terça-feira, 20 de junho de 2023

UM ESPÍRITO QUE JULGA SONHAR[1]

 



Allan Kardec

 

Várias vezes têm sido vistos Espíritos que ainda se julgam vivos, porque seu corpo fluídico lhes parece tangível como seu corpo material. Eis um deles, numa posição pouco comum: não se julgando morto, tem consciência de sua intangibilidade, mas, como em vida era profundamente materialista, em crença e em gênero de vida, imagina que sonha, e tudo quanto lhe foi dito não pôde arrancá-lo do erro, tão persuadido está de que tudo acaba com o corpo. Era um homem de muito espírito, escritor distinto, que designaremos pelo nome de Luís. Fazia parte do grupo de notabilidades que, em dezembro último, partiu para o mundo dos Espíritos. Há alguns anos veio à nossa casa, onde testemunhou diversos casos de mediunidade; aí viu principalmente um sonâmbulo, que lhe deu evidentes provas de lucidez, em coisas que lhe eram inteiramente pessoais, mas nem por isto se convenceu da existência de um princípio espiritual.

Numa sessão do grupo do Sr. Desliens, em 22 de dezembro, ele veio espontaneamente comunicar-se por um dos médiuns, o Sr. Leymarie, sem que ninguém tivesse pensado nele.

Tinha morrido há oito dias. Eis o que fez escrever:

Que sonho singular!... sinto-me arrastado por um turbilhão, cuja direção não compreendo... Alguns amigos, que julgava mortos, convidaram-me para um passeio, e eis-nos arrastados. Para onde vamos? Olha!... estranha brincadeira! Para um grupo espírita!... Ah! que farsa engraçada, ver essa boa gente conscienciosamente reunida!... Conheço uma dessas figuras... Onde a vi? Não sei... (Era o Sr. Desliens, que se achava na sessão acima mencionada.) Talvez em casa desse bravo Allan Kardec, que uma vez quis provar-me que eu tinha uma alma, fazendo-me apalpar a imortalidade. Mas, em vão apelaram aos Espíritos, às almas: tudo falhou; como nesses jantares mal preparados, nenhum prato servido prestava. Entretanto, eu não desconfiava da boa-fé do sumo-sacerdote; julgo-o um homem honesto, mas um orgulhoso papalvo da assim chamada erraticidade.

Eu vos ouvi, senhores e senhoras, e vos apresento meus respeitosos cumprimentos. Escreveis, ao que me parece, e vossas mãos ágeis sem dúvida vão transcrever o pensamento dos invisíveis!... espetáculo inocente!... sonho insensato este meu! Eis um que escreve o que digo a mim mesmo... Mas absolutamente não sois divertidos, nem também meus amigos, que têm semblantes compassivos como os vossos. (Os Espíritos dos que haviam morrido antes dele, e que ele julga ver em sonho.)

Ah! certamente é uma estranha mania deste valente povo francês! Tiraram-lhe de uma vez a instrução, a fé, o direito, a liberdade de pensar e escrever, e esse bravo povo se atira em devaneios, em sonhos. Dorme acordado este país das Gálias e é maravilhoso vê-lo agir!

Entretanto, ei-los em busca de um problema insolúvel, condenado pela Ciência, pelos pensadores, pelos trabalhadores!... falta-lhes instrução... A ignorância é a lei de Loiola largamente  aplicada... têm diante de si todas as liberdades; podem atingir todos os abusos, destruí-los, enfim tornar-se seu senhor, senhor viril, econômico, sério, legal etc., e, como crianças pequenas, falta-lhes a religião, um papa, um cura, a primeira comunhão, o batismo, um guia para tudo e para sempre. Faltam chocalhos a essas crianças grandes, e os grupos espíritas ou espiritualistas lhes dão.

Ah! Se realmente houvesse um grão de verdade em vossas elucubrações! Mas haveria, para o materialista, matéria para o suicídio!... Olhai! Eu vivi largamente; desprezei a carne, revoltei-a; ri dos deveres de família, de amizade. Apaixonado, usei e abusei de todas as volúpias, e isto com a convicção de que obedecia às atrações da matéria, única lei verdadeira em vossa Terra, e isto eu repetirei ao meu despertar, com a mesma fúria, o mesmo ardor, a mesma habilidade. Tomarei a um amigo, a um vizinho, sua mulher, sua filha ou sua pupila, pouco importa, desde que, estando mergulhado nas delícias da matéria, eu renda homenagem a essa divindade, senhora de todas as ações humanas.

Mas, e se me tivesse enganado?... se tivesse deixado passar a verdade?... se, realmente, houvesse outras vidas anteriores e existências sucessivas após a morte?... se o Espírito fosse uma personalidade viva, eterna, progressiva, rindo da morte, retemperando-se no que chamamos provação?... então haveria um Deus de justiça e de bondade?... eu seria um miserável... e a escola materialista, culpada do crime de lesa-nação, teria tentado decapitar a verdade, a razão!... eu seria, ou antes, nós seríamos profundos celerados, refinados pretensamente liberais!... Oh! Então se estivésseis com a verdade, eu daria um tiro nos miolos ao despertar, tão certo quanto me chamo...

