terça-feira, 1 de novembro de 2022

MEDIUNIDADE NO COPO D’ÁGUA[1]

 


Allan Kardec

 

Um dos nossos correspondentes de Genebra nos transmite interessantes detalhes sobre um novo gênero de mediunidade vidente, que consiste em ver num copo d’água magnetizado. Essa faculdade tem muitas relações com a do vidente de Zimmerwald, do qual fizemos um relato circunstanciado na Revista de outubro de 1864 e outubro de 1865. A diferença consiste em que este último se serve de um copo vazio, sempre o mesmo e que a faculdade, de certo modo, lhe é pessoal; ao contrário, o fenômeno que nos é assinalado se produz com o auxílio de qualquer copo que contenha água magnetizada, e que parece vulgarizar-se. Se assim é, a mediunidade vidente poderia tornar-se tão comum quanto a pela escrita. Eis as informações que nos são dadas, segundo as quais cada um poderá experimentar, desde que se coloque em condições favoráveis. Entre nós num certo número de pessoas. Em um mês temos quinze médiuns videntes deste gênero, tendo cada um a sua especialidade. Um dos melhores é uma jovem senhora, que não sabe ler nem escrever; é mais particularmente apta para as doenças, e eis como nossos Espíritos bons procedem, para nos mostrar o mal e o remédio. Tomo um exemplo ao acaso:

Uma pobre mulher, que se achava na reunião, havia recebido um golpe certeiro no peito; apareceu no copo absolutamente como uma fotografia; levou a mão sobre a parte lesada. A Sra. V... (o médium) viu em seguida o peito se abrir e notou que havia sangue coagulado no lugar onde se dera o golpe; depois tudo desapareceu para dar lugar à imagem dos remédios, que consistiam num emplastro de resina branca e um copo contendo benjoim. Esta mulher ficou perfeitamente curada depois de ter seguido o tratamento.

Quando se trata de um obsedado, o médium vê os Espíritos maus que o atormentam; a seguir aparecem, como remédio, o Espírito simbolizando a prece, e duas mãos que magnetizam.

Temos um outro médium, cuja especialidade é ver os Espíritos. Pobres Espíritos sofredores muitas vezes nos têm apresentado, por seu intermédio, cenas comovedoras, para nos fazer compreender as suas angústias.

Um dia evocamos o Espírito de um indivíduo que se afogara voluntariamente; apareceu na água turva; não se lhe via senão a parte posterior da cabeça e os cabelos semimergulhados na água. Durante duas sessões foi-nos impossível ver-lhe o rosto. Fizemos a prece pelos suicidas; no dia seguinte o médium viu a cabeça fora d’água, sendo possível reconhecer os traços de um parente de uma das pessoas da Sociedade. Continuamos nossas preces e, embora o rosto ainda exibisse uma expressão de sofrimento, parecia retomar a vida.

Desde algum tempo vinham-se produzindo ruídos semelhantes aos de Poitiers, em casa de uma senhora que reside nos subúrbios de Genebra, e que causavam grande agitação em toda a casa. Essa senhora, que não conhecia absolutamente o Espiritismo, dele tendo ouvido falar, veio nos ver com seu  irmão, pedindo para assistir às nossas sessões. Nenhum dos nossos médiuns os conhecia.

 Um deles viu em seu copo uma casa, no interior da qual um Espírito mau punha tudo em desordem, remexia os móveis e quebrava as louças. Pela descrição feita, aquela senhora reconheceu a mulher de seu jardineiro, muito má em vida, e que lhe tinha prejudicado bastante. Dirigimos ao Espírito algumas palavras benevolentes, para o trazer a melhores sentimentos, e à medida que lhe falávamos, seu rosto adquiria uma expressão mais doce. No dia seguinte, fomos à casa daquela dama e à noite foi completado o trabalho da véspera. Os ruídos cessaram quase completamente, desde a partida da cozinheira que, parece, servia de médium inconsciente àquele Espírito.

