Allan Kardec
Em nossa obra A Gênese,
desenvolvemos a teoria da geração espontânea, apresentando-a como uma hipótese
provável.
Alguns partidários absolutos
desta teoria admiraram-se de que não a tivéssemos afirmado como princípio. A
isto responderemos que, se a questão está resolvida para uns, não o está para
todos, e a prova é que a Ciência ainda está dividida a respeito. Aliás, ela é
do domínio científico, onde o Espiritismo não pode colher e onde nada lhe cabe
resolver de maneira definitiva, naquilo que não é essencialmente de sua alçada.
Pelo fato de o Espiritismo
assimilar todas as ideias progressistas, não se segue que se faça campeão cego
de todas as concepções novas, por mais sedutoras que sejam à primeira vista,
com o risco de receber, mais tarde, um desmentido da experiência e de se expor
ao ridículo de haver patrocinado uma obra inviável.
Se não se pronuncia claramente
sobre certas questões controvertidas, não é, como poderiam crer, para
condescender com os dois partidos, mas por prudência, e para não se adiantar
levianamente num terreno ainda não suficientemente explorado.
Eis por que não aceita
imediatamente as ideias novas, mesmo as que lhe pareçam justas, senão sob muita
reserva, e de maneira definitiva apenas quando chegaram ao estado de verdades
reconhecidas.
A questão da geração espontânea
está neste número.
Para nós, pessoalmente, é uma
convicção, e se a tivéssemos tratado numa obra comum, tê-la-íamos resolvido
pela afirmativa; mas numa obra constitutiva da Doutrina Espírita, as opiniões
individuais não podem fazer lei; não se baseando a Doutrina em probabilidades,
não podíamos decidir uma questão de tal gravidade, apenas despontada, e que
ainda está em litígio entre os especialistas.
Afirmando a coisa sem restrição,
teria sido comprometer a Doutrina prematuramente, o que jamais fazemos, mesmo
para fazer prevalecerem as nossas simpatias.
O que, até aqui, deu força ao
Espiritismo, o que dele fez uma ciência positiva e de futuro, é que jamais
avançou levianamente; que não se constituiu sobre nenhum sistema preconcebido;
que não estabeleceu nenhum princípio absoluto sobre a opinião pessoal, nem de
um homem, nem de um Espírito, mas somente depois que esse princípio recebeu a
consagração da experiência e de uma demonstração rigorosa, resolvendo todas as
dificuldades da questão.
Quando, pois, formulamos um
princípio é que, de antemão, estamos certos do assentimento da maioria dos
homens e dos Espíritos. Eis por que não temos tido decepções. Tal é, também, a
razão pela qual, nestes quase doze anos, nenhuma das bases que constituem a
Doutrina recebeu desmentido oficial; os princípios de O Livro dos Espíritos
foram sucessivamente desenvolvidos e completados, mas nenhum caiu em desuso, e
nossos escritos não estão, em nenhum ponto, em contradição com os primeiros,
malgrado o tempo decorrido e as novas observações que foram feitas.
Certamente não seria o mesmo se
tivéssemos cedido às sugestões dos que nos gritavam continuamente para irmos
mais depressa, e se tivéssemos esposado todas as teorias que despontavam da
direita e da esquerda. Por outro lado, se tivéssemos escutado os que nos pediam
que fôssemos mais devagar, ainda estaríamos observando as mesas girantes. Vamos
à frente quando sentimos que o momento é propício e vemos que os espíritos
estão maduros para aceitarem uma ideia nova; mas nos detemos quando vemos que o
terreno não é bastante sólido para aí fincar o pé. Com a nossa aparente
lentidão e nossa circunspeção muito meticulosa para o gosto de certas pessoas,
temos feito mais caminho do que se nos tivéssemos posto a correr, pois evitamos
dar uma cambalhota na estrada. Não tendo motivo para lamentar a marcha que
temos seguido até agora, dela não nos desviaremos.
Dito isto, completaremos com
algumas observações o que dissemos em A Gênese, no que concerne à
geração espontânea.
Sendo a Revista um terreno de
estudo e de elaboração dos princípios, e nela dando sem rodeios a nossa
opinião, não tememos empenhar a responsabilidade da Doutrina, porque a Doutrina
a adotará, se for justa, e a rejeitará, se for falsa.
Hoje é fato cientificamente
demonstrado que a vida orgânica nem sempre existiu na Terra, e que aí teve um
começo; a Geologia permite seguir o seu desenvolvimento gradual. Os primeiros
seres do reino vegetal e do reino animal que então apareceram, devem ter-se
formado sem procriação, e pertencer às classes inferiores, como o constatam as
observações geológicas. À medida que os elementos dispersos se reuniram, as
primeiras combinações formaram corpos exclusivamente inorgânicos, isto é,
pedras, águas e minerais de toda sorte. Quando esses mesmos elementos se
modificaram pela ação do fluido vital – que não é o princípio inteligente –
formaram corpos dotados de vitalidade, de uma organização constante e regular,
cada um na sua espécie. Ora, assim como a cristalização da matéria bruta não
ocorre senão quando uma causa acidental vem opor-se ao arranjo simétrico das
moléculas, os corpos organizados se formam desde que as circunstâncias
favoráveis de temperatura, umidade, repouso ou movimento, e uma espécie de
fermentação permitam que as moléculas da matéria, vivificadas pelo fluido vital,
se reúnam. É o que se vê em todos os germes em que a vitalidade pode ficar
latente durante anos e séculos, e se manifestar num dado momento, quando as
circunstâncias são propícias.
