Allan Kardec
Muito se tem falado dos perigos
do Espiritismo. Entretanto, é de notar-se que aqueles que mais gritaram são
precisamente os que só o conhecem de nome. Já refutamos os principais
argumentos que lhe opuseram, de tal forma que a eles não mais retornaremos;
acrescentaremos somente que, se quiséssemos proscrever da sociedade tudo quanto
possa oferecer perigo e dar margem a abuso, não saberíamos ao certo o que
haveria de restar, mesmo em relação às coisas de primeira necessidade, a
começar pelo fogo, causa de tantas desgraças; as estradas de ferro, em seguida
etc. Se admitirmos que as vantagens compensam os inconvenientes, o mesmo
raciocínio se aplica a tudo o mais: assim o indica a experiência, à medida que
tomamos certas precauções para nos subtrairmos aos perigos que não podemos
evitar.
Realmente, o Espiritismo
representa um perigo real; de modo algum, porém, aquele que se supõe: é preciso
que se seja iniciado nos princípios da ciência para bem compreendê-lo. Não nos
dirigimos absolutamente àqueles que lhe são estranhos, mas aos próprios
adeptos, aos que o praticam, visto ser para eles que o perigo existe. Importa
que o conheçam, a fim de se porem em guarda: perigo previsto, já se sabe, é
perigo pela metade. Diremos mais: para quem quer que esteja instruído na
ciência, não há perigo; só existe para os que julgam saber e nada sabem, isto
é, para os que não possuem a necessária experiência, como só acontece em todas
as coisas.
Um desejo muito natural em todos
aqueles que começam a se ocupar do Espiritismo é ser médium, principalmente
médium de psicografia. Sem dúvida é o gênero que oferece mais atração, em
virtude da facilidade das comunicações, e por ser o que melhor se desenvolve
pelo exercício. Compreende-se a satisfação que deve experimentar aquele que,
pela primeira vez, vê a própria mão formar letras, depois palavras, depois
frases que respondem aos seus pensamentos. Essas respostas, que traça
maquinalmente, sem saber o que faz e que, no mais das vezes, estão fora de toda
ideia pessoal, não lhe podem deixar nenhuma dúvida quanto à intervenção de uma
inteligência oculta. Assim, grande é a sua alegria de poder se entreter com os
seres de além túmulo, com esses seres misteriosos e invisíveis que povoam os
espaços; seus parentes e amigos já não se acham ausentes; se não os vê com os
olhos, nem por isso deixam de ali estar; conversam com ele, e ele os vê pelo
pensamento; pode saber se são felizes, o que fazem, o que desejam e com eles
trocar boas palavras; compreende que entre eles a separação não é eterna e
acelera, com seus votos, o instante em que poderão reunir-se num mundo melhor.
Isso não é tudo: quanto não vai saber por meio dos Espíritos que se comunicam
com ele! Não irão levantar o véu de todas as coisas? Desde então, nada mais de
mistérios; não tem senão que interrogar, para tudo ficar sabendo. À sua frente,
já vê a Antiguidade sacudir a poeira dos tempos, revolver as ruínas,
interpretar as escrituras simbólicas e fazer reviver aos seus olhos os séculos
que se foram. Outro, mais prosaico, e menos preocupado em sondar o infinito
onde seu pensamento se perde, simplesmente sonha em explorar os Espíritos para
fazer fortuna. Os Espíritos, que devem ver tudo e tudo saber, não podem recusar
fazer-lhe descobrir algum tesouro oculto ou algo secreto e maravilhoso. Quem
quer que se dê ao trabalho de estudar a ciência espírita não se deixará jamais
seduzir por esses belos sonhos; sabe a que se ater sobre o poder dos Espíritos,
sua natureza e o objetivo das relações que com eles pode o homem estabelecer.
Recordemos, primeiro, em poucas palavras, os pontos principais, que jamais
devem ser perdidos de vista, porque são como que a pedra angular do edifício.
