sexta-feira, 16 de junho de 2023

O MAGISTER DIXIT E A DOUTRINA ESPÍRITA[1]

 

 

"Master Dixit" - Asley L. Mármore


Telma Maria Santos Machado − junho/2023

 

Magister dixit (O mestre falou). Com esta expressão, os escolásticos referiam-se a Aristóteles, cujo ensinamento encerrava a discussão. Ainda hoje, essa prática é utilizada, quando participantes de uma querela lançam proposições de alguém tido como mestre em determinada matéria, com o intuito de defender uma posição contraditada por outrem, quando os argumentos expostos não são suficientes para convencer os demais.

Mas o que foi a Escolástica, período no qual era tão comum o uso da expressão? Explicam os autores Reale e Antiseri, na magnífica obra História da Filosofia, que a Escolástica, na sua gênese e nos seus desenvolvimentos, representa toda a era medieval, que mais do que um conjunto de doutrinas, entende-se por Escolástica a filosofia e a teologia que eram ensinadas nas escolas medievais[2], ainda acrescentando[3]:

Por Escolástica entendemos precisamente aquele corpo doutrinário que, inicialmente, de forma bastante inorgânica e depois de modo sempre mais sistemático, foi elaborado nesses centros de estudo, nos quais encontramos, dedicados a escrever e a ensinar, homens criativos, frequentemente dotados de grande capacidade de crítica.

Com esse binômio “razão” e “fé” queremos indicar o “programa de pesquisa” fundamental da Escolástica, que vai do uso acrítico da razão e da consequente aceitação da doutrina cristã com base na “autoridade” às primeiras tentativas de penetração racional da Revelação e às construções sistemáticas, que têm e interpretam as verdades cristãs de forma argumentada, e de agudeza lógica.

Cristã, a Doutrina Espírita, em seu nascedouro, graças ao preparo intelectual de Kardec, que seguramente tinha vasto conhecimento das várias correntes filosóficas, desde o início valeu-se da dúvida como encruzilhada nos caminhos da razão, porque, quando o pensamento se lança na busca de um objeto e se depara com dois caminhos divergentes, pode ficar indeciso, conforme pondera o inesquecível Herculano Pires[4] no livro Agonia das Religiões, acrescentando que no Espiritismo a dúvida é considerada como condição necessária à busca da verdade. Kardec a aconselha como método de controle das manifestações mediúnicas e de estudo dos princípios doutrinários.

À luz do parágrafo acima, portanto, a Doutrina Espírita não se compraz com o Magister dixit, salvo quando se trata de Jesus, nosso Mestre, Modelo e Guia. Ou seja, por mais que admiremos algum autor, palestrante, médium, passista ou outro divulgador da Doutrina Espírita, não devemos tomar como certeza o que diz sem passar suas palavras pelo crivo da razão, daí ser indispensável o estudo das Obras Básicas, assim como de outras que estejam em harmonia com elas, a fim de que tenhamos condições de averiguar a concordância ou não do que difundem com as lições doutrinárias.

O espírita deve ter consciência de que todos estão sujeitos ao progresso espiritual e que, sendo imperfeitos, cometem equívocos. Assim, a busca de conhecimento e a reflexão são essenciais para a desconstrução do leitor passivo, que absorve páginas e páginas sem análise crítica da pertinência ou não do que lê. E é a partir desse amadurecimento intelectual e espiritual que, nas várias existências, constrói-se o caminho para a transcendência, conforme tão bem explica Herculano Pires ao comentar sobre a Filosofia Existencial, uma doutrina filosófica que surgiu no século XIX e ganhou notoriedade no século XX[5]:

[…]. Os existencialistas consideram o homem como um projeto, ou seja, um ser projetado na existência como uma flecha em direção a um alvo, que é a transcendência. Mas no Espiritismo as existências são muitas e sucessivas, de maneira que em cada existência terrena atingimos um novo grau de transcendência. As pesquisas parapsicológicas atuais sobre a reencarnação confirmam esse princípio.

Há de se ter em mente que, por mais sábio que seja alguém, sempre tem a aprender, porque a complexidade da natureza e do Universo não são apreensíveis em sua amplitude, nem mesmo em diversas encarnações, porque domínio completo sobre a criação somente quem a criou tem, no caso, Deus, Inteligência Suprema e Causa Primeira de todas as coisas, conforme resposta dada pelos Espíritos à questão primeira da obra inaugural do Espiritismo.

O exemplo de humildade de Sócrates deve nos inspirar: segundo é narrado, Querofonte se dirigiu ao Oráculo de Delfos para consultar a pitonisa e lá indagou quem era o homem mais sábio de Atenas, ao que lhe foi respondido que era Sócrates. Ao saber dessa resposta, Sócrates incialmente não concordou, mas depois de passar a vida dialogando com diversas outras personalidades, que caíam em contradição, o eminente filósofo compreendeu que era considerado o mais sábio por saber que nada sabia. Por óbvio que o nada aí é uma força de expressão que visa a realçar o quanto o aprendizado é contínuo e infindável.



[1] MUNDO ESPÍRITA - Junho de 2023 Número 1667 Ano 90 - http://www.mundoespirita.com.br/?materia=o-magister-dixit-e-a-doutrina-espirita

[2] REALE, Giovanni; ANTISERI, Dario. História da Filosofia. São Paulo: Paulus, 2005. v. II, p. 120-121.

[3] Op. cit. p. 125.

[4] PIRES. J. Herculano. “Agonia das Religiões”. São Paulo: Paideia, 1976. cap. 9.

[5] ______. “Obsessão, Passe e Doutrinação”. São Paulo: Paideia, 2008. A obsessão. O sentido da vida.

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