Os seres não procriados formam,
pois, o primeiro escalão dos seres orgânicos e, provavelmente, serão contados
um dia na classificação científica. Quanto às espécies que se propagam pela
procriação, uma opinião que não é nova, mas que hoje se generaliza sob a égide
da Ciência, é que os primeiros tipos de cada espécie são o produto de uma
modificação da espécie imediatamente inferior. Assim, estabeleceu-se uma cadeia
ininterrupta, desde o musgo e o líquen, até o carvalho, e depois o zoófito, o
verme da terra e o ácaro até o homem. Sem dúvida, entre o verme da terra e o
homem, se se considerarem apenas os dois pontos extremos, há uma diferença que
parece um abismo; mas quando se aproximam todos os elos intermediários,
encontra-se uma filiação sem solução de continuidade.
Os partidários desta teoria que,
repetimos, tende a prevalecer, e à qual nos ligamos sem reserva, estão longe de
ser todos espiritualistas, e ainda menos espíritas. Não considerando senão a
matéria, fazem abstração do princípio espiritual ou inteligente. Essa questão,
pois, nada prejulga sobre a filiação desse princípio da animalidade na
humanidade; é uma tese que não vamos tratar hoje, mas que já se debate em
certas escolas filosóficas não materialistas. Não se trata, portanto, senão do
invólucro carnal, distinto do Espírito, como a casa o é de seu habitante. Então
o corpo do homem pode ser perfeitamente uma modificação do corpo do macaco, sem
que se conclua que o seu espírito seja o mesmo que o do macaco. (A Gênese,
cap. XI, no 15.)
A questão que se liga à formação
desse invólucro não deixa de ser muito importante, primeiro porque resolve um
grave problema científico e destrói preconceitos de longa data arraigados pela
ignorância, e depois porque os que o estudam exclusivamente esbarrarão com
dificuldades insuperáveis, quando quiserem se dar conta de todos os efeitos,
absolutamente como se quisessem explicar os efeitos da telegrafia sem a
eletricidade. Não encontrarão a solução dessas dificuldades senão na ação do
princípio espiritual que, afinal de contas, deverão admitir, para sair do
impasse em que estarão empenhados, sob pena de deixar incompleta a sua teoria.
Deixemos, pois, o materialismo
estudar as propriedades da matéria; esse estudo é indispensável, e será feito:
o espiritualismo terá apenas que completar o trabalho naquilo que lhe concerne.
Aceitemos suas descobertas e não nos inquietemos com suas conclusões absolutas,
porquanto, estando demonstrada a sua insuficiência para tudo resolver, as
necessidades de uma lógica rigorosa conduzirão forçosamente à espiritualidade;
e sendo a própria espiritualidade geral incapaz de resolver os inúmeros
problemas da vida presente e da vida futura, será encontrada a única chave
possível nos princípios mais positivos do Espiritismo.
Já vemos uma porção de homens
chegarem por si mesmos às consequências do Espiritismo, sem o conhecer, uns
começando pela reencarnação, outros pelo perispírito. Fazem como Pascal, que
descobria os elementos da Geometria sem estudo prévio, e sem suspeitar que
aquilo que imaginava ter descoberto era uma obra realizada. Dia virá em que
pensadores sérios, estudando esta doutrina com a atenção que ela comporta,
ficarão muito surpreendidos de aí encontrar o que procuravam, e proclamarão
todo feito um trabalho cuja existência não suspeitavam.
É assim que tudo se encadeia no
mundo; da matéria bruta saíram os seres orgânicos, cada vez mais aperfeiçoados;
do materialismo sairão, pela força das coisas e por dedução lógica, o
espiritualismo geral, depois o Espiritismo, que não é outra coisa senão o
espiritualismo particularizado, apoiado nos fatos.
O que se passou na origem do
mundo para a formação dos primeiros seres orgânicos, passa-se em nossos dias,
por meio do que se chama a geração espontânea? Eis a questão. Por nossa conta,
não hesitamos em nos pronunciar pela afirmativa.
Os partidários e os adversários
se opõem reciprocamente experiências que deram resultados contrários; mas estes
últimos esquecem que o fenômeno não pode produzir-se senão em condições
adequadas de temperatura e aeração; buscando obtê-las fora dessas condições,
devem necessariamente fracassar.