1º Os Espíritos não são iguais nem em poder, nem em
conhecimento, nem em sabedoria. Nada mais sendo que as almas dos homens,
desembaraçadas de seu invólucro corporal, apresentam variedade ainda maior do
que as encontradas entre os homens na Terra, visto procederem de todos os
mundos e porque entre os mundos o nosso planeta não é o mais atrasado, nem o
mais avançado. Há, pois, Espíritos muito superiores, e outros bastante
inferiores; muito bons e muito maus, muito sábios e muito ignorantes; há os levianos,
malévolos, mentirosos, astuciosos, hipócritas, engraçados, espirituosos,
zombeteiros etc.
2º Estamos incessantemente cercados por uma multidão de
Espíritos que, por serem invisíveis aos nossos olhos materiais, nem por isso
deixam de estar no espaço, ao redor de nós, ao nosso lado, espiando nossas
ações, lendo os nossos pensamentos, uns para nos fazerem o bem, outros para nos
induzirem ao mal, conforme sejam bons ou maus.
3º Pela inferioridade física e moral de nosso globo na hierarquia
dos mundos, os Espíritos inferiores são aqui mais numerosos que os superiores.
4º Entre os Espíritos que nos rodeiam, há os que se vinculam
a nós, que agem mais particularmente sobre o nosso pensamento, aconselham-nos,
e cujo impulso seguimos sem o saber. Felizes se escutarmos somente a voz dos
bons.
5º Os Espíritos inferiores não se ligam senão aos que os
ouvem, junto aos quais têm acesso e aos quais se prendem. Caso consigam
estabelecer domínio sobre alguém, identificam-se com o seu próprio Espírito,
fascinam-no, obsediam-no, subjugam-no e o conduzem como se fosse uma verdadeira
criança.
6º A obsessão jamais se dá senão pelos Espíritos inferiores.
Os Espíritos bons não causam nenhum constrangimento; aconselham, combatem a
influência dos maus e, se não são ouvidos, afastam-se.
7º O grau de constrangimento e a natureza dos efeitos que
produz marcam a diferença entre a obsessão, a subjugação e a fascinação.
A obsessão é
a ação quase permanente de um Espírito estranho, que faz com que a vítima seja
induzida, por uma necessidade incessante, a agir nesse ou naquele sentido, a
fazer tal ou qual coisa.
A subjugação
é uma opressão moral que paralisa a vontade daquele que a sofre, impelindo-o às
mais despropositadas ações e, frequentemente, àquelas que mais contrariam os
seus interesses.
A fascinação
é uma espécie de ilusão, ora produzida pela ação direta de um Espírito
estranho, ora por seus raciocínios capciosos, ilusão que altera o senso moral,
falseia o julgamento e faz tomar o mal pelo bem.
8º Por sua vontade, pode o homem livrar-se sempre do jugo
dos Espíritos imperfeitos, porque, em virtude de seu livre-arbítrio, tem a
escolha entre o bem e o mal. Se o constrangimento chegou a ponto de paralisar a
vontade, e se a fascinação é bastante grande para obliterar a razão, a vontade
de uma outra pessoa pode substituí-la.
Outrora se dava o nome de possessão ao império exercido pelos
Espíritos maus, quando sua influência ia até à aberração das faculdades. Mas a
ignorância e os preconceitos muitas vezes fizeram tomar por possessão o que não resultava senão de
um estado patológico. Para nós, a possessão
seria um sinônimo de subjugação. Se
não adotamos esse termo, foi por dois motivos: primeiro, porque implica a
crença em seres criados e votados perpetuamente ao mal, enquanto apenas existem
seres mais ou menos imperfeitos e todos podem melhorar; segundo, porque
pressupõe igualmente a ideia de tomada de posse do corpo por um Espírito
estranho, uma espécie de coabitação, quando só há constrangimento. A palavra subjugação
traduz perfeitamente esse pensamento. Dessa forma, para nós, não existem possessos
no sentido vulgar do termo, mas tão-somente obsediados, subjugados
e fascinados[2].
