvia a cada um o que lhe haviam confiado; examinava os objetos com os olhos fechados e jamais se enganava de proprietário. Se alguém estendesse a mão para tomar o que não lhe pertencia, ela o repelia.

Como explicar essa distribuição múltipla e sem erros a tão grande número de pessoas? Em vão tentaram fazer o mesmo com os olhos abertos. Terminada a sessão e retirados os estranhos, as pancadas e arranhaduras, momentaneamente interrompidas, recomeçaram. É preciso acrescentar que a criança não queria que ninguém ficasse ao pé de sua cama, perto do armário, o que entre os dois móveis deixava um espaço de aproximadamente um pé. Se alguém aí se interpusesse, com um gesto os afastava. E se recusassem, demonstrava grande inquietude, ordenando, com gestos imperiais, que deixassem o lugar. Uma vez ela exortou os assistentes a jamais ocuparem o local proibido, porque não queria que acontecesse problema com ninguém. Era tão positiva essa advertência que ninguém a esqueceu daí por diante.

Algum tempo depois, às pancadas e arranhaduras juntou-se um zumbido comparável ao som produzido por uma grossa corda de violoncelo. Uma espécie de assobio misturava-se a esse zumbido. Se alguém pedisse uma marcha ou uma dança, seu desejo era satisfeito: o músico invisível mostrava-se muito complacente. Com o auxílio das arranhaduras, chamava pelo nome as pessoas da casa ou os estranhos presentes; esses entendiam a quem eram dirigidos os apelos. A esse chamado, a pessoa designada respondia sim, para dar a entender que sabia tratar-se dela; então era executada, em sua homenagem, um trecho de música, que por vezes dava lugar a cenas divertidas. Se alguém que não fosse chamado respondia sim, a arranhadura fazia-se entender por um não, exprimido a seu modo, de que nada tinha a dizer-lhe naquele momento. Tais fatos se produziram pela primeira vez na noite do dia 10 de novembro e continuam a manifestar-se até hoje.

Eis agora como procedia o Espírito batedor para designar as pessoas. Desde várias noites, havia-se notado que, aos diversos convites para fazer tal ou qual coisa, ele respondia por um golpe seco ou por uma arranhadura prolongada. Tão logo o golpe seco era dado, o batedor começava a executar o que se desejasse dele; ao contrário, quando arranhava, não satisfazia o pedido. Um médico teve então a ideia de tomar por sim o primeiro  ruído, e por não o segundo, sendo desde então confirmada essa interpretação. Notou-se também que, por uma série de arranhões mais ou menos fortes, o Espírito exigia certos objetos das pessoas presentes. Por força de atenção, e notando a maneira por que o ruído se produzia, pôde-se compreender a intenção do batedor.

Assim, por exemplo, o Sr. Senger contou que certa manhã, ao romper do dia, ouvira barulhos modulados de certa maneira; sem ligar a isso nenhum sentido, percebeu que não cessavam senão quando ele estava fora do leito, daí compreendendo que significavam: “Levanta-te”. Foi assim que, pouco a pouco, familiarizou-se com essa linguagem e, por certos sinais, pôde reconhecer as pessoas designadas.

Chegou o aniversário do dia em que o Espírito batedor se havia manifestado pela primeira vez; numerosas mudanças se tinham operado no estado de Philippine Senger. As batidas, os arranhões e os zumbidos continuavam, mas, a todas essas manifestações juntou-se um grito particular, que ora se assemelhava ao de um ganso, ora ao de um papagaio ou ao de qualquer outra ave de grande porte; ao mesmo tempo, ouvia-se um como que repicar na parede, semelhante ao ruído das bicadas de um pássaro. Nessa época, Philippine Senger falava muito durante o sono, parecendo preocupada sobretudo com um certo animal, semelhante a um papagaio, postado ao pé do leito, gritando e dando bicadas na parede.

Desejando-se ouvir o papagaio gritar, este emitia gritos pungentes.