Como tudo tem sua razão de ser e sua utilidade, penso que tais ruídos tinham por objetivo levar aquela família ao conhecimento do Espiritismo.

Eis agora o que nossas observações nos ensinaram quanto à maneira de operar:

É preciso um copo liso, bem uniforme no fundo; enchem-no de água até a metade, magnetizando-a pelos processos ordinários, isto é, pela imposição das mãos e, sobretudo, pela extremidade dos dedos, na boca do copo, auxiliada pela ação contínua do olhar e do pensamento. A duração da magnetização é de cerca de dez minutos na primeira vez; mais tarde bastam cinco minutos. A mesma pessoa pode magnetizar vários copos ao mesmo tempo.

O médium vidente, ou aquele que quer experimentar, não deve magnetizar o seu próprio copo, pois consumiria o fluido que lhe é necessário para ver. Para a magnetização é preciso um médium especial, havendo, para isto, os dotados de um poder mais ou menos grande. A ação magnética não produz na água qualquer fenômeno que indique a sua saturação.

Feito isto, cada experimentador coloca o copo à sua frente e o olha durante vinte ou trinta minutos no máximo, algumas vezes menos, conforme a aptidão. Esse tempo só é necessário nas primeiras tentativas; quando a faculdade está desenvolvida, bastam alguns minutos. Durante esse tempo, uma pessoa faz a prece para chamar o concurso dos Espíritos bons.

Os que são aptos a ver distinguem, de início, no fundo do copo, uma espécie de pequena nuvem; é um indício certo de que verão. Pouco a pouco essa nuvem toma uma forma mais acentuada, e a imagem se desenha à vista do médium. Entre si os médiuns podem ver nos copos uns dos outros, mas não as pessoas que não sejam dotadas desta faculdade. Algumas vezes parte do assunto aparece num copo e a outra parte em outro; para as doenças, por exemplo, um verá o mal e o outro o remédio. Outras vezes dois médiuns verão simultaneamente, cada um em seu copo, a imagem da mesma pessoa, mas geralmente em condições diferentes.

Muitas vezes a imagem se transforma, muda de aspecto, depois desaparece. Em geral ela é bastante espontânea; o médium deve esperar e dizer o que vê. Mas também pode ser provocada por uma evocação.

Ultimamente fui ver uma senhora que tem uma jovem operária de dezoito anos e que jamais ouvira falar do Espiritismo. A senhora pediu-me que lhe magnetizasse um copo d’água. A moça o olhou cerca de um quarto de hora, e disse: Vejo um braço; dir-se-ia que é o de minha mãe; vejo a manga de seu vestido, levantada, como era seu costume.

Essa mãe, que conhecia a sensibilidade da filha, sem dúvida não quis mostrar-se subitamente para lhe evitar uma impressão muito grande. Então pedi àquele Espírito, se fosse o da mãe do médium, que se desse a conhecer. O braço desapareceu e o Espírito se apresentou do tamanho de uma fotografia, mas virado de costas. Era ainda uma precaução para preparar a filha para a ver. Esta reconheceu o seu gorro, um fichu[2], as cores e os desenhos de seu vestido. Vivamente emocionada, dirigiu-lhe as mais ternas palavras, pedindo-lhe que deixasse ver o seu rosto. Eu mesmo lhe pedi que atendesse ao desejo de sua filha. Então ela se apagou, deu-se a perturbação e o rosto apareceu. A jovem chorou de reconhecimento, agradecendo a Deus a dádiva que ele acabava de lhe conceder.

A própria senhora desejava muito ver. No dia seguinte fizemos uma sessão em sua casa, que foi cheia de bons ensinamentos. Depois de ter olhado inutilmente no copo cerca de meia-hora, disse ela: Meu Deus! Se ao menos eu pudesse ver o diabo no copo, ficaria contente! Mas Deus não lhe concedeu esta satisfação.