Foi por motivo semelhante que
não adotamos a palavra demônio para designar os Espíritos imperfeitos,
embora muitas vezes esses Espíritos não valham mais que aqueles que chamamos demônios;
foi unicamente por causa da ideia de especialidade e de perpetuidade que se
liga a esse vocábulo. Assim, quando dizemos que não há demônios, não
pretendemos afirmar que só haja Espíritos bons; longe disso; sabemos
perfeitamente que os há maus e muito maus, que nos impelem para o mal, que nos
estendem armadilhas, nada havendo nisso de espantoso, visto que foram homens.
Queremos dizer que eles não formam uma classe à parte na ordem da Criação, e que
Deus deixa a todas as criaturas o poder de se melhorarem.
Bem entendido isto, voltemos aos
médiuns. Em alguns o progresso é lento, bastante lento mesmo, muitas vezes
submetendo a paciência a uma rude prova. Noutros esse progresso é rápido e, em
pouco tempo, chega o médium a escrever com tanta facilidade e, algumas vezes,
com mais presteza do que o faria em seu estado habitual. É então que pode
tomar-se de entusiasmo e é exatamente nisso que está o perigo, porquanto o
entusiasmo enfraquece e com os Espíritos é preciso ser forte. Parece um
paradoxo dizer que o entusiasmo enfraquece, nada havendo, porém, de mais
verdadeiro. Dir-se-á que o entusiasta marcha com uma convicção e uma confiança
que lhe permitem superar todos os obstáculos; portanto, tem mais força. Sem
dúvida; contudo, tanto nos entusiasmamos pelo falso quanto pelo verdadeiro;
apegai-vos às mais absurdas ideias do entusiasta e delas fareis tudo o que
quiserdes; o objeto de seu entusiasmo é, pois, seu lado fraco e por aí poderão sempre
dominá-lo. O homem frio e impassível, ao contrário, vê as coisas sem se deixar
enganar: combina, pesa, amadurece e não é seduzido por nenhum subterfúgio; é
isso que lhe dá força. Os Espíritos malévolos, que sabem disso tão bem ou mais
do que nós, também sabem empregá-lo em seu proveito para subjugar aqueles que desejam
manter sob sua dependência; e a faculdade de escrever como médium lhes serve
maravilhosamente, visto ser um meio poderoso de captar a confiança, da qual se
aproveitam se não mantemos a necessária vigilância. Felizmente, como veremos
mais tarde, o próprio mal traz em si o remédio.
Seja por entusiasmo, por
fascinação dos Espíritos, ou por amor-próprio, em geral o médium psicógrafo é
levado a crer que são superiores aos Espíritos que com ele se comunicam, sobretudo
quando tais Espíritos, aproveitando-se dessa presunção, adornam-se de títulos
pomposos, tomando nomes de santos, de sábios, de anjos e da própria Virgem
Maria, conforme a necessidade e segundo as circunstâncias. E, para desempenhar
seu papel de comediantes, chegam até mesmo a portar a indumentária extravagante
das personagens que representam. Tirai suas máscaras e vereis que se
transformam no que sempre foram: ilustres desconhecidos; é o que
necessariamente devemos fazer, tanto com os Espíritos, quanto com os homens.
