Can near death
experiences (NDEs) contribute to the debate on consciousness?
Resumo
A EQM é um estado alterado
de consciência que no ocidente inclui uma experiência emocional e de conteúdo
estereotipado. Algumas características da experiência são transculturais e
sugerem ou um mecanismo cerebral similar ou acesso a uma realidade
transcendente. Características individuais da experiência indicam mais
persuasivamente para transcendência que para um simples mecanismo cerebral
limitado. Além disso, não há, até agora, nenhuma explicação reducionista que
possa dar conta satisfatoriamente de algumas dessas características: o encontro
com parentes falecidos, a aparente capacidade visual em cegos durante a EQM, a
aparente aquisição de dons psíquicos e espirituais após a EQM, relato de cura
ocorrida durante uma EQM e experiências verídicas durante a ressuscitação
pós-parada cardíaca. Embora uma mente não local pudesse explicar muito das
características das EQM, a não localidade ainda não é aceita pela corrente
predominante da neurociência. Somente aquelas teorias baseadas num entendimento
mais amplo da mente poderiam explicar totalmente a experiência subjetiva dos
que vivenciaram uma EQM.
Fenwick P./ Rev. Psiq.
Clín. 2013;40(5):203-7
Palavras-chave: Experiência
de quase morte, consciência, mente não local, visão mental, dom psíquico.
Abstract
The NDE is an altered state
of consciousness which in the West has stereotyped content and emotional
experience. Some features of the experience are transcultural and suggest
either a similar brain mechanism or access to a transcendent reality.
Individual features of the experience point more persuasively to transcendence
than to simple limited brain mechanisms. Moreover there are, so far, no
reductionist explanations which can account satisfactorily for some of its
features; the meeting of dead relatives, the apparent “sightedness” in the
blind during an NDE, the apparent acquisition after an NDE of psychic and
spiritual gifts, accounts of healing occurring during an NDE, and of veridical
experience during the resuscitation after a cardiac arrest. Although non-local
mind would explain many of the NDE features, non locality is not yet accepted
by mainstream neuroscience. Only those theories based on a wider understanding
of mind could fully explain the subjective experience of the NDEr.
Fenwick P./ Rev. Psiq.
Clín. 2013;40(5):203-7
Keywords: NDE,
consciousness, non-local mind, mind sight, psychic gifts.
Introdução
Faz mais de 30 anos desde que Raymond
Moody publicou sua obra seminal – Life After Life (1975)[4].
Esse livro descreveu as EQM e trouxe-as à atenção dos públicos leigo e médico.
Muitos leigos interpretaram essas experiências como prova de uma extensão da consciência
para além da morte (embora o Dr. Moody nunca tenha feito essa afirmação
diretamente), enquanto a categoria médica sugeria que mudanças químicas no
cérebro eram inteiramente responsáveis pelas experiências.
Noyes e Slymen[5],
na primeira tentativa de uma análise estatística da EQM, encontraram três
fatores gerais subjacentes: hiper vigilância, com aceleração dos pensamentos e
visão e audição mais aguçadas; despersonalização, com perda da emoção; e
alteração na passagem do tempo, ao mesmo tempo de ter a sensação do self
separado ou desprendido do corpo, com sensação de estranhamento ou irrealidade.
Em cerca de ¼ dos sujeitos
encontraram também um fator “místico”, incluindo sentimento de compreensão
ampliada, senso de harmonia e união, sentimento de contentamento e revelação.
Kenneth Ring, psicólogo da
Universidade de Connecticut, foi uma das primeiras pessoas a fazer uma análise
científica dessas experiências. Ele enumerou as cinco características do que
ele chamou de “núcleo” das EQM: sentimento de paz, experiência fora do corpo, entrar
na escuridão, visão da luz e entrar na luz. Ele desenvolveu uma escala mais
detalhada que incluía o encontro com parentes falecidos, a visão de belas cores
ou ouvir música, encontrar um ser ou uma presença e, em alguns casos, uma
“revisão da vida”. Ele deu pesos diferentes a essas características e, a partir
daí, uma EQM poderia ser pontuada – quanto mais alto o escore, mais profunda a
experiência[6].
