terça-feira, 22 de novembro de 2022

A GERAÇÃO ESPONTÂNEA E A GÊNESE[1]

 

 Sara Cho - Spontaneous Generation


Allan Kardec

 

Em nossa obra A Gênese, desenvolvemos a teoria da geração espontânea, apresentando-a como uma hipótese provável.

Alguns partidários absolutos desta teoria admiraram-se de que não a tivéssemos afirmado como princípio. A isto responderemos que, se a questão está resolvida para uns, não o está para todos, e a prova é que a Ciência ainda está dividida a respeito. Aliás, ela é do domínio científico, onde o Espiritismo não pode colher e onde nada lhe cabe resolver de maneira definitiva, naquilo que não é essencialmente de sua alçada.

Pelo fato de o Espiritismo assimilar todas as ideias progressistas, não se segue que se faça campeão cego de todas as concepções novas, por mais sedutoras que sejam à primeira vista, com o risco de receber, mais tarde, um desmentido da experiência e de se expor ao ridículo de haver patrocinado uma obra inviável.

Se não se pronuncia claramente sobre certas questões controvertidas, não é, como poderiam crer, para condescender com os dois partidos, mas por prudência, e para não se adiantar levianamente num terreno ainda não suficientemente explorado.

Eis por que não aceita imediatamente as ideias novas, mesmo as que lhe pareçam justas, senão sob muita reserva, e de maneira definitiva apenas quando chegaram ao estado de verdades reconhecidas.

A questão da geração espontânea está neste número.

Para nós, pessoalmente, é uma convicção, e se a tivéssemos tratado numa obra comum, tê-la-íamos resolvido pela afirmativa; mas numa obra constitutiva da Doutrina Espírita, as opiniões individuais não podem fazer lei; não se baseando a Doutrina em probabilidades, não podíamos decidir uma questão de tal gravidade, apenas despontada, e que ainda está em litígio entre os especialistas.

Afirmando a coisa sem restrição, teria sido comprometer a Doutrina prematuramente, o que jamais fazemos, mesmo para fazer prevalecerem as nossas simpatias.

O que, até aqui, deu força ao Espiritismo, o que dele fez uma ciência positiva e de futuro, é que jamais avançou levianamente; que não se constituiu sobre nenhum sistema preconcebido; que não estabeleceu nenhum princípio absoluto sobre a opinião pessoal, nem de um homem, nem de um Espírito, mas somente depois que esse princípio recebeu a consagração da experiência e de uma demonstração rigorosa, resolvendo todas as dificuldades da questão.

Quando, pois, formulamos um princípio é que, de antemão, estamos certos do assentimento da maioria dos homens e dos Espíritos. Eis por que não temos tido decepções. Tal é, também, a razão pela qual, nestes quase doze anos, nenhuma das bases que constituem a Doutrina recebeu desmentido oficial; os princípios de O Livro dos Espíritos foram sucessivamente desenvolvidos e completados, mas nenhum caiu em desuso, e nossos escritos não estão, em nenhum ponto, em contradição com os primeiros, malgrado o tempo decorrido e as novas observações que foram feitas.

Certamente não seria o mesmo se tivéssemos cedido às sugestões dos que nos gritavam continuamente para irmos mais depressa, e se tivéssemos esposado todas as teorias que despontavam da direita e da esquerda. Por outro lado, se tivéssemos escutado os que nos pediam que fôssemos mais devagar, ainda estaríamos observando as mesas girantes. Vamos à frente quando sentimos que o momento é propício e vemos que os espíritos estão maduros para aceitarem uma ideia nova; mas nos detemos quando vemos que o terreno não é bastante sólido para aí fincar o pé. Com a nossa aparente lentidão e nossa circunspeção muito meticulosa para o gosto de certas pessoas, temos feito mais caminho do que se nos tivéssemos posto a correr, pois evitamos dar uma cambalhota na estrada. Não tendo motivo para lamentar a marcha que temos seguido até agora, dela não nos desviaremos.

Dito isto, completaremos com algumas observações o que dissemos em A Gênese, no que concerne à geração espontânea.

Sendo a Revista um terreno de estudo e de elaboração dos princípios, e nela dando sem rodeios a nossa opinião, não tememos empenhar a responsabilidade da Doutrina, porque a Doutrina a adotará, se for justa, e a rejeitará, se for falsa.

Hoje é fato cientificamente demonstrado que a vida orgânica nem sempre existiu na Terra, e que aí teve um começo; a Geologia permite seguir o seu desenvolvimento gradual. Os primeiros seres do reino vegetal e do reino animal que então apareceram, devem ter-se formado sem procriação, e pertencer às classes inferiores, como o constatam as observações geológicas. À medida que os elementos dispersos se reuniram, as primeiras combinações formaram corpos exclusivamente inorgânicos, isto é, pedras, águas e minerais de toda sorte. Quando esses mesmos elementos se modificaram pela ação do fluido vital – que não é o princípio inteligente – formaram corpos dotados de vitalidade, de uma organização constante e regular, cada um na sua espécie. Ora, assim como a cristalização da matéria bruta não ocorre senão quando uma causa acidental vem opor-se ao arranjo simétrico das moléculas, os corpos organizados se formam desde que as circunstâncias favoráveis de temperatura, umidade, repouso ou movimento, e uma espécie de fermentação permitam que as moléculas da matéria, vivificadas pelo fluido vital, se reúnam. É o que se vê em todos os germes em que a vitalidade pode ficar latente durante anos e séculos, e se manifestar num dado momento, quando as circunstâncias são propícias.