Sabe-se, por exemplo, que para a
eclosão artificial dos ovos, há necessidade de uma determinada temperatura
regular, e certas precauções minuciosas especiais. Quem negasse tal eclosão
porque não a tivesse obtido com alguns graus a mais ou a menos, e sem as
precauções necessárias, estaria no mesmo caso daquele que não obtém a geração
espontânea num meio impróprio. Parece-nos, pois, que se essa geração se
produziu forçosamente nas primeiras idades do globo, não há razão para que não
se produza em nossa época, se as condições forem as mesmas, como não há razão
para que não se formem calcários, óxidos, ácidos e sais, como no primeiro
período.
Hoje é reconhecido que as
rugosidades do mofo constituem uma vegetação que nasce sobre a matéria orgânica
chegada a certo grau de fermentação. O mofo nos parece ser o primeiro, ou um
dos primeiros tipos da vegetação espontânea, e essa vegetação primitiva que se
prolonga, revestindo formas diversas conforme o meio e as circunstâncias, nos
dá os liquens, os musgos etc. Querem um exemplo mais direto? Que são os
cabelos, a barba e os pelos do corpo dos animais, senão uma vegetação
espontânea?
A matéria orgânica animalizada,
isto é, contendo certa proporção de azoto, dá origem a vermes que têm todos os
caracteres de uma geração espontânea. Quando o homem ou um animal qualquer está
vivo, a atividade da circulação do sangue e o funcionamento incessante dos
órgãos mantêm uma temperatura e um movimento molecular que impedem os elementos
constitutivos dessa geração de se formarem e se reunirem. Quando o animal está
morto, a parada da circulação e do movimento, e o abaixamento da temperatura
num certo limite, produzem a fermentação pútrida e, em consequência, a formação
de novos compostos químicos. É então que se veem todos os tecidos subitamente
invadidos por miríades de vermes que neles se repastam, sem dúvida para
apressar a sua destruição. Como seriam procriados, visto que antes não havia
seus traços?
Objetarão, sem dúvida, que são
os ovos das moscas na carne morta. Mas
isto nada provaria, porque os ovos das moscas são depositados na superfície, e
não no interior dos tecidos, e porque a carne, posta ao abrigo das moscas, ao
cabo de certo tempo não está menos apodrecida e cheia de vermes; muitas vezes,
até, são vistos invadindo o corpo antes da morte, quando há um começo parcial
de decomposição pútrida, notadamente nas feridas gangrenosas.
Certas espécies de vermes se
formam durante a vida, mesmo num estado de saúde aparente, sobretudo nos
indivíduos linfáticos, cujo sangue é pobre e não têm a superabundância de vida,
que se nota em outros; são as lombrigas ou vermes intestinais; as tênias ou
vermes solitários, que por vezes atingem sessenta metros de comprimento e se
reproduzem por fragmentos, como os pólipos e certas plantas; certos “vermes”,
peculiares à raça negra e a certos climas, de um comprimento de trinta a trinta
e cinco centímetros, delgados como um fio, e que saem através da pele pelas
pústulas; os ascarídeos, os tricocéfalos etc. Muitas vezes formam massas tão
consideráveis que obstruem o canal digestivo, sobem ao estômago e até à boca;
atravessam os tecidos, alojam-se nas cavidades ou em torno das vísceras,
enovelam-se como ninhos de lagarta e causam graves desordens na economia. Sua
formação bem podia ser devida a uma geração espontânea, tendo sua fonte num
estado patológico especial, na alteração dos tecidos, no enfraquecimento dos
princípios vitais e nas secreções mórbidas.
Poderia dar-se o mesmo com os
vermes do queijo, com o ácaro da sarna e com uma porção de animálculos que
podem nascer no ar, na água e nos corpos orgânicos.
Poder-se-ia supor, é verdade,
que os germes dos vermes intestinais fossem introduzidos na economia com o ar
que se respira e com os alimentos e que aí eclodissem. Mas, então, surge outra dificuldade:
perguntar-se-ia por que a mesma causa não produz o mesmo efeito em todos; por
que nem todo mundo tem solitária, nem mesmo lombrigas, quando a alimentação e a
respiração produzem efeitos fisiológicos idênticos em todos. Esta explicação,
aliás, não seria aplicável aos vermes da decomposição pútrida que surgem depois
da morte, nem aos do queijo e tantos outros. Até prova em contrário, somos
levados a considerá-los como sendo, ao menos em parte, um produto da geração espontânea,
assim como os zoófitos e certos pólipos.
A diferença de sexos que se
reconheceu, ou que se julgou reconhecer em certos vermes intestinais,
notadamente no tricocéfalo, não seria uma objeção concludente, levando-se em conta
que não deixam de pertencer à ordem dos animais inferiores e, por isso mesmo,
primitivos. Ora, como a diferença dos sexos deve ter tido um começo, nada se
oporia a que nascessem espontaneamente macho ou fêmea.
Aliás, aí não estão senão
hipóteses, mas que parecem vir em apoio do princípio. Até onde se estende a sua
aplicação? É o que não se poderia dizer. O que se pode afirmar é que ela deve
ser circunscrita aos vegetais e aos animais de organização mais simples, e não
nos parece duvidoso que assistamos a uma criação incessante.
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