A sistematização e a
padronização entre aqueles que tiveram a experiência se tornaram possível
quando Greyson[7]
aplicou o método-padrão de análise fatorial à metade dos seus dados e depois
testou os dados ponderados na segunda metade. A partir disso, ele foi capaz de
desenvolver a Escala de Greyson, um instrumento de avaliação padrão que pesquisadores
agora usam para identificar, para fins de pesquisa, aqueles que tiveram uma
EQM. A escala de EQM consiste em quatro grupos de quatro questões, que
identificam características cognitivas, afetivas, paranormais e transcendentais
da EQM.
Fenomenologia da EQM
Os fenômenos seguintes são
características de EQM nas populações ocidentais:
§
calma, ausência de dor;
§
saída do corpo (a experiência fora do corpo –
EFC);
§
viajar por um túnel em direção à luz;
§
encontrar “seres” espirituais;
§
encontrar parentes falecidos;
§
paisagem bucólica;
§
visão retrospectiva da vida;
§
reconhecimento de uma barreira ou limite para
além do qual não se pode ir;
§
volta abrupta ao corpo.
Essas características não
ocorrem necessariamente em uma ordem particular e nem todas podem estar
presentes numa única experiência. Existem influências culturais também, por
exemplo, somente a experiência fora do corpo, “seres” e outros mundos são reportados
em todas as culturas. Kellehear[8]
oferece uma excelente revisão sobre esse tema.
Aspectos discrepantes
Alguns aspectos da EQM – que eu
chamo de discrepantes – não se ajustam de modo adequado em uma visão simples,
mecanicista e determinista da consciência. Esses aspectos sugerem que a mente deveria
ser considerada como tendo efeitos diretos além do cérebro, e assim, tendo um
componente não local.
Estados de consciência ampliados na EQM que são supraculturais
Essa fenomenologia diversificada
pode levantar questões sobre as patologias subjacentes à experiência. Atwater[9]
sugeriu que se existisse um mecanismo que produz especificamente EQM, elas
seriam semelhantes em diferentes culturas. Porém, há muitas evidências de que o
conteúdo de uma experiência mental é em si dependente da cultura na qual ela se
dá7. Estados mentais patológicos apresentam ampla variação entre
indivíduos e de cultura para cultura. Por exemplo, em estados confusionais
tóxicos, tais como as psicoses paranoides em unidade de terapia intensiva,
embora possa haver um sentimento paranoide sobrepujante, os detalhes das experiências
alucinatórias, delirantes e ilusórias são determinados pelo indivíduo e pela
situação em que a experiência ocorre. Assim, a variabilidade é comum e um padrão
fixo é menos frequente.
No caso das EQM as similaridades
são, assim, importantes e mais significativas que as diferenças. Quando
despidos das características culturais, os fenômenos que parecem ser universais
nas experiências são os “seres” e a percepção de um outro mundo. A questão
importante para pesquisar sobre consciência é se esse mundo, que parece ser
acessado tão facilmente de muitas outras maneiras diferentes, é
fundamentalmente parte da estrutura de nossas consciências do mesmo modo que é
o mundo “real”. Uma visão alternativa é que a consciência ampliada desses
estados sugere que exista uma dimensão transcendente além do mundo usual à qual
os que tiveram uma EQM possuem acesso privilegiado e que pode ser mais do que
uma simples questão do funcionamento cerebral. Um livro recente do Dr.
Eben Alexander, um neurocirurgião, argumenta que sua EQM foi realmente uma prova
do céu[10].
Falta de um único mecanismo cerebral explicativo
As condições variadas sob as
quais as EQM ocorrem têm levado à discussão de quais circunstâncias são
essenciais para tal ser considerada como uma EQM. As EQM surgem de causas
orgânicas, por exemplo, lesões ou infecções cerebrais graves, mas fenomenologia
similar à da EQM é também encontrada em pacientes que estão doentes, mas não
necessariamente próximos à morte. Elas podem também ocorrer em situações em que
o sujeito está simplesmente sob intenso medo, mas não doente ou ferido – assim
chamada experiência de “medo da morte”.
