Veronica Smink - 4 março 2023
Nas últimas décadas, muitas das
pesquisas científicas que tentaram desvendar o funcionamento do corpo humano
concentraram-se em estudar três sistemas principais: o genoma, o proteoma
e o microbioma.
O genoma é a sequência de DNA
que todo organismo possui e contém sua informação genética completa. Já o
proteoma é o conjunto de proteínas fabricadas pelos genes – os tijolos
essenciais da vida. E o microbioma é o ecossistema de micro-organismos que
vivem no corpo e são fundamentais para a saúde.
Começa agora a aumentar o
interesse por outro sistema que é fundamental para a vida, não só dos seres
humanos, mas também das plantas e de outros animais: a rede bioelétrica que faz
os organismos funcionarem. Alguns cientistas começaram a chamá-la de electroma.
Assim como os sinais
elétricos sustentam as redes de comunicação do mundo, estamos descobrindo que
eles fazem o mesmo no nosso corpo: a bioeletricidade é a forma em que as nossas
células se comunicam entre si, explica em um artigo recente no site da
organização britânica. Nesta a divulgadora científica Sally Adee,
especialista neste campo e autora do livro “We Are Electric” (“Somos
elétricos”, em tradução livre), lançado em fevereiro de 2023.
Algumas pessoas atribuem a
Adee a criação do neologismo “electroma”. Ela afirma que “não podemos
subestimar a forma total e absoluta em que todos os seus movimentos, percepções
e pensamentos – e os meus – são controlados pela eletricidade.
Ela destaca que compreender o
electroma é fundamental porque, se interviermos no processo bioelétrico do
corpo, poderemos consertá-lo quando houver algo de errado, seja por trauma,
defeitos de nascimento ou câncer.
Como funciona
O professor emérito de biologia
do câncer Mustafa Djamgoz, do Imperial College de Londres, é um dos primeiros
cientistas a aplicar a bioeletricidade no tratamento desta doença.
Djamgoz também leciona
neurobiologia na mesma universidade e estuda os processos bioelétricos do corpo
há décadas. Desde 2019, ele é coeditor-chefe de “Bioelectricity”, a
única revista científica dedicada a este campo.
Mas, antes de entender como usar
a bioeletricidade para tratar do câncer, a BBC News Mundo – o serviço em
espanhol da BBC – pediu a Djamgoz que explicasse o que é essa corrente e como
ela é gerada dentro do nosso corpo.
Todos os elementos que temos no nosso corpo, como o
sódio, potássio, cálcio, magnésio e zinco, passam por uma reação química que
causa a separação dos seus átomos, formando o que se conhece como íons, que são
partículas eletricamente carregadas, explica o professor.
Os fluidos do nosso corpo estão repletos destes íons.
Os de carga oposta se atraem e os que possuem a mesma carga se repelem”, prossegue
ele. E, quando circulam pelo nosso corpo, eles geram uma corrente.
Djamgoz ressalta que é uma
corrente com potência muito baixa: apenas 70 milivolts. Como termo de
comparação, uma pilha AA comum tem 1,5 mil milivolts. Mas a bioeletricidade do
corpo é fundamental para seu funcionamento, segundo ele, já que é através
desses sinais elétricos que as diferentes partes do corpo se comunicam.
Lei fundamental
Djamgoz destaca que a rede bioelétrica
do corpo funciona sob os mesmos princípios fundamentais aplicados a qualquer
circuito elétrico, incluindo a lei de Ohm, que estabelece que a tensão é igual
à corrente, multiplicada pela resistência.
A grande diferença é que,
enquanto a eletricidade tradicional se move ao longo do núcleo condutor dentro
de um cabo, a bioeletricidade é gerada por íons que fluem através da membrana
celular (a cobertura).
Como a membrana tem função de
vedação, os íons, para penetrar na célula, devem atravessar uma espécie de
comporta – proteínas chamadas de canais iônicos, incrustadas na
membrana. Quando os íons fluem por esses canais, produz-se a condução elétrica.
Para o especialista, é um
paradoxo que o sistema bioelétrico tenha sido muito menos estudado que outros
sistemas que regem o corpo, como o genoma, já que sua compreensão apresenta
muito menos dificuldade.
Temos 22 mil genes e cada pessoa tem uma composição
genética diferente. Por isso é que temos medicina personalizada, segundo
ele. Mas, na bioeletricidade, existe uma única lei fundamental, aplicada a
todos.
Djamgoz também destaca que todas
as células e tecidos do nosso corpo – neurônios, nervos, músculos, cartilagens,
intestino etc. – utilizam o mesmo processo para se comunicar.
Quando pensamos nas propriedades elétricas do corpo,
pensamos em primeiro lugar no cérebro, no coração e nos músculos, mas a
realidade é que até os micróbios do nosso intestino, o sistema imunológico e as
células cancerígenas geram sinais elétricos, afirma ele.
Para o professor, a
bioeletricidade realmente é uma das forças ou mecanismos mais fundamentais da
natureza.
O câncer
Voltando à aplicação da
bioeletricidade para impedir o avanço do câncer, o tratamento revolucionário
sendo desenvolvido por Djamgoz está relacionado com a forma de transmissão dos
sinais elétricos dentro do corpo.
Já mencionamos que, para entrar
e sair das células, os íons (átomos com carga elétrica) utilizam canais
iônicos, que são proteínas presentes nas membranas celulares. Elas funcionam
como comportas – quando elas se abrem, o íon pode passar.
No caso do câncer, que é
basicamente uma doença que ocorre quando as células crescem e se propagam de
forma descontrolada, o professor explica que esses canais iônicos desempenham
papel fundamental, já que são eles que controlam a proliferação e a migração
das células.
Graças às pesquisas iniciadas
pelo especialista na década de 1990, ele e sua equipe descobriram um dado
revelador: as células cancerígenas ficam agressivas – ou seja, elas tendem a se
multiplicar e propagar – quando são eletricamente excitáveis.
As células cancerígenas geram
um zumbido de atividade elétrica e isso as torna hiperativas, explica
Djamgoz.
Este dado é muito importante,
segundo o professor, porque
o problema do câncer não é ter um tumor. Você pode
viver com um tumor, desde que seja local. O problema aumenta quando o câncer se
propaga, em um processo que chamamos de metástase.
Djamgoz descobriu que a chave
para interromper esse crescimento hiperativo é fechar as comportas elétricas
das células – ou seja, bloquear os canais iônicos, mais especificamente os
canais de íons de sódio, que são os responsáveis por causar a excitação
eletrônica que promove o crescimento do câncer.
Utilizando produtos
farmacêuticos para bloquear esses canais, o professor conseguiu interromper a
proliferação e a propagação de células cancerígenas em animais. Seu próximo
desafio é realizar testes em seres humanos, o que é um processo muito mais
complexo.
Mas ele defende que já tem
indícios de que a técnica também poderá funcionar em pessoas.
O especialista em ciências
biomédicas William Brackenbury, da Universidade de York, no Reino Unido, é
ex-estudante de doutorado de Djamgoz. No final de 2022, ele publicou os
resultados de um estudo epidemiológico que analisou informações de 53 mil
pacientes com câncer de três tipos: mama, próstata e cólon.
Cerca de 150 desses pacientes
também tinham angina crônica, uma doença coronariana que é tratada utilizando
um medicamento chamado ranolazina, que bloqueia os canais de íons de
sódio em condições de baixo nível de oxigênio, que também são produzidas nos
tumores em crescimento.
O estudo demonstrou que as
pessoas que tomaram o bloqueador sobreviviam, em média, por 60% mais tempo que
os demais pacientes de câncer que não estavam tomando esse produto.
Medicamentos como a ranolazina podem transformar
os cânceres agressivos em estado benigno, ou seja, sem metástase, permitindo
que os pacientes vivam com o câncer de forma crônica, como o diabetes, segundo
o especialista. Isso também elimina os efeitos secundários tóxicos e
indesejáveis de tratamentos como a quimioterapia.
Djamgoz patenteou seu tratamento
contra o câncer usando o bloqueador de canais de íons de sódio em vários
países, incluindo o Reino Unido, Japão, Canadá, Austrália e Estados Unidos.
Outros usos médicos
Mas a bioeletricidade não tem
potencial apenas para a cura do câncer. A mesma excitação eletrônica que
faz com que as células cancerígenas se multipliquem pode ser usada com outro
objetivo positivo: a cura de feridas.
Sally Adee explica que já foi
descoberto que as células da pele geram um campo elétrico quando são
lesionadas.
A corrente da ferida chama o tecido vizinho, atraindo
ajudantes como agentes curativos, macrófagos para limpar a desordem e células
reparadoras de tecido de colágeno, chamadas fibroblastos, explica ela.
Em 2012, o cientista Richard
Nuccitelli conseguiu medir a corrente elétrica das feridas e concluiu que ela
aumenta quando há a lesão, é reduzida à medida que a ferida sara e volta a ser
indetectável quando a cura está completa.
Adee também descobriu que as
pessoas cuja corrente de tensão era fraca curavam-se mais lentamente do que
aquelas cuja corrente de lesão era mais forte. Além disso, a força da
corrente da ferida é reduzida com a idade, emitindo um sinal com a metade da
força nas pessoas maiores de 65 anos, em relação aos menores de 25 anos de
idade, segundo detalha a especialista no seu artigo.
Esta descoberta levou alguns
cientistas a tentar estimular a eletricidade natural do corpo para acelerar a
cura de feridas.
Dois estudos publicados na
última década sobre o tratamento de uma das feridas mais difíceis de curar (as
escaras, que afetam principalmente as pessoas acamadas), demonstraram que o
estímulo elétrico quase duplicou sua taxa de cura, segundo Adee,
mencionando os trabalhos de Koel e Hoghton, em 2014, e de Girgis e Duarte, em
2018.
A divulgadora científica destaca
que existem até evidências de que a mesma técnica pode acelerar a cura de ossos
fraturados.
Por que não é utilizada?
A grande pergunta é: se já
existem pesquisas que demonstram que a bioeletricidade do corpo pode ser
alterada para ajudar na nossa cura, por que os médicos não estão aplicando
estas técnicas?
Djamgoz aponta três motivos
principais.
Primeiro, a profissão médica
é muito conservadora, afirma ele. Leva muito tempo para que as ideias
mudem.
Se você pegar, por exemplo, o
caso do câncer, nós ainda o tratamos usando quimioterapia, radioterapia e técnicas
e métodos de tratamento que têm mais de 50 anos, explica o professor.
Parte deste conservadorismo está
relacionada ao fato de que estamos lidando com a vida humana, segundo
ele, e existe medo de cometer erros. Mas, na prática, quando alguém quer testar
algo que está fora do convencional, a reação instintiva é se opor.
Um dos motivos por que não há
mais pessoas assumindo riscos é que não existe financiamento. As pessoas querem
se ater ao seguro, destaca Djamgoz.
A segunda razão da falta de
investimento neste campo é o fator comercial.
“As grandes empresas farmacêuticas que desenvolvem
medicamentos caros não querem necessariamente este tipo de medicação, que é
barata”, explica o especialista.
Já o terceiro e último motivo
indicado pelo professor Djamgoz é mais curioso: para usar a bioeletricidade, é
preciso conhecer um pouco de física e, segundo ele, o médico ou biólogo
comum tem medo desta disciplina científica.
Existe quase que um
preconceito... eles dizem ‘meu Deus, isso é física, não entendo’.
Adee menciona um estudo de 2019,
realizado pela Universidade Goethe, da Alemanha, e pela Universidade do Novo
México, nos Estados Unidos, que concluiu que a ideia de que a eletricidade é
relevante na biologia ainda é muito nova e contraria a intuição para que tenha
ampla aceitação.
Até quando os médicos já
ouviram falar, eles não sabem como usá-la, destaca.
Dois dos cientistas que
participaram deste estudo, que analisou os motivos por que poucos cirurgiões
ortopédicos utilizam o estímulo elétrico para curar fraturas, embora
funcione tão bem, concordaram com o professor do Imperial College sobre os
dois primeiros motivos apontados por ele.
Mas a especialista russa em
medicina regenerativa Liudmila Leppik e o cirurgião plástico e especialista em
ortopedia argentino-americano John Barker afirmaram à BBC News Mundo que não
acreditam que a falta de conhecimento dos médicos sobre física seja um dos
problemas.
Não acredito que nenhum de
nós, médicos, compreenda profundamente os mecanismos de funcionamento de
nenhuma das drogas que administramos aos pacientes e, mesmo assim, nós as
administramos todos os dias, afirma Barker, que trabalhou por décadas com
estímulos elétricos e hoje é aposentado.
Já para Leppik, o médico e o
biólogo médio estudaram física na universidade e acredito que eles entendam os
conceitos básicos da eletricidade. Mas eles também compreendem o pouco que
sabem com relação às reações celulares à eletricidade.
Neste sentido, o trabalho no
qual ambos colaboraram demonstrou que não existem diretrizes claras que
especifiquem como utilizar a eletricidade em um consultório ou mesa de
operações.
Também não está claro se deve
ser usada corrente direta ou alternada, qual deve ser o tempo de aplicação e
qual tensão deve ser empregada. E outro fator fundamental demonstrado pelo
estudo é que ainda não existem ferramentas padronizadas para uso pelos médicos
com seus pacientes.
'Questão de tempo'
Apesar das limitações, os
especialistas estão de acordo sobre o enorme potencial do campo da
bioeletricidade.
Mustafa Djamgoz destaca que o
financiamento desta área da ciência está crescendo. É um dos principais
desenvolvimentos que estão por acontecer. É apenas questão de tempo, prevê
o professor.
Já John Barker adverte que,
embora o potencial seja inquestionável, a ciência não costuma avançar de forma
linear.
Para ele, a eletricidade
serve para curar. Ponto. Existem muitas pesquisas que o comprovam.
Mas, 40 ou 50 anos atrás,
também sabíamos que os carros eletrônicos tinham muitas vantagens e, mesmo
assim, foi preciso chegar o maluco do Elon Musk, que brincou de investir nessa
indústria, para mudar o “status quo”, destaca Barker.
O especialista acredita que o
interesse pelo uso da eletricidade na medicina certamente irá aumentar, agora
que está explorando o campo da microeletrônica. Não tenho dúvida de que será
um grande avanço. Falta apenas desenvolver um dispositivo que seja fácil de
usar.
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