Os incrédulos não deixarão de creditar esses fenômenos à conta da imaginação. Mas os fatos aí estão para provar que, numa porção de casos, a imaginação aí não entra absolutamente. Primeiro, nem todo mundo vê, por mais desejo que tenha. Eu mesmo muitas vezes fiquei com o espírito superexcitado com este objetivo, sem jamais obter o menor resultado. A senhora de quem acabo de falar, malgrado seu desejo de ver o diabo, após meia hora de espera e de concentração, nada viu. A jovem não pensava em sua mãe quando esta lhe apareceu; e, depois, todas essas precauções para não se mostrar senão gradualmente atestam uma combinação, uma vontade estranha, nas quais a imaginação do médium não podia de modo algum participar.

Para ter uma prova ainda mais positiva, fiz a seguinte experiência. Tendo ido passar alguns dias no campo, a algumas léguas de Genebra, havia, na família onde me encontrava, várias crianças. Como fizessem muito barulho, propus-lhe, para as ocupar, um jogo mais tranquilo. Tomei um copo d’água e o magnetizei, sem que ninguém percebesse, e lhes disse: Qual dentre vós terá a paciência de olhar este copo durante vinte minutos, sem desviar os olhos? Abstive-me de acrescentar que eles poderiam nele ver alguma coisa; era a título de simples passatempo. Vários perderam a paciência antes do fim da prova; uma menina de onze anos foi mais perseverante; ao cabo de doze minutos, soltou um grito de alegria, dizendo que via uma magnífica paisagem, cuja descrição nos fez. Uma outra menina de sete anos, por sua vez tendo querido olhar, adormeceu instantaneamente. Com medo de a fatigar, logo a despertei. Onde está aqui o efeito da imaginação?

Esta faculdade pode, pois, ser ensaiada numa reunião de pessoas, mas aconselho que, nas primeiras reuniões, não sejam admitidas pessoas hostis. Sendo necessários a calma e o recolhimento, a faculdade não se desenvolverá senão mais facilmente; quando formada, é menos susceptível de ser perturbada.

O médium só vê com os olhos abertos; quando os fecha, está na escuridão. Pelo menos é o que notamos, e isto denota uma variedade na mediunidade vidente. O médium não fecha os olhos senão para repousar, o que lhe acontece duas ou três vezes por sessão. Vê tão bem de dia quanto de noite, mas à noite é preciso luz.

A imagem das pessoas vivas se apresenta no copo tão facilmente quanto a das pessoas mortas. Tendo perguntado a razão disto ao meu Espírito familiar, ele me respondeu: São suas imagens que vos apresentamos; os Espíritos são tão hábeis para pintar quanto para viajar. Entretanto, os médiuns distinguem sem esforço o Espírito de uma pessoa viva; há qualquer coisa de menos material.

O médium do copo d’água difere do sonâmbulo pelo fato de o Espírito deste último se destacar; é-lhe necessário um fio condutor para ir procurar a pessoa ausente, enquanto o primeiro tem a sua imagem sob os olhos, que é o reflexo de sua alma e de seus pensamentos. Fatiga-se menos que o sonâmbulo, e está também menos exposto a se deixar intimidar pela visão dos Espíritos maus que podem apresentar-se. Esses Espíritos podem bem o fatigar, porque procuram magnetizá-lo, mas ele pode, à vontade, subtrair-se ao seu olhar, deles recebendo, aliás, uma impressão menos direta.

Dá-se nesta mediunidade como em todas as outras: o médium atrai a si os Espíritos que lhe são simpáticos; ao médium impuro apresentam-se de bom grado Espíritos impuros. O meio de atrair os Espíritos bons é estar animado de bons sentimentos, só perguntar coisas justas e razoáveis, não se servir desta faculdade senão para o bem, e não para coisas fúteis. Se dela fizermos um objeto de distração, de curiosidade ou de tráfico ilegal, cairemos inevitavelmente na turba de Espíritos levianos e enganadores, que se divertem em apresentar imagens ridículas e falaciosas.