É bastante claro que os
mecanismos para a gênese da EQM que são relevantes para os cérebros lesionados
não podem explicar as experiências de “medo da morte”, de transcendência e
outras experiências de EQM, quando não se há evidência de lesão cerebral. Fox[11]
comparou EQM com experiências transcendentes similares e notou que a classificação
de uma EQM é “justificada até um certo ponto”.
Sartori[12]
enfatiza que as experiências que preenchem os critérios de Moody podem ocorrer
também em circunstâncias e em contextos em que não há ameaça ou perigo físico.
Ela reforça a sugestão de Fox de que as experiências poderiam ser divididas em
experiências de crise e de não crise. Usando essa classificação, Sartori
observa que as únicas características de EQM ausentes da experiência de não
crise foram a percepção de uma barreira e a visão retrospectiva da vida.
É pouquíssimo provável que um
único mecanismo poderá explicar todas as experiências.
Experiências transcendentes
podem também ocorrer espontaneamente durante a vigília e podem pontuar10 ou
mais na Escala de Greyson, mas sua fenomenologia é mais vaga que dos dois
grupos acima, experiências similares que também têm a mesma fenomenologia que
as EQM verdadeiras podem ocorrer quando o sujeito está meditando, relaxando ou
até mesmo sonhando[13].
Portanto, fica claro que
qualquer teoria que atribua a EQM a um processo orgânico específico deve estar
equivocada, a não ser que ela se aplique somente a um subgrupo claramente
definido, caso no qual a explicação é somente parcial. Isso é bem revisado por
Greyson et al.[14]
As múltiplas situações em que aparece o fenômeno de EQM e a falta de um único e
simples sistema explicativo mecanicista com base no cérebro sugere que uma
estrutura de consciência mais ampla deve ser considerada.
“Visão mental”
Adultos cegos desde o nascimento
ou que perderam a visão antes dos 5 anos de idade não possuem capacidade de
imaginação visual[15].
Seria de se pensar, portanto, que as EQM dessas pessoas seriam bastante diferentes
daquelas que possuem a visão.
No entanto, algumas pessoas que
perderam um sentido primário, por exemplo, o sentido da visão, têm relatado que
parecem ser capazes de, durante uma EQM, usar esse sentido. Em um estudo, 80%
de uma amostra de cegos, incluindo alguns que eram cegos desde o nascimento,
relataram experiências visuais durante a EQM[16].
Tem sido proposto que as EQM
poderiam ser simplesmente sonhos.
Mas cegos congênitos e aqueles
que perderam suas visões antes dos 5 anos não têm imagens visuais em seus
sonhos. Naqueles que perderam a visão em idades mais avançadas as imagens
visuais se esvaem com o tempo.
Dessa forma, a EQM em cegos
congênitos parece abrir uma nova trilha sensória que recolhe informações sem um
órgão sensorial. Isso é similar a uma visão a distância, em que um sujeito
treinado que tem a visão normal é capaz de obter informações visuais acerca de um
alvo distante[17].
Parece improvável que existam dois mecanismos diferentes para esses fenômenos
semelhantes. De qualquer forma, não tenho conhecimento de nenhum estudo
realizado sobre visão a distância em cegos, então não é possível saber se o
mecanismo é de fato o mesmo. A relevância para a consciência é mais uma vez clara
na medida em que ela sugere que a mente deve estender-se não localmente e obter
informações além do alcance dos sentidos.
Transformação após uma EQM
Qualquer acontecimento que
ameace a vida pode, certamente, produzir mudança na personalidade, mas os dados
indicam que aqueles que passaram pelas EQM são afetados mais positivamente
pelas mudanças que aqueles que passaram por experiências similares de ameaça à
vida, mas não tiveram EQM. Greyson[18]
relatou que, em 272 pacientes que tiveram um “encontro com a morte”, 61 deles
(22%) tiveram EQM. Observou-se que eles estavam menos perturbados
psicologicamente após a experiência que aqueles que não tiveram EQM.
