Allan Kardec
Várias vezes têm sido vistos
Espíritos que ainda se julgam vivos, porque seu corpo fluídico lhes parece
tangível como seu corpo material. Eis um deles, numa posição pouco comum: não
se julgando morto, tem consciência de sua intangibilidade, mas, como em vida
era profundamente materialista, em crença e em gênero de vida, imagina que
sonha, e tudo quanto lhe foi dito não pôde arrancá-lo do erro, tão persuadido
está de que tudo acaba com o corpo. Era um homem de muito espírito, escritor
distinto, que designaremos pelo nome de Luís. Fazia parte do grupo de
notabilidades que, em dezembro último, partiu para o mundo dos Espíritos. Há
alguns anos veio à nossa casa, onde testemunhou diversos casos de mediunidade;
aí viu principalmente um sonâmbulo, que lhe deu evidentes provas de lucidez, em
coisas que lhe eram inteiramente pessoais, mas nem por isto se convenceu da
existência de um princípio espiritual.
Numa sessão do grupo do Sr.
Desliens, em 22 de dezembro, ele veio espontaneamente comunicar-se por um dos
médiuns, o Sr. Leymarie, sem que ninguém tivesse pensado nele.
Tinha morrido há oito dias. Eis
o que fez escrever:
Que sonho singular!...
sinto-me arrastado por um turbilhão, cuja direção não compreendo... Alguns
amigos, que julgava mortos, convidaram-me para um passeio, e eis-nos
arrastados. Para onde vamos? Olha!... estranha brincadeira! Para um grupo
espírita!... Ah! que farsa engraçada, ver essa boa gente conscienciosamente
reunida!... Conheço uma dessas figuras... Onde a vi? Não sei... (Era o Sr.
Desliens, que se achava na sessão acima mencionada.) Talvez em casa desse bravo
Allan Kardec, que uma vez quis provar-me que eu tinha uma alma, fazendo-me
apalpar a imortalidade. Mas, em vão apelaram aos Espíritos, às almas: tudo
falhou; como nesses jantares mal preparados, nenhum prato servido prestava.
Entretanto, eu não desconfiava da boa-fé do sumo-sacerdote; julgo-o um homem
honesto, mas um orgulhoso papalvo da assim chamada erraticidade.
Eu vos ouvi, senhores e
senhoras, e vos apresento meus respeitosos cumprimentos. Escreveis, ao que me
parece, e vossas mãos ágeis sem dúvida vão transcrever o pensamento dos
invisíveis!... espetáculo inocente!... sonho insensato este meu! Eis um que
escreve o que digo a mim mesmo... Mas absolutamente não sois divertidos, nem
também meus amigos, que têm semblantes compassivos como os vossos. (Os
Espíritos dos que haviam morrido antes dele, e que ele julga ver em sonho.)
Ah! certamente é uma estranha
mania deste valente povo francês! Tiraram-lhe de uma vez a instrução, a fé, o
direito, a liberdade de pensar e escrever, e esse bravo povo se atira em
devaneios, em sonhos. Dorme acordado este país das Gálias e é maravilhoso vê-lo
agir!
Entretanto, ei-los em busca
de um problema insolúvel, condenado pela Ciência, pelos pensadores, pelos
trabalhadores!... falta-lhes instrução... A ignorância é a lei de Loiola
largamente aplicada... têm diante de si
todas as liberdades; podem atingir todos os abusos, destruí-los, enfim
tornar-se seu senhor, senhor viril, econômico, sério, legal etc., e, como
crianças pequenas, falta-lhes a religião, um papa, um cura, a primeira
comunhão, o batismo, um guia para tudo e para sempre. Faltam chocalhos a essas
crianças grandes, e os grupos espíritas ou espiritualistas lhes dão.
Ah! Se realmente houvesse um
grão de verdade em vossas elucubrações! Mas haveria, para o materialista,
matéria para o suicídio!... Olhai! Eu vivi largamente; desprezei a carne,
revoltei-a; ri dos deveres de família, de amizade. Apaixonado, usei e abusei de
todas as volúpias, e isto com a convicção de que obedecia às atrações da
matéria, única lei verdadeira em vossa Terra, e isto eu repetirei ao meu
despertar, com a mesma fúria, o mesmo ardor, a mesma habilidade. Tomarei a um
amigo, a um vizinho, sua mulher, sua filha ou sua pupila, pouco importa, desde
que, estando mergulhado nas delícias da matéria, eu renda homenagem a essa
divindade, senhora de todas as ações humanas.
Mas, e se me tivesse
enganado?... se tivesse deixado passar a verdade?... se, realmente, houvesse
outras vidas anteriores e existências sucessivas após a morte?... se o Espírito
fosse uma personalidade viva, eterna, progressiva, rindo da morte,
retemperando-se no que chamamos provação?... então haveria um Deus de justiça e
de bondade?... eu seria um miserável... e a escola materialista, culpada do
crime de lesa-nação, teria tentado decapitar a verdade, a razão!... eu seria,
ou antes, nós seríamos profundos celerados, refinados pretensamente
liberais!... Oh! Então se estivésseis com a verdade, eu daria um tiro nos
miolos ao despertar, tão certo quanto me chamo...