Fizeram-se diversas perguntas, às quais respondeu por gritos do mesmo gênero; várias pessoas ordenaram-lhe dizer Kakatoès, e foi ouvida distintamente a palavra Kakatoès, como se houvera sido pronunciada pelo próprio pássaro. Silenciaremos sobre os fatos menos interessantes, limitando-nos a relatar o que houve de mais notável em relação às modificações sobrevindas ao estado físico da garota.

Algum tempo antes do Natal as manifestações renovaram-se com mais energia; os golpes e os arranhões tornaram-se mais violentos e duravam mais tempo. Mais agitada que de costume, muitas vezes Philippine pedia para não dormir em sua cama e, sim, na de seus pais; rolava no leito, clamando: “Não posso mais ficar aqui; vou sufocar; eles vão me encerrar na parede; socorro!”

E sua calma só retornava quando a carregavam para o outro leito.

Apenas nele se achava e golpes muito fortes eram ouvidos no alto; pareciam partir do sótão, como se um carpinteiro martelasse sobre as vigas; algumas vezes eram tão vigorosos que a casa ficava toda abalada, as janelas vibravam e as pessoas presentes sentiam o chão tremer sob os pés; golpes semelhantes eram dados igualmente contra a parede, perto da cama. Às perguntas formuladas, as mesmas pancadas respondiam como ordinariamente, alternando-se sempre com as arranhaduras. Não menos curiosos, os fatos que se seguem reproduziram-se muitas vezes:

Quando todo ruído havia cessado e a menina repousava tranquilamente em seu pequeno leito, viram-na muitas vezes prostrar-se e unir as mãos, mantendo fechados os olhos; depois virava a cabeça para todos os lados, ora à direita, ora à esquerda, como se algo extraordinário atraísse sua atenção. Um amável sorriso corria-lhe então sobre os lábios; dir-se-ia que se dirigia a alguém; estendia as mãos e, por esse gesto, compreendia-se que apertaria as mãos de alguns amigos ou conhecidos. Viram-na também depois de tais cenas retomar sua primeira atitude suplicante, unindo novamente as mãos e curvando a cabeça até tocar o cobertor, após o que se endireitava e derramava lágrimas. Então suspirava e parecia orar com grande fervor. Nesses momentos sua fisionomia se transformava: ficava pálida e adquiria a expressão de uma mulher de 24 a 25 anos. Muitas vezes esse estado durava mais de meia hora, durante o qual só exclamava ah! ah! As batidas, os arranhões, o zumbido e os gritos cessavam até o momento do despertar. Então o batedor novamente se fazia ouvir, procurando executar árias alegres, de modo a dissipar a impressão penosa deixada na assistência. Ao despertar, a criança estava muito abatida; podia apenas levantar os braços, e os objetos que lhe eram apresentados não ficavam mais suspensos em seus dedos.

Curiosos em conhecer o que ela havia experimentado, interrogaram-na várias vezes. Somente após reiterados pedidos foi que se decidiu a contar que havia visto conduzirem e crucificarem o Cristo no Gólgota; que a dor das santas mulheres prostradas ao pé da cruz e a crucificação haviam-lhe produzido uma impressão impossível de descrever. Também tinha visto uma porção de mulheres e de virgens vestidas de negro, e pessoas jovens em longas roupas brancas, percorrendo em procissão as ruas de uma bela cidade; finalmente, foi conduzida a uma vasta igreja, onde assistiu a um serviço fúnebre.

Em pouco tempo o estado de Philippine Senger se alterou de modo a causar inquietação quanto à sua saúde, porque, estando acordada, divagava e sonhava em voz alta; não reconhecia os pais, nem a irmã, nem qualquer outra pessoa, vindo esse estado agravar-se mais ainda por uma completa surdez que persistiu durante quinze dias. Não podemos silenciar sobre o que se passou nesse lapso de tempo.

A surdez de Philippine manifestou-se de meio-dia às três horas, ela mesma declarando que ficaria surda durante um certo tempo e que cairia doente. O que há de singular é que, por vezes, recuperava a audição durante cerca de meia hora, com o que se mostrava feliz. Ela própria predizia o momento em que a surdez se manifestaria e desapareceria. Uma vez, entre outras, anunciou que à noite, às oito e meia, ouviria claramente durante uma meia hora; com efeito, à hora predita voltou a ouvir, e isso durou até às nove horas.