Dois estudos de pacientes que
tiveram parada cardíaca são suficientemente abrangentes para sustentar isso. Van
Lommel et al.[19]
mediram a qualidade de vida dos sujeitos pós-evento, usando o Life Change
Questionnaire. As mudanças nas atitudes sociais e religiosas foram afetadas
positivamente. O medo da morte foi reduzido, e a busca por significado pessoal,
o interesse em autocompreensão e a apreciação das coisas comuns foram
aumentados. Um estudo menor de Schwaninger[20],
usando o mesmo questionário, encontrou essencialmente os mesmos resultados.
(Para uma revisão completa, ver Noyes et al.[21])
Acredita-se que um número de fatores antes e durante a experiência influencia o
desenvolvimento, a importância e o alcance dos efeitos posteriores, incluindo
as circunstâncias, proximidade da morte e, particularmente, a profundidade da
experiência19, 20, [22].
Existe também uma relação entre
elementos específicos de EQM e seus efeitos posteriores: experiência fora do
corpo, por exemplo, sugere aos que a experienciaram a possibilidade de
continuação da consciência após a morte e é um modelo para a alma que deixa o corpo[23].
Traços de personalidade podem também ser importantes.
Estudos têm examinado tanto as
características psicológicas normais quanto as patológicas. Basicamente, a
saúde mental de sujeitos que tiveram EQM não se distingue da dos grupos de
comparação. Existem algumas opiniões de que a capacidade para absorção
psicológica ou tendência à fantasia aumenta a chance de ter uma EQM, mas as evidências
não são conclusivas[24].
(Para uma revisão ver Holden[25].)
No entanto, existe evidência que
qualquer experiência transcendente profunda pode produzir mudanças espirituais
positivas, mesmo se ela não se ajustar claramente à fenomenologia da EQM10.
Pessoas que tiveram EQM
frequentemente relatam aumento subsequente de experiências paranormais, como
pré-cognição, intuição, clarividência, telepatia, experiência fora do corpo,
habilidade de cura, perceber aura ou contatar espíritos. No entanto, nenhum estudo
de meu conhecimento testou objetivamente as alegações de paranormalidade, assim
a validade delas permanece subjetiva. Se fosse de fato demonstrada sua
validade, uma mente com propriedades não locais deve ser postulada para
explicá-las.
Alguns também descrevem mudanças
nos estados de consciência e, em nossa amostra, a ocorrência de fenômenos
semelhantes à kundalini, que usualmente tem a forma de choques ou solavancos que
se irradiam pelo corpo, e o conhecimento da pessoa de que ela estava em um
caminho progressivo que parecia levar a uma expansão da consciência13, 21.
Há também alegações de cura por
meio da própria experiência.
O caso mais notório e
controverso desse tipo é o descrito por Mellon Thomas Benedict, que alega que
ele estava morto por 1 hora durante a qual ele teve uma EQM, e após isso ele
afirma que foi curado de um câncer[26].
Em um estudo prospectivo de boa qualidade de pacientes em unidade de terapia
intensiva e de parada cardíaca em unidades coronarianas, Sartori12 observou que 13% dos pacientes que tiveram EQM
relataram cura espontânea após suas EQM, enquanto nenhum paciente controle o
fez. Um desses pacientes tinha tido uma contratura na mão por 60 anos, após uma
bem documentada paralisia cerebral leve e uma hemiparesia espástica de sua mão
direita. Ele teve uma EFC durante sua EQM, na qual ele era capaz de mover a mão
dele.
Durante a recuperação, ele
conseguia de fato mover normalmente sua mão anteriormente contraída, algo que
não poderia ter ocorrido sem uma cirurgia especial para liberar a contratura. A
cura espontânea está bem documentada na literatura[27],
mas geralmente é vista como intervenções do sistema imune, resultando, por
exemplo, na regressão de cânceres. Claramente, esse mecanismo não pode explicar
todos os casos e a EQM poderia ser vista como um bom modelo para investigar os
efeitos mais amplos dessas experiências. Na literatura esotérica e sobre
meditação existem referências frequentes ao desenvolvimento de poderes
especiais (siddhis) após treinamento espiritual ou experiência
espiritual profunda. Seria razoável aceitar que a EQM é uma experiência desse
tipo e pode também resultar em mudanças nas experiências subjetivas.