Da crença cega e irrefletida na
superioridade dos Espíritos que se comunicam, à confiança em suas palavras não
há senão um passo; é o que também acontece entre os homens. Se conseguirem
inspirar essa confiança, haverão de sustentá-la por meio de sofismas e dos mais
capciosos raciocínios, perante os quais frequentemente inclinamos a cabeça. Os
Espíritos grosseiros são menos perigosos: reconhecemo-los imediatamente e só
inspiram repugnância. Os mais temíveis, em seu mundo, como no nosso, são os
Espíritos hipócritas: falam sempre com doçura, lisonjeando as mentes
predispostas; são meigos, aduladores, pródigos em expressões de ternura e em
protestos de devotamento. É preciso ser realmente forte para resistir a
semelhantes seduções. Mas, direis, onde estaria o perigo, desde que os
Espíritos são impalpáveis? O perigo está nos conselhos perniciosos que dão,
aparentemente benévolos, e nos passos ridículos, intempestivos ou funestos a
que somos induzidos. Já vimos alguns Espíritos fazerem com que certas pessoas
corressem de país em país, à procura das coisas mais fantásticas, sob o risco
de comprometerem a saúde, a fortuna e a própria vida. Vimo-los ditar, com toda
aparência de gravidade, as coisas mais burlescas, as máximas mais estranhas.
Como convém dar o exemplo ao lado da teoria vamos relatar a história de uma pessoa
do nosso conhecimento que se encontrou sob o império de uma fascinação
semelhante.
O Sr. F..., rapaz instruído, de
esmerada educação, de caráter suave e benevolente, mas um pouco fraco e
indeciso, tornou-se hábil médium psicógrafo com bastante rapidez. Obsidiado
pelo Espírito que dele se apoderou e não lhe dava sossego, escrevia sem parar.
Desde que uma pena, ou um lápis, lhe caíam à mão, ele os tomava num movimento convulsivo
e se punha a preencher páginas inteiras em poucos minutos. Na falta de
instrumento, simulava escrever com o dedo, onde quer que se encontrasse: na
rua, nas paredes, nas portas etc. Entre outras coisas que lhe ditaram havia estas:
O homem é composto
de três coisas: o homem, o Espírito bom e o Espírito mau. Todos vós tendes
vosso Espírito mau, que está ligado ao corpo por laços materiais. Para expulsar
o Espírito mau é necessário romper esses laços e, para isso, é preciso enfraquecer
o corpo. Quando este se encontra suficientemente enfraquecido, o laço se parte
e o Espírito mau o abandona, permanecendo apenas o bom.
Em consequência dessa bela
teoria, fizeram-no jejuar durante cinco dias consecutivos e velar à noite. Quando
ficou extenuado, disseram-lhe:
Agora a coisa está
feita e o laço rompido; teu Espírito mau partiu e ficamos apenas nós, em quem
deves crer sem reserva.
E ele, persuadido de que seu
Espírito mal havia fugido, acreditava cegamente em todas as suas palavras. A
subjugação havia chegado a tal ponto que, se lhe tivessem dito para lançar-se
na água ou para dar cambalhotas, ele o teria feito. Quando queriam levá-lo a
fazer qualquer coisa que lhe repugnava, sentia-se arrastado por uma força
invisível. Damos uma amostra de sua moral; por ela se julgará o resto.
Para obter melhores comunicações, é necessário orar e
jejuar durante vários dias, uns mais, outros menos; o jejum enfraquece os laços
que existem entre o eu e um demônio particular ligado a cada ser humano.
Esse demônio está ligado a cada pessoa pelo envoltório que une o corpo e a
alma. Enfraquecido pela ausência de nutrição, o envoltório permite que os
Espíritos arranquem aquele demônio. Então Jesus desce ao coração da
pessoa possessa, em lugar do Espírito mau. Esse estado de possuir Jesus em si é
o único meio de alcançar toda a verdade e muitas outras coisas.
Quando a pessoa conseguiu substituir o demônio por Jesus,
ainda não possui a verdade. Para tê-la, é preciso crer; Deus jamais dá a
verdade aos que duvidam: seria fazer algo inútil e Deus nada faz em vão. Como a
maior parte dos médiuns novatos duvida do que diz ou escreve, os Espíritos bons
são forçados, lamentavelmente e por ordem formal de Deus, a mentir, e
não podem senão mentir enquanto o médium não esteja convencido; mas, vindo
a crer firmemente numa dessas mentiras, os Espíritos elevados se apressam em
desvelar-lