terça-feira, 2 de maio de 2023

UMA CONVERSÃO[1]

 


Allan Kardec

 

A evocação seguinte não desperta menor interesse, embora sob um outro ponto de vista.

Um senhor, que designaremos sob o nome de Georges, farmacêutico numa cidade do sul, havia perdido o pai há pouco tempo, objeto de toda a sua ternura e de uma profunda veneração.

O pai do Sr. Georges aliava a uma instrução muito vasta todas as qualidades que distinguem o homem de bem, embora professasse opiniões muito materialistas. A esse respeito o filho partilhava e até mesmo excedia as ideias do pai; duvidava de tudo, de Deus, da alma, da vida futura. O Espiritismo não poderia reconhecer como verdadeiros tais pensamentos. Todavia, a leitura de O Livro dos Espíritos produziu nele uma certa reação, corroborada por uma entrevista direta que tivemos com ele. Se meu pai – disse – pudesse responder-me, não duvidaria mais. Foi então que ocorreu a evocação que iremos relatar e na qual encontraremos mais de um ensinamento.

 

– Em nome do Todo-Poderoso, peço se manifeste o Espírito de meu pai. Estais perto de mim? Sim.

– Por que não vos manifestastes diretamente a mim, quando tanto nos amamos? Mais tarde.

– Poderemos nos reencontrar um dia? Sim, breve.

– Haveremos de nos amar, como nesta vida? Mais.

– Em que meio estais? Sou feliz.

– Estais reencarnado ou errante? Errante por pouco tempo.

– Que sensação experimentastes quando deixastes vosso invólucro corporal? Perturbação.

– Quanto tempo durou essa perturbação? Pouco para mim; bastante para ti.

– Podeis avaliar a duração dessa perturbação conforme nossa maneira de contar? Dez anos para ti, dez minutos para mim.

– Mas, não se passou esse tempo todo desde que vos perdi; não há somente quatro meses? Se estivesses em meu lugar, terias sentido esse tempo.

– Acreditais agora em um Deus justo e bom? Sim.

– Acreditáveis nele quando estáveis na Terra? Eu tinha a presciência, mas não acreditava nele.

– Deus é Todo-Poderoso? Não me elevei até Ele para avaliar a sua força; somente Ele conhece os limites de seu poder, porque só Ele é seu igual.

– Ocupa-se Ele dos homens? Sim.

– Seremos punidos ou recompensados conforme nossos atos? Se fazes o mal, sofrer-lhe-ás as consequências.

– Serei recompensado se fizer o bem? Avançarás na tua rota.

– Estou no caminho certo? Faze o bem e nele estarás.

– Acredito ser bom, mas estaria melhor se um dia, como recompensa, vos encontrasse. Que esse pensamento te sustente e te encoraje!

– Meu filho será bom como seu avô? Desenvolve suas virtudes, abafa seus vícios.

– Custo a crer que estamos nos comunicando, tão maravilhoso me parece este momento. De onde provém tua dúvida?

– De que, partilhando vossas opiniões filosóficas, fui levado a tudo atribuir à matéria. Vês de noite o que vês de dia?

– Estou, pois, nas trevas, meu pai? Sim.

– Que vedes de mais maravilhoso? Explica-te melhor.

– Reencontrastes minha mãe, minha irmã e Ana, a boa Ana? Eu as revi.

- Vede-as quando quiserdes? Sim.

– Achais penoso ou agradável que me comunique convosco? Para mim é uma felicidade, se posso te conduzir ao bem.

– Voltando para casa, o que poderia fazer para comunicar-me convosco, o que me faz tão feliz? Isso serviria para conduzir-me melhor e me ajudaria a melhor educar os meus filhos. Cada vez que um impulso te conduzir ao bem, sou eu; serei eu a inspirar-te.

– Calo-me, com receio de importunar-vos. Se queres ainda, fala.

– Visto que permitis, dirigir-vos-ei ainda algumas perguntas. De que afecção morrestes? Minha prova havia alcançado seu termo.

– Onde contraístes o abscesso pulmonar que se manifestou? Pouco importa; o corpo nada é; o Espírito é tudo.

– Qual a natureza da doença que me desperta tão frequentemente, à noite? Sabê-lo-ás mais tarde.

– Considero grave minha afecção, e queria viver ainda para os meus filhos. Ela não o é; o coração do homem é uma máquina de vida; deixa a natureza agir.

– Visto que estais presente aqui, sob que forma vos apresentais? Sob a aparência de minha forma corpórea.

– Estais em um local determinado? Sim, atrás de Ermance (a médium).

– Poderíeis tornar-vos visível a nós? Para quê? Teríeis medo.

– Vede-nos todos, aqui reunidos? Sim.

– Tendes uma opinião de cada um de nós? Sim.

– Poderíeis dizer-nos alguma coisa? Em que sentido me fazes essa pergunta?

– Do ponto de vista moral. De outra vez; por hoje é bastante.

 

O efeito produzido no Sr. Georges por essa comunicação foi imenso; uma luz inteiramente nova já parecia clarear-lhe as ideias; uma sessão que houve no dia seguinte, na casa da Sra. Roger, sonâmbula, terminou por dissipar as poucas dúvidas que lhe restavam. Eis um resumo da carta que, a respeito, nos escreveu:

Essa senhora entrou espontaneamente em detalhes comigo, tão precisos, com respeito a meu pai, minha mãe, meus filhos, minha saúde; descreveu todas as circunstâncias de minha vida com tal precisão, relembrando mesmo certos fatos que há longo tempo se me haviam apagado da memória; numa palavra, deu-me provas tão patentes dessa faculdade maravilhosa da qual são dotados os sonâmbulos lúcidos, que a reação das ideias foi completa em mim desde esse momento. Na evocação, meu pai havia revelado a sua presença; na sessão sonambúlica eu era, a bem dizer, testemunha ocular da vida extracorpórea, da vida da alma. Para descrever com tanta minúcia e exatidão, e a duas centenas de léguas de distância, o que de mim somente era conhecido, era preciso ver; ora, uma vez que isso não era possível com os olhos do corpo, haveria, portanto, um laço misterioso, invisível, que ligava a sonâmbula às pessoas e às coisas ausentes, e que ela jamais tinha visto; havia, pois, algo fora da matéria; o que poderia ser esse algo, senão aquilo que se chama alma, o ser inteligente, do qual o corpo é apenas o invólucro, mas cuja ação se estende muito além de nossa esfera de ação?

 

Hoje, não somente o Sr. Georges deixou de ser materialista, como é um dos mais fervorosos e zelosos adeptos do Espiritismo, o que o faz duplamente feliz, pela confiança que o futuro agora lhe inspira e pelo prazer que experimenta em praticar o bem.

Essa evocação, bem simples à primeira vista, não é menos notável em muitos aspectos. O caráter do Sr. Georges, pai, reflete-se nas respostas breves e sentenciosas que estavam em seus hábitos; falava pouco, jamais dizia uma palavra inútil; não é mais o céptico que fala: reconhece seu erro; seu Espírito é mais livre, mais clarividente, retratando a unidade e o poder de Deus por estas admiráveis palavras: “Só Ele é seu igual”; aquele que em vida referia tudo à matéria, diz agora: “O corpo nada é, o Espírito é tudo”; e esta outra frase sublime: “Vês à noite o que vês de dia”? Para o observador atento tudo tem uma importância, e é assim que a cada passo encontra a confirmação das grandes verdades ensinadas pelos Espíritos.



[1] Revista Espírita – Janeiro/1858 – Allan Kardec

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