Relatos de experiências verídicas
Percepções verídicas são bem
revisadas por Holden25. Ela define isso como qualquer percepção
visual, auditiva, cinestésica, olfatória, e assim por diante, que a pessoa relata
ter experienciado durante uma EQM, e que posteriormente é confirmada por
testemunhas independentes. Tais dados verídicos, que sugerem que os sentidos podem
obter informações a distância durante uma EQM, são mais uma evidência de que a
mente ampliada deve ser incluída em qualquer modelo de consciência.
Estudos prospectivos de parada
cardíaca Percepções fora do corpo que se alegam ocorrer no princípio da parada
cardíaca são particularmente importantes para o nosso entendimento da
consciência, porque elas abrem a possibilidade de confirmação de elas serem de
fato verídicas.
Dez por cento dos pacientes com
parada cardíaca têm EQM 18, 20, [28].
Desses, 30% relatam ter uma EFC
enquanto estão inconscientes e assistindo sua própria ressuscitação. Há
atualmente muitos relatos retrospectivos de tais casos (para uma revisão
abrangente, ver Holden25 ) e um ou dois prováveis casos prospectivos
de percepção verídica durante uma parada cardíaca. O caso prospectivo mais amplamente
discutido, apesar de frequentemente contestado, é o de Pamela Reynolds[29].
Sartori12 descreve vários casos de EFC durante a inconsciência,
alguns com percepção verídica, que sustentam os estudos retrospectivos
anteriores. Um caso particularmente interessante do estudo AWARE é descrito em
detalhe no final desta seção[30].
Qualquer conclusão firme sobre a
natureza verídica dessas experiências depende de se saber com precisão o
momento em que ocorre. Em uma parada cardíaca, os três maiores sinais clínicos
de morte clínica estão presentes: ausência de débito cardíaco, de respiração e
de reflexos de tronco cerebral. O cérebro não está funcional, portanto tanto a
percepção como a memória dessa percepção devem ser impossíveis. Frequentemente
se argumenta que devam existir pequenas áreas de funcionamento cerebral que
possa construir a experiência. No entanto, as características da experiência
são tão amplas, contendo emoções, sensações visuais e auditivas e algumas vezes
sensações olfatórias, que nenhuma pequena área cerebral isolada poderia gerar
isso. Além disso, a memória é sempre afetada por uma disfunção cerebral grave.
A inconsciência ocorre rápido
demais para que a experiência ocorra até esse momento – 11 segundos após uma
parada cardíaca, sobrevém o silêncio elétrico e o cérebro está totalmente
disfuncional[31].
As experiências são lúcidas e, portanto, não podem ocorrer durante o período de
recuperação, que é sempre confusional.
Quando a ressuscitação é
iniciada, é incomum que a pressão arterial aumente para mais de 30 mmHg, o que
é insuficiente para o restabelecimento da circulação cerebral. O cérebro não se
torna novamente funcional até que o coração volte a bater. É difícil ver como
um cérebro que está intensamente prejudicado por anóxia e hipercapneia, com
transmissão elétrica distorcida, seria capaz de construir a experiência tão
clara, lúcida e abrangente como na EQM.
Se a percepção verídica é de
fato possível durante uma parada cardíaca, então a relação entre consciência e
funcionamento cerebral deve ser reavaliada. O estudo AWARE (Awareness during
REsuscitation) é um estudo prospectivo que está estabelecido para testar a
natureza verídica das informações colhidas durante uma EFC numa EQM. Pranchas
com informações têm sido colocadas acima das camas nas áreas de ressuscitação,
nos hospitais do Reino Unido, Europa e América, com o objetivo de coletar mais
de 100 desses casos e testar para ver se as pranchas foram vistas. Esse é o
primeiro estudo abrangente estabelecido para examinar a natureza da consciência[32].
Um caso recente do estudo AWARE
foi o de um paciente diabético com pouco mais de 50 anos que desenvolveu
fibrilação ventricular.