Os seres não procriados formam, pois, o primeiro escalão dos seres orgânicos e, provavelmente, serão contados um dia na classificação científica. Quanto às espécies que se propagam pela procriação, uma opinião que não é nova, mas que hoje se generaliza sob a égide da Ciência, é que os primeiros tipos de cada espécie são o produto de uma modificação da espécie imediatamente inferior. Assim, estabeleceu-se uma cadeia ininterrupta, desde o musgo e o líquen, até o carvalho, e depois o zoófito, o verme da terra e o ácaro até o homem. Sem dúvida, entre o verme da terra e o homem, se se considerarem apenas os dois pontos extremos, há uma diferença que parece um abismo; mas quando se aproximam todos os elos intermediários, encontra-se uma filiação sem solução de continuidade.

Os partidários desta teoria que, repetimos, tende a prevalecer, e à qual nos ligamos sem reserva, estão longe de ser todos espiritualistas, e ainda menos espíritas. Não considerando senão a matéria, fazem abstração do princípio espiritual ou inteligente. Essa questão, pois, nada prejulga sobre a filiação desse princípio da animalidade na humanidade; é uma tese que não vamos tratar hoje, mas que já se debate em certas escolas filosóficas não materialistas. Não se trata, portanto, senão do invólucro carnal, distinto do Espírito, como a casa o é de seu habitante. Então o corpo do homem pode ser perfeitamente uma modificação do corpo do macaco, sem que se conclua que o seu espírito seja o mesmo que o do macaco. (A Gênese, cap. XI, no 15.)

A questão que se liga à formação desse invólucro não deixa de ser muito importante, primeiro porque resolve um grave problema científico e destrói preconceitos de longa data arraigados pela ignorância, e depois porque os que o estudam exclusivamente esbarrarão com dificuldades insuperáveis, quando quiserem se dar conta de todos os efeitos, absolutamente como se quisessem explicar os efeitos da telegrafia sem a eletricidade. Não encontrarão a solução dessas dificuldades senão na ação do princípio espiritual que, afinal de contas, deverão admitir, para sair do impasse em que estarão empenhados, sob pena de deixar incompleta a sua teoria.

Deixemos, pois, o materialismo estudar as propriedades da matéria; esse estudo é indispensável, e será feito: o espiritualismo terá apenas que completar o trabalho naquilo que lhe concerne. Aceitemos suas descobertas e não nos inquietemos com suas conclusões absolutas, porquanto, estando demonstrada a sua insuficiência para tudo resolver, as necessidades de uma lógica rigorosa conduzirão forçosamente à espiritualidade; e sendo a própria espiritualidade geral incapaz de resolver os inúmeros problemas da vida presente e da vida futura, será encontrada a única chave possível nos princípios mais positivos do Espiritismo.

Já vemos uma porção de homens chegarem por si mesmos às consequências do Espiritismo, sem o conhecer, uns começando pela reencarnação, outros pelo perispírito. Fazem como Pascal, que descobria os elementos da Geometria sem estudo prévio, e sem suspeitar que aquilo que imaginava ter descoberto era uma obra realizada. Dia virá em que pensadores sérios, estudando esta doutrina com a atenção que ela comporta, ficarão muito surpreendidos de aí encontrar o que procuravam, e proclamarão todo feito um trabalho cuja existência não suspeitavam.

É assim que tudo se encadeia no mundo; da matéria bruta saíram os seres orgânicos, cada vez mais aperfeiçoados; do materialismo sairão, pela força das coisas e por dedução lógica, o espiritualismo geral, depois o Espiritismo, que não é outra coisa senão o espiritualismo particularizado, apoiado nos fatos.

O que se passou na origem do mundo para a formação dos primeiros seres orgânicos, passa-se em nossos dias, por meio do que se chama a geração espontânea? Eis a questão. Por nossa conta, não hesitamos em nos pronunciar pela afirmativa.

Os partidários e os adversários se opõem reciprocamente experiências que deram resultados contrários; mas estes últimos esquecem que o fenômeno não pode produzir-se senão em condições adequadas de temperatura e aeração; buscando obtê-las fora dessas condições, devem necessariamente fracassar.