Durante a surdez seus traços se modificavam; seu rosto adquiria uma expressão de estupidez, que perdia tão logo retornava ao estado normal. Nada, então, causava impressão sobre ela; ficava sentada, olhando as pessoas presentes fixamente e sem as reconhecer.

Ninguém se podia fazer compreender a não ser por sinais, aos quais em geral não respondia, limitando-se a fitar os olhos sobre os que lhe dirigiam a palavra. Uma vez agarrou pelo braço, de repente, uma das pessoas presentes e lhe disse, empurrando-a: Quem és, pois? Nessa situação permanecia às vezes por mais de hora e meio imobilizada na cama. Seus olhos mantinham-se semiabertos e parados num ponto qualquer; de vez em quando giravam à direita e à esquerda, voltando depois ao mesmo lugar. Toda a sensibilidade parecia então embotada: o pulso apenas batia e, quando lhe colocavam uma lâmpada diante dos olhos, não fazia nenhum movimento: dir-se-ia morta.

Durante a surdez, numa noite em que se achava deitada, aconteceu pedir uma lousa e um giz, escrevendo em seguida: “Às onze horas falarei alguma coisa, mas exijo que permaneçam quietos e silenciosos”. Depois dessas palavras acrescentou cinco sinais semelhantes à escrita latina, mas que nenhum dos assistentes pôde decifrar. Foi escrito na lousa que ninguém compreendia aqueles sinais. Em resposta a essa observação, ela escreveu: “Não é que não possais ler!” E mais embaixo: “Não é alemão, é uma língua estrangeira”. Em seguida, virando a lousa, escreveu do outro lado: “Francisque (sua irmã mais velha) sentar-se-á à mesa e escreverá o que eu ditar”. Fez acompanhar essas palavras de cinco sinais semelhantes aos primeiros e entregou a lousa. Notando que tais sinais ainda não eram compreendidos, pediu de volta a lousa e aditou: “São ordens particulares”.

Um pouco antes das onze horas, disse: “Ficai tranquilos; que todos se sentem e prestem atenção!” e, ao baterem onze horas virou-se em seu leito e entrou em sono magnético habitual. Alguns instantes mais tarde pôs-se a falar, sem interrupção, durante cerca de meia hora. Entre outras coisas declarou que durante o ano em curso produzir-se-iam fatos que ninguém compreenderia, e que todas as tentativas feitas para os explicar seriam infrutíferas.

Durante a surdez da jovem Senger a desordem dos móveis, a abertura inexplicada das janelas e a extinção das luzes colocadas na mesa de trabalho repetiram-se várias vezes. Certa noite aconteceu que dois bonés, que estavam pendurados em um cabide do quarto de dormir, foram atirados sobre a mesa do outro quarto, derrubando uma xícara cheia de leite que se esparramou pelo chão.

As batidas contra o leito eram tão violentas que o deslocaram de seu lugar; algumas vezes foi mesmo desmontado ruidosamente, sem que as pancadas se fizessem ouvir.

Como houvesse ainda pessoas incrédulas, ou que atribuíam essas singularidades a uma brincadeira da criança, que, segundo elas, batia ou arranhava com os pés ou com as mãos, se bem tivessem os fatos sido constatados por mais de cem testemunhas, e que fora verificado que a mocinha tinha os braços estendidos sobre a coberta enquanto se produziam os ruídos, o capitão Zentner imaginou um meio de os convencer. Mandou trazer da caserna dois cobertores muito grossos, os quais foram postos um sobre o outro e ambos envolveram o colchão e os lençóis da cama; eram felpudos, de tal sorte que neles seria impossível produzir o mais leve ruído por simples atrito. Vestindo uma simples camisa e uma camisola de dormir, Philippine foi colocada sobre os cobertores; apenas acomodada, as arranhaduras e os golpes se produziram como antes, ora na madeira do leito, ora no armário vizinho, conforme o desejo que era manifestado.