Na sessão da Sociedade de Paris,
de 8 de janeiro, o mesmo Espírito vem manifestar-se novamente, não pela
escrita, mas pela palavra, servindo-se do corpo do Sr. Morin, em sonambulismo
espontâneo. Falou durante uma hora, e foi uma das cenas mais curiosas, porque o
médium assumiu a sua pose, os gestos, a voz, a linguagem, a ponto de ser
facilmente reconhecido pelos que o tinham visto. A conversa foi recolhida com
cuidado e fielmente reproduzida, mas sua extensão não nos permite publicá-la.
Aliás, não foi senão o desenvolvimento de sua tese; a todas as objeções e
perguntas que lhe foram feitas, pretendeu tudo explicar pelo estado de sonho e,
naturalmente, perdeu-se num labirinto de sofismas. Ele próprio lembrou os
principais episódios da sessão a que aludira na sua comunicação escrita, e
disse:
Eu bem tinha razão de dizer
que tudo havia falhado. Olhai, eis a prova. Eu tinha feito esta pergunta: “Há
um Deus? Pois bem! Todos os vossos pretensos Espíritos responderam
afirmativamente. Vedes que estavam ao lado da verdade e não a conhecem mais do
que vós”. Uma pergunta, entretanto, o embaraçou muito, por isso procurou
constantes subterfúgios para dela se esquivar. Foi esta: “O corpo pelo qual
nos falais não é o vosso, porque é magro e o vosso era gordo. Onde está o vosso
verdadeiro corpo? Não está aqui, pois não estais em vossa casa. Quando se
sonha, está-se em seu leito. Ide, pois, ver em vosso leito se o vosso corpo lá
está e dizei-nos como podeis estar aqui sem o vosso corpo?
Perdendo a paciência por estas
reiteradas perguntas, às quais apenas respondia pelas palavras: Efeitos
bizarros dos sonhos, acabou dizendo: Bem vejo que queríeis despertar-me.
Deixai-me. Desde então crê sonhar sempre.
Numa outra reunião, um Espírito
deu sobre este fenômeno a seguinte comunicação:
Eis aqui uma substituição de
pessoa, um disfarce. O Espírito recebe a liberdade ou cai na inação. Digo
inação, isto é, a contemplação do que se passa. Está na posição de um homem,
que momentaneamente empresta a sua residência e assiste às diversas cenas que
aí são representadas com o auxílio de seus móveis. Se preferir gozar da
liberdade, ele o pode, a menos que não tenha interesse em ficar como
espectador.
Não é raro que um Espírito
atue e fale com o corpo de um outro; deveis compreender a possibilidade desse
fenômeno, quando sabeis que o Espírito pode retirar-se com o seu perispírito
para mais ou menos longe de seu envoltório corporal. Quando o fato acontece sem
que nenhum Espírito o aproveite para tomar o lugar, há catalepsia. Quando um
Espírito deseja aí entrar para agir e tomar por um instante sua parte na
encarnação, une o seu perispírito ao corpo adormecido, desperta-o por esse
contato e dá o movimento à máquina. Mas os movimentos, a voz, não são os
mesmos, porque os fluidos perispirituais não mais afetam o sistema nervoso da
mesma maneira que o verdadeiro ocupante.
Essa ocupação jamais pode ser
definitiva; para isto, seria preciso a desagregação absoluta do primeiro
perispírito, o que levaria forçosamente à morte. Ela nem mesmo pode ser de
longa duração, uma vez que o novo perispírito, não tendo sido unido a esse
corpo desde a formação deste, nele não tem raízes; não tendo sido modelado por
esse corpo, não é adequado ao funcionamento dos órgãos; o Espírito intruso aí
não está numa posição normal; é incomodado em seus movimentos, razão por que
deixa essa vestimenta de empréstimo, desde que dela não mais necessite.
Quanto à
posição particular do Espírito em questão, não veio voluntariamente ao corpo de
que se serviu para falar; a ele foi atraído pelo próprio Espírito Morin, que
quis tirar prazer de seu embaraço; o outro, porque cedeu ao secreto desejo de
se mostrar, ainda e sempre, como céptico e zombador, aproveitou a ocasião que
lhe era oferecida. O papel um tanto ridículo que representou, por assim dizer
malgrado seu, servindo-se de sofismas para explicar sua posição, é uma espécie
de humilhação, cujo amargor sentirá ao despertar, e que lhe será proveitoso.
Observação – O
despertar desse Espírito não poderá deixar de provocar observações instrutivas.
Como se viu, em vida era um tipo de materialista sensualista; jamais teria
aceitado o Espiritismo. Os homens dessa categoria buscam as consolações da vida
nos prazeres materiais; não são da escola de Büchner pelo estudo; mas porque
esta doutrina liberta do constrangimento imposto pela espiritualidade, ela
deve, em sua opinião, estar certa.
Para eles, o Espiritismo não é
um benefício, mas um constrangimento; não há provas que possam triunfar de sua
obstinação; repelem-nas, menos por convicção do que por medo de que sejam
verdadeiras.
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