Sabe-se, por exemplo, que para a eclosão artificial dos ovos, há necessidade de uma determinada temperatura regular, e certas precauções minuciosas especiais. Quem negasse tal eclosão porque não a tivesse obtido com alguns graus a mais ou a menos, e sem as precauções necessárias, estaria no mesmo caso daquele que não obtém a geração espontânea num meio impróprio. Parece-nos, pois, que se essa geração se produziu forçosamente nas primeiras idades do globo, não há razão para que não se produza em nossa época, se as condições forem as mesmas, como não há razão para que não se formem calcários, óxidos, ácidos e sais, como no primeiro período.

Hoje é reconhecido que as rugosidades do mofo constituem uma vegetação que nasce sobre a matéria orgânica chegada a certo grau de fermentação. O mofo nos parece ser o primeiro, ou um dos primeiros tipos da vegetação espontânea, e essa vegetação primitiva que se prolonga, revestindo formas diversas conforme o meio e as circunstâncias, nos dá os liquens, os musgos etc. Querem um exemplo mais direto? Que são os cabelos, a barba e os pelos do corpo dos animais, senão uma vegetação espontânea?

A matéria orgânica animalizada, isto é, contendo certa proporção de azoto, dá origem a vermes que têm todos os caracteres de uma geração espontânea. Quando o homem ou um animal qualquer está vivo, a atividade da circulação do sangue e o funcionamento incessante dos órgãos mantêm uma temperatura e um movimento molecular que impedem os elementos constitutivos dessa geração de se formarem e se reunirem. Quando o animal está morto, a parada da circulação e do movimento, e o abaixamento da temperatura num certo limite, produzem a fermentação pútrida e, em consequência, a formação de novos compostos químicos. É então que se veem todos os tecidos subitamente invadidos por miríades de vermes que neles se repastam, sem dúvida para apressar a sua destruição. Como seriam procriados, visto que antes não havia seus traços?

Objetarão, sem dúvida, que são os ovos das moscas na  carne morta. Mas isto nada provaria, porque os ovos das moscas são depositados na superfície, e não no interior dos tecidos, e porque a carne, posta ao abrigo das moscas, ao cabo de certo tempo não está menos apodrecida e cheia de vermes; muitas vezes, até, são vistos invadindo o corpo antes da morte, quando há um começo parcial de decomposição pútrida, notadamente nas feridas gangrenosas.

Certas espécies de vermes se formam durante a vida, mesmo num estado de saúde aparente, sobretudo nos indivíduos linfáticos, cujo sangue é pobre e não têm a superabundância de vida, que se nota em outros; são as lombrigas ou vermes intestinais; as tênias ou vermes solitários, que por vezes atingem sessenta metros de comprimento e se reproduzem por fragmentos, como os pólipos e certas plantas; certos “vermes”, peculiares à raça negra e a certos climas, de um comprimento de trinta a trinta e cinco centímetros, delgados como um fio, e que saem através da pele pelas pústulas; os ascarídeos, os tricocéfalos etc. Muitas vezes formam massas tão consideráveis que obstruem o canal digestivo, sobem ao estômago e até à boca; atravessam os tecidos, alojam-se nas cavidades ou em torno das vísceras, enovelam-se como ninhos de lagarta e causam graves desordens na economia. Sua formação bem podia ser devida a uma geração espontânea, tendo sua fonte num estado patológico especial, na alteração dos tecidos, no enfraquecimento dos princípios vitais e nas secreções mórbidas.

Poderia dar-se o mesmo com os vermes do queijo, com o ácaro da sarna e com uma porção de animálculos que podem nascer no ar, na água e nos corpos orgânicos.

Poder-se-ia supor, é verdade, que os germes dos vermes intestinais fossem introduzidos na economia com o ar que se respira e com os alimentos e que aí eclodissem. Mas, então, surge outra dificuldade: perguntar-se-ia por que a mesma causa não produz o mesmo efeito em todos; por que nem todo mundo tem solitária, nem mesmo lombrigas, quando a alimentação e a respiração produzem efeitos fisiológicos idênticos em todos. Esta explicação, aliás, não seria aplicável aos vermes da decomposição pútrida que surgem depois da morte, nem aos do queijo e tantos outros. Até prova em contrário, somos levados a considerá-los como sendo, ao menos em parte, um produto da geração espontânea, assim como os zoófitos e certos pólipos.

A diferença de sexos que se reconheceu, ou que se julgou reconhecer em certos vermes intestinais, notadamente no tricocéfalo, não seria uma objeção concludente, levando-se em conta que não deixam de pertencer à ordem dos animais inferiores e, por isso mesmo, primitivos. Ora, como a diferença dos sexos deve ter tido um começo, nada se oporia a que nascessem espontaneamente macho ou fêmea.

Aliás, aí não estão senão hipóteses, mas que parecem vir em apoio do princípio. Até onde se estende a sua aplicação? É o que não se poderia dizer. O que se pode afirmar é que ela deve ser circunscrita aos vegetais e aos animais de organização mais simples, e não nos parece duvidoso que assistamos a uma criação incessante.



[1] Revista Espírita – Julho/1868 – Allan Kardec

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