Ele foi trazido ao hospital por
não estar se sentindo bem, com um eletrocardiograma (ECG) anormal, sendo
imediatamente levado para a unidade de cateterismo cardíaco para a colocação de
um stent coronariano para restaurar a circulação sanguínea em seu
coração.
Antes de esse procedimento poder
ser realizado ele entrou em fibrilação ventricular. Isso significa que o
ventrículo cardíaco apenas vibra e que o débito cardíaco cai a zero. Ele ficou
imediatamente inconsciente. A equipe cardiológica, o que não é usual,
utilizou-se de um desfibrilador externo automático (DEA) do tipo encontrado em shopping-centers,
destinados ao uso pelo público em geral. A equipe médica colocou eletrodos,
assim o DEA poderia monitorar o estado da função cardíaca. Após analisar o
padrão do ritmo cardíaco, a máquina reconheceu fibrilação ventricular e emitiu
um som alto com a instrução: “recomendo choque”. O paciente então recebeu choque
e a equipe médica teve que aplicar dois ciclos do protocolo de ressuscitação, o
que é demandado por esse tipo de equipamento. Eles comprimiam o peito do
paciente manualmente e o ventilavam com uma máscara de oxigênio; todo o
processo levou de 2 a 3 minutos. A máquina, então, reanalisou o padrão do ritmo
cardíaco, encontrou o paciente ainda em fibrilação ventricular e novamente
recomendou que o choque fosse aplicado. Após esse segundo choque, o coração
voltou a bater.
Durante o tempo em que o
paciente estava em fibrilação ventricular os registros médicos indicaram que o
paciente estava profundamente inconsciente e tinha iniciado o processo de
morte. Após sua recuperação, quando lhe foi perguntado se ele havia vivenciado
alguma coisa durante esse período, ele relatou ter visto uma garota
(posteriormente ele a descreveu como um
anjo) no canto do quarto acima dele. Ela fez um sinal para ele se juntar a ela
e ele se viu ao seu lado olhando o processo de ressuscitação. Ele relatou ter
escutado os dois comandos da máquina e ter assistido à atividade da equipe
médica durante o processo de ressuscitação, e descreveu o processo
corretamente.
Esse é um caso prospectivo
importante, porque houve validação médica completa do estado de inconsciência
do paciente durante a fibrilação ventricular e sua total consciência do
processo de ressuscitação e sua própria experiência subjetiva durante esse
período29.
O significado dos aspectos discrepantes
O fato de que muitas culturas
diferentes têm conteúdo semelhante às EQM sugere a possibilidade de um
funcionamento cerebral comum que ocorre nesse momento. No entanto, um plano
transcendente que pode ser acessado pela experiência poderia também sugerir que
a consciência é mais do que simplesmente uma questão de função cerebral. Não se
encontrou um sistema explicativo mecanicista único baseado no cérebro para a
grande variedade de situações em que as EQM podem ocorrer. Isso sugere que uma
estrutura de consciência mais ampla, comum a todas as condições, deva ser considerada.
Em cegos congênitos a EQM parece
abrir um novo caminho sensorial que obtém informação sem um órgão sensorial.
A profunda experiência
espiritual na EQM sugere que a expressão da consciência do indivíduo é alterada
e uma série de novas qualidades espirituais é adicionada.
Se dados verídicos podem
realmente ser adquiridos durante uma EQM, isso indica que os sentidos podem
obter informações a distância. Isso deve sugerir que, durante uma EQM, a
mente/consciência se estende além do cérebro.
Modelos de consciência
Não existe um mecanismo cerebral
aceito por meio do qual a experiência subjetiva, ou consciência, possa surgir
de estruturas objetivas do cérebro. A neurociência tem avançado ao ponto em que
as funções das principais áreas cerebrais são conhecidas. Sistemas de atividade
durante o estado de alerta, repouso (estado-padrão) e durante o sono e
sonhando, estão todos bem mapeados. A neuroimagem tem mostrado numerosas
correlações entre funções e áreas cerebrais, mas esses achados são apenas
correlações. Se sentimos raiva, a amígdala esquerda pode muito bem mostrar seu
aumento de atividade, mas não sabemos como isso se traduz na emoção que
sentimos. Ainda não há resposta para o “problema difícil” (“hard problem”)
de Chalmers[33],
[34],
em que, mesmo com a nossa profunda compreensão objetiva dos mecanismos
cerebrais, ainda é impossível com base neles explicar a experiência subjetiva.
