"Master Dixit" - Asley L. Mármore
Telma Maria Santos Machado − junho/2023
Magister dixit (O
mestre falou). Com esta expressão, os escolásticos referiam-se a
Aristóteles, cujo ensinamento encerrava a discussão. Ainda hoje, essa prática é
utilizada, quando participantes de uma querela lançam proposições de alguém
tido como mestre em determinada matéria, com o intuito de defender uma posição
contraditada por outrem, quando os argumentos expostos não são suficientes para
convencer os demais.
Mas o que foi a Escolástica,
período no qual era tão comum o uso da expressão? Explicam os autores Reale e
Antiseri, na magnífica obra História da Filosofia, que a Escolástica,
na sua gênese e nos seus desenvolvimentos, representa toda a era medieval,
que mais do que um conjunto de doutrinas, entende-se por Escolástica a
filosofia e a teologia que eram ensinadas nas escolas medievais[2],
ainda acrescentando[3]:
Por Escolástica entendemos precisamente aquele corpo
doutrinário que, inicialmente, de forma bastante inorgânica e depois de modo
sempre mais sistemático, foi elaborado nesses centros de estudo, nos quais
encontramos, dedicados a escrever e a ensinar, homens criativos, frequentemente
dotados de grande capacidade de crítica.
Com esse binômio “razão” e “fé” queremos indicar o
“programa de pesquisa” fundamental da Escolástica, que vai do uso acrítico da
razão e da consequente aceitação da doutrina cristã com base na “autoridade” às
primeiras tentativas de penetração racional da Revelação e às construções
sistemáticas, que têm e interpretam as verdades cristãs de forma argumentada, e
de agudeza lógica.
Cristã, a Doutrina Espírita, em
seu nascedouro, graças ao preparo intelectual de Kardec, que seguramente tinha
vasto conhecimento das várias correntes filosóficas, desde o início valeu-se da
dúvida como encruzilhada nos caminhos da razão, porque, quando o pensamento
se lança na busca de um objeto e se depara com dois caminhos divergentes, pode
ficar indeciso, conforme pondera o inesquecível Herculano Pires[4]
no livro Agonia das Religiões, acrescentando que no Espiritismo a
dúvida é considerada como condição necessária à busca da verdade. Kardec a
aconselha como método de controle das manifestações mediúnicas e de estudo dos
princípios doutrinários.
À luz do parágrafo acima,
portanto, a Doutrina Espírita não se compraz com o Magister dixit, salvo
quando se trata de Jesus, nosso Mestre, Modelo e Guia. Ou seja, por mais que
admiremos algum autor, palestrante, médium, passista ou outro divulgador da
Doutrina Espírita, não devemos tomar como certeza o que diz sem passar suas
palavras pelo crivo da razão, daí ser indispensável o estudo das Obras Básicas,
assim como de outras que estejam em harmonia com elas, a fim de que tenhamos
condições de averiguar a concordância ou não do que difundem com as lições
doutrinárias.
O espírita deve ter consciência
de que todos estão sujeitos ao progresso espiritual e que, sendo imperfeitos,
cometem equívocos. Assim, a busca de conhecimento e a reflexão são essenciais
para a desconstrução do leitor passivo, que absorve páginas e páginas sem
análise crítica da pertinência ou não do que lê. E é a partir desse
amadurecimento intelectual e espiritual que, nas várias existências,
constrói-se o caminho para a transcendência, conforme tão bem explica Herculano
Pires ao comentar sobre a Filosofia Existencial, uma doutrina filosófica que
surgiu no século XIX e ganhou notoriedade no século XX[5]:
[…]. Os existencialistas consideram o homem como um
projeto, ou seja, um ser projetado na existência como uma flecha em direção a
um alvo, que é a transcendência. Mas no Espiritismo as existências são muitas e
sucessivas, de maneira que em cada existência terrena atingimos um novo grau de
transcendência. As pesquisas parapsicológicas atuais sobre a reencarnação
confirmam esse princípio.
Há de se ter em mente que, por
mais sábio que seja alguém, sempre tem a aprender, porque a complexidade da
natureza e do Universo não são apreensíveis em sua amplitude, nem mesmo em
diversas encarnações, porque domínio completo sobre a criação somente quem a
criou tem, no caso, Deus, Inteligência Suprema e Causa Primeira de todas as
coisas, conforme resposta dada pelos Espíritos à questão primeira da obra
inaugural do Espiritismo.
O exemplo de humildade de
Sócrates deve nos inspirar: segundo é narrado, Querofonte se dirigiu ao Oráculo
de Delfos para consultar a pitonisa e lá indagou quem era o homem mais sábio de
Atenas, ao que lhe foi respondido que era Sócrates. Ao saber dessa resposta,
Sócrates incialmente não concordou, mas depois de passar a vida dialogando com
diversas outras personalidades, que caíam em contradição, o eminente filósofo
compreendeu que era considerado o mais sábio por saber que nada sabia. Por
óbvio que o nada aí é uma força de expressão que visa a realçar o quanto o
aprendizado é contínuo e infindável.
[1] MUNDO ESPÍRITA - Junho de 2023 Número 1667 Ano
90 - http://www.mundoespirita.com.br/?materia=o-magister-dixit-e-a-doutrina-espirita
[2] REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da
Filosofia. São Paulo: Paulus, 2005. v. II, p. 120-121.
[3] Op. cit. p. 125.
[4] PIRES. J. Herculano. “Agonia das Religiões”. São
Paulo: Paideia, 1976. cap. 9.
[5] ______. “Obsessão, Passe e Doutrinação”. São Paulo:
Paideia, 2008. A obsessão. O sentido da vida.
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