 

Observação – Como princípio, esta mediunidade certamente não é nova. Mas aqui se desenha de maneira mais precisa, sobretudo mais prática, e se mostra em condições particulares. Pode-se, pois, considerá-la como uma das variedades que foram anunciadas. Do ponto de vista da Ciência Espírita, ela nos faz penetrar mais adiante o mistério da constituição íntima do mundo invisível, cujas leis conhecidas confirma, ao mesmo tempo em que nos mostra suas novas aplicações. Ela ajudará a compreender certos fenômenos ainda incompreendidos da vida diária e, por sua vulgarização, não deixará de abrir novo caminho à propagação do Espiritismo. Quererão ver, experimentarão; quererão compreender, estudarão, e muitos entrarão no Espiritismo por esta porta.

Este fenômeno oferece uma particularidade notável. Até agora se compreendia a visão direta dos Espíritos em certas condições, a visão a distância de objetos reais: é hoje uma teoria elementar; mas aqui não são os próprios Espíritos que são vistos, e que não podem vir alojar-se num copo d’água, do mesmo modo que aí não se alojam casas, paisagens e pessoas vivas.

Aliás, seria erro acreditar que aí estivesse um meio melhor que outro de saber tudo o que se deseja. Os médiuns videntes, por este processo ou qualquer outro, não veem à vontade; não veem senão o que os Espíritos lhes querem fazer ver, ou têm a permissão de lhes fazer ver quando a coisa é útil. Não se pode forçar a vontade dos Espíritos, nem a faculdade dos médiuns. Para o exercício de uma faculdade mediúnica qualquer, é preciso que o aparelho sensitivo, se assim nos podemos exprimir, esteja em condições de funcionar. Ora, não depende de o médium fazê-lo funcionar à sua vontade. Eis por que a mediunidade não pode ser uma profissão, já que poderia faltar no momento em que fosse necessária para satisfazer o cliente. Daí a incitação à fraude, para simular a ação do Espírito.

Prova a experiência que os Espíritos, sejam quais forem, jamais estão ao capricho dos homens, não mais do que e menos ainda, do que quando estavam neste mundo; e, por outro lado, diz o simples bom-senso que, com mais forte razão, os Espíritos sérios não poderiam vir ao apelo do primeiro que viesse para coisas fúteis e representar o papel de saltimbancos e de ledores de buena-dicha[3]. Só o charlatanismo pode pretender a possibilidade de manter aberta uma banca de comércio com os Espíritos.

Os incrédulos riem dos espíritas, porque imaginam que estes acreditam em Espíritos confinados numa mesa ou numa caixa, e que os manobram como marionetes. Acham isto ridículo e estão cheios de razões; onde estão errados é quando creem que o Espiritismo ensine semelhantes absurdos, quando ele diz exatamente o contrário. Se, por vezes, no mundo, encontraram alguns de uma credulidade muito fácil, não foi entre os espíritas esclarecidos. Ora, nesse número, há necessariamente os que o são mais ou menos, como em todas as ciências.

Os Espíritos não se alojam no copo d’água; eis o que é positivo. Que há, pois, no copo? Uma imagem, e não outra coisa; imagem tirada da Natureza, daí por que muitas vezes é exata. Como é produzida? Eis o problema. O fato existe, portanto tem uma causa. Embora ainda não se lhe possa dar uma solução completa e definitiva, o artigo seguinte, parece-nos, lança uma grande luz sobre a questão.



[1] Revista Espírita – Junho/1868 – Allan Kardec

[2] Fichu - espécie de abrigo, de tecido leve e formato triangular, com que as mulheres cobrem a cabeça, pescoço e ombros.

[3] Buena-dicha - sorte fausta ou infausta de um indivíduo, supostamente inferida por algum meio ocultista (p.ex., pelas linhas da mão); sina, fortuna.

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