Modelos baseados apenas nas características físicas do cérebro, que limitam a
consciência ao cérebro, estão fadados ao fracasso. Novos modelos de consciência
precisam incluir a mente estendida para além do cérebro.
Visão sumária dos modelos de consciência
Os modelos de consciência têm se
tornado altamente sofisticados.
(Para uma revisão, ver The
Handbook of Consciousness[35]).
Um excelente compêndio recentemente publicado no Journal of Consciousness
Studies, intitulado The Singularity, tratou da questão do que
acontece quando máquinas se tornam mais inteligentes que humanos e são capazes
de baixar (download) a consciência em uma estrutura mecânica, com muitas
referências ao The Matrix. Ele dá aos autores a oportunidade de olhar mais de
perto a relação entre os sistemas neuronais do cérebro, os sistemas físicos da
biologia, os sistemas evolutivos de desenvolvimento biológico, social e
cultural e, finalmente, a interligação dessas ideias com a consciência
universal e a forma que esta pode se ligar a esses processos físicos.
No entanto, com nosso
conhecimento atual, existem três modelos básicos. Em primeiro lugar, os modelos
reducionistas, que argumentam que apenas explicações materiais são válidas,
excluindo a mente e a consciência como agentes causais. O modo usual de
contornar essa situação é usar o conceito de “emergência”, que afirma que é impossível
saber quais novas propriedades irão surgir a partir de uma combinação de
substâncias materiais; e que a consciência em si pode emergir com a
configuração certa de elementos materiais, como a combinação de hidrogênio e
oxigênio produz uma substância inteiramente nova, a água. Esse é claramente um
argumento falho, pois tanto o oxigênio como o hidrogênio, quando resfriados ou
comprimidos suficientemente, viram líquido. Assim, a liquidez está na sua
natureza.
Outros têm discutido que essa
emergência é verdadeiramente de novo, e não há maneira de prever isso.
Se é assim, então o conceito de emergência não tem valor científico, ou seja,
não é possível prever o que surgirá e, portanto, encontrar uma cadeia causal de
explicação baseada apenas na matéria. Dehaene e Naccache[36],
entretanto, argumentaram que a neurociência cognitiva da consciência começa com
a intenção de determinar se há uma forma sistemática de processamento de
informação e uma classe específica e reprodutível de padrões de ativação
neuronal que, sistematicamente (e de modo muito importante), são capazes de
distinguir estados mentais de sujeitos classificados como conscientes de outros
estados que não os são. Molyneux[37]
argumenta que isso é puramente um problema de referência e insolúvel, já que
nos falta um procedimento para definitivamente descartar os candidatos
explicativos neurológicos e teóricos. Ele argumenta que os correlatos neurais
não deveriam ser nossa única meta, mas deveríamos vir a entender como certos tipos
de mecanismos devem produzir consciência. Ele acha que isso preencherá a lacuna
explicativa (explanatory gap), mas não estou certo de que isso seja um
real avanço neste debate.
O próximo grupo é o de modelos
que postulam que a consciência é a estrutura básica do universo e que apenas
modelos que postulam a consciência como primária podem explicar com sucesso os problemas enfrentados pela neurociência
atual. Tal como o primeiro modelo, esse tem uma falha inerente – o problema de
uma lacuna explicativa (explanatory gap). Em ambos os casos, é necessário
um pequeno milagre, seja para a consciência surgir de um processo físico, seja
para a matéria surgir da consciência. Chalmers33, em um artigo que
introduz o The singularity, pergunta se a inteligência artificial (IA) ou
superinteligência artificial (IA+) tem o potencial de, em algum momento, chegar
ao ponto em que a informação cerebral pode ser descarregada (download)
em uma nova estrutura física, a qual vai absorver a nossa consciência, de modo
que, com a morte do cérebro, podemos permanecer “vivos”. Ele argumenta que a
estrutura física que executa todos os comportamentos de uma pessoa consciente não
é necessariamente consciente e que existe uma diferença entre teorias
biológicas e funcionais.
O terceiro grupo, os modelos
dualistas, postula que tanto a mente (consciência) quanto a matéria existem
como entidades independentes, mas estão intimamente ligadas. A complexidade dos
modelos está essencialmente relacionada com o grau de ligações que são permitidas.
Eles podem ser absolutamente ligados de modo que cada elemento, até as
partículas materiais fundamentais, tem consciência inerente a ela. Assim, de um
ponto de vista, a partícula é material e de outro é um elemento da mente. Esses
modelos são atraentes na medida em que superam a dificuldade da emergência da
mente de uma entidade física, ou vice-versa. Mas ainda existe a dificuldade de
explicar como a mente e o cérebro interagem e a natureza da interface
mente-cérebro. Modelos dualistas ecoam na moda atual de estudar psicologia
oriental e ocidental, oriental, com a meditação e o estudo de mudanças
qualitativas no estado mental, e ocidental, que baseia a sua compreensão no
comportamento e no conhecimento dos processos fisiológicos relacionados com o
funcionamento do cérebro e, mais recentemente, o reconhecimento de que os
fatores sociobiológicos são importantes. Lockley[38]
tem levado essas ideias adiante, baseado na exploração do trabalho clássico
sobre a consciência de Gebser e nas ideias goethianas relacionadas com o
desenvolvimento de sistemas biológicos, como elas estão incorporadas em um
campo primordial da consciência. Ele sugere que essas teorias, desenvolvidas em
estruturas em evolução, são responsáveis por um conjunto de influências muito mais
amplas que condicionam a forma como eles evoluem e os padrões que eles tomam.
Ele defende uma energia prânica cósmica que condiciona as formas evolutivas e
está intimamente ligada à própria consciência universal e, dessa forma, liga
consciência e matéria em um sistema único33.
Teorias de campo
Mais de 30% da população que tem
experimentado uma realidade transcendente além do mundo físico descrevem-na
como mais “real” que o universo diário, que é percebido como vivo e consciente.
William
James[39],
no The Varieties of Religious Experience, foi um dos primeiros a sugerir
que a consciência poderia ser considerada um campo, enquanto o cérebro atua
ordinariamente como um agente redutor, de modo que nossas percepções cognitivas
são limitadas.
Nas experiências transcendentes
uma mudança no “mecanismo de filtragem” do cérebro permite que o campo mental
seja estendido para o transcendente.
O maior benefício dessas teorias
é que elas são não locais. A mente transcendente é universal e a mente
individual pode acessá-la.
Muitos dos aspectos discrepantes
das EQM se enquadram facilmente nesse modelo. Considerando que é dada
prioridade à transcendência no sentido causal, então cura e transformação da personalidade
com dons suprassensoriais após uma EQM também podem ser explicadas.
Visão mental e experiências
verídicas são também mais facilmente explicadas usando um modelo holístico
transcendente. E, importantemente, uma teoria de campo transcendente postula um
universo que é mais próximo àquele vivenciado pelos que tiveram EQM do que o
universo engendrado pela miscelânea de nossas limitadas teorias atuais de
correlatos neurais.
Aguardamos que estudos com
financiamento adequado proporcionem a tecnologia necessária [análise de
eletroencefalograma (EEG) e análise do consumo de oxigênio cerebral] durante as
experiências fora do corpo que ocorrem nas EQM, para confirmar se elas realmente
ocorrem durante a inconsciência e, portanto, que mente e cérebro estão separados
nesse momento.
[1] https://www.espiritualidades.com.br/Artigos/F_autores/FENWICK_Peter_tit_Experiencias_de_quase-morte_podem_contribuir_para_o_debate_sobre_a_consciencia-As.pdf
[2] Tradução: Adriana Sleutjes - Revisão da tradução:
Alexander Moreira-Almeida - Recebido: 10/9/2013 – Aceito: 10/9/2013
[3] Department Neuroscience, Southampton University, UK.
Kings College, Institute of Psychiatry, London University, UK.
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