Acontecia muitas vezes que quando alguém cantarolava ou assobiava uma ária qualquer o batedor o acompanhava e os sons percebidos pareciam provir de dois, três ou quatro instrumentos: ao mesmo tempo ouvia-se arranhar, bater, assobiar e retumbar, conforme o ritmo da ária cantada. Muitas vezes também o batedor pedia a um dos assistentes que cantasse uma canção; designava-o pelo processo que já conhecemos e, quando a pessoa compreendia que era a si mesma que o Espírito se dirigia, perguntava, por sua vez, se devia cantar tal ou qual ária; respondias-lhe por sim ou não. Ao cantar a ária indicada, um acompanhamento de zumbidos e assobios fazia-se ouvir perfeitamente no compasso. Depois de uma música alegre, frequentemente o Espírito pedia o hino: Grande Deus, nós te louvamos, ou a canção de Napoleão I. Se se lhe pedisse para tocar sozinho esta última canção, ou qualquer outra, executava-a do começo ao fim.

As coisas iam assim na casa dos Senger, quer de dia, quer de noite, durante o sono ou no estado de vigília da menina, até o dia 4 de março de 1853, época em que as manifestações entraram numa nova fase. Esse dia foi marcado por um fato ainda mais extraordinário que os precedentes.

(Continua na próxima semana)

 

Observação – Esperamos que nossos leitores não nos censurem pela extensão que demos a esses curiosos detalhes, e que leiam a sua continuação com não menor interesse. Faremos notar que esses fatos não nos vêm de além-mar, cuja distância é um grande argumento, pelo menos para certos cépticos; nem mesmo vêm de além-Reno, porquanto se passaram em nossas fronteiras, quase sob nossos olhos e há seis anos apenas.

Como se vê, Philippine Senger era uma médium natural muito complexa; além da influência que exercia sobre os fenômenos bem conhecidos dos ruídos e movimentos, era uma sonâmbula extática. Conversava com seres incorpóreos que via; ao mesmo tempo via os assistentes e lhes dirigia a palavra, embora nem sempre lhes respondesse, o que prova que em certos momentos se achava isolada. Para aqueles que conhecem os efeitos da emancipação da alma, as visões que relatamos nada têm que não possam ser explicadas facilmente; nesses momentos de êxtase é provável que o Espírito da criança se visse transportado para algum país longínquo, onde assistia, talvez em recordação, a uma cerimônia religiosa. Pode-se admirar da lembrança que conservava ao despertar, mas esse fato não é insólito; de resto, pode-se notar que a lembrança era confusa, sendo necessário insistir muito para provocá-la.

Se observarmos atentamente o que se passava durante a surdez, reconheceremos sem dificuldade um estado cataléptico.

Uma vez que essa surdez era apenas temporária, é evidente que não provocava alterações nos órgãos da audição. O mesmo podemos dizer da obliteração momentânea das faculdades mentais, que nada tinha de patológico, visto que, num dado instante, tudo voltava ao estado normal. Essa espécie de estupidez aparente resultava de um desprendimento mais completo da alma, cujas excursões faziam-se com maior liberdade, não deixando aos sentidos senão a vida orgânica. Que se julgue, pois, o efeito desastroso que teria resultado de uma intervenção terapêutica em semelhante circunstância! Fenômenos do mesmo gênero podem produzir-se a cada momento; não saberíamos, nesse caso, recomendar maior circunspecção; uma imprudência pode comprometer a saúde e até mesmo a vida.



[1] Revista Espírita – junho/1858 – Allan Kardec

[2] Teremos ocasião de falar da indisposição dessa criança; como, entretanto, depois de sua cura reproduziram-se os mesmos efeitos, isso é uma prova evidente de que eram independentes de seu estado de saúde.

[3] N. do T.: Nota-se que há discordância do relator da brochura quanto ao sexo da criança responsável pelos fenômenos, aqui apresentada como uma menina, ao invés do garoto descrito no fascículo do mês anterior. O mesmo podemos dizer dos nomes próprios, ora grafados como Sanger ou Senger, ora como Beutner ou Bentner.

[4] Uma sonâmbula de Paris havia entrado em relação com a jovem Philippine e, desde então, esta caía espontaneamente em sonambulismo. Nessa ocasião passavam-se fatos notáveis, que relataremos de outra vez.  (Nota do tradutor francês)

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