 

Na sessão da Sociedade de Paris, de 8 de janeiro, o mesmo Espírito vem manifestar-se novamente, não pela escrita, mas pela palavra, servindo-se do corpo do Sr. Morin, em sonambulismo espontâneo. Falou durante uma hora, e foi uma das cenas mais curiosas, porque o médium assumiu a sua pose, os gestos, a voz, a linguagem, a ponto de ser facilmente reconhecido pelos que o tinham visto. A conversa foi recolhida com cuidado e fielmente reproduzida, mas sua extensão não nos permite publicá-la. Aliás, não foi senão o desenvolvimento de sua tese; a todas as objeções e perguntas que lhe foram feitas, pretendeu tudo explicar pelo estado de sonho e, naturalmente, perdeu-se num labirinto de sofismas. Ele próprio lembrou os principais episódios da sessão a que aludira na sua comunicação escrita, e disse:

Eu bem tinha razão de dizer que tudo havia falhado. Olhai, eis a prova. Eu tinha feito esta pergunta: “Há um Deus? Pois bem! Todos os vossos pretensos Espíritos responderam afirmativamente. Vedes que estavam ao lado da verdade e não a conhecem mais do que vós”. Uma pergunta, entretanto, o embaraçou muito, por isso procurou constantes subterfúgios para dela se esquivar. Foi esta: “O corpo pelo qual nos falais não é o vosso, porque é magro e o vosso era gordo. Onde está o vosso verdadeiro corpo? Não está aqui, pois não estais em vossa casa. Quando se sonha, está-se em seu leito. Ide, pois, ver em vosso leito se o vosso corpo lá está e dizei-nos como podeis estar aqui sem o vosso corpo?

Perdendo a paciência por estas reiteradas perguntas, às quais apenas respondia pelas palavras: Efeitos bizarros dos sonhos, acabou dizendo: Bem vejo que queríeis despertar-me. Deixai-me. Desde então crê sonhar sempre.

Numa outra reunião, um Espírito deu sobre este fenômeno a seguinte comunicação:

Eis aqui uma substituição de pessoa, um disfarce. O Espírito recebe a liberdade ou cai na inação. Digo inação, isto é, a contemplação do que se passa. Está na posição de um homem, que momentaneamente empresta a sua residência e assiste às diversas cenas que aí são representadas com o auxílio de seus móveis. Se preferir gozar da liberdade, ele o pode, a menos que não tenha interesse em ficar como espectador.

Não é raro que um Espírito atue e fale com o corpo de um outro; deveis compreender a possibilidade desse fenômeno, quando sabeis que o Espírito pode retirar-se com o seu perispírito para mais ou menos longe de seu envoltório corporal. Quando o fato acontece sem que nenhum Espírito o aproveite para tomar o lugar, há catalepsia. Quando um Espírito deseja aí entrar para agir e tomar por um instante sua parte na encarnação, une o seu perispírito ao corpo adormecido, desperta-o por esse contato e dá o movimento à máquina. Mas os movimentos, a voz, não são os mesmos, porque os fluidos perispirituais não mais afetam o sistema nervoso da mesma maneira que o verdadeiro ocupante.

Essa ocupação jamais pode ser definitiva; para isto, seria preciso a desagregação absoluta do primeiro perispírito, o que levaria forçosamente à morte. Ela nem mesmo pode ser de longa duração, uma vez que o novo perispírito, não tendo sido unido a esse corpo desde a formação deste, nele não tem raízes; não tendo sido modelado por esse corpo, não é adequado ao funcionamento dos órgãos; o Espírito intruso aí não está numa posição normal; é incomodado em seus movimentos, razão por que deixa essa vestimenta de empréstimo, desde que dela não mais necessite.

Quanto à posição particular do Espírito em questão, não veio voluntariamente ao corpo de que se serviu para falar; a ele foi atraído pelo próprio Espírito Morin, que quis tirar prazer de seu embaraço; o outro, porque cedeu ao secreto desejo de se mostrar, ainda e sempre, como céptico e zombador, aproveitou a ocasião que lhe era oferecida. O papel um tanto ridículo que representou, por assim dizer malgrado seu, servindo-se de sofismas para explicar sua posição, é uma espécie de humilhação, cujo amargor sentirá ao despertar, e que lhe será proveitoso.

 

Observação – O despertar desse Espírito não poderá deixar de provocar observações instrutivas. Como se viu, em vida era um tipo de materialista sensualista; jamais teria aceitado o Espiritismo. Os homens dessa categoria buscam as consolações da vida nos prazeres materiais; não são da escola de Büchner pelo estudo; mas porque esta doutrina liberta do constrangimento imposto pela espiritualidade, ela deve, em sua opinião, estar certa.

Para eles, o Espiritismo não é um benefício, mas um constrangimento; não há provas que possam triunfar de sua obstinação; repelem-nas, menos por convicção do que por medo de que sejam verdadeiras.



[1] Revista Espírita – Fevereiro/1869 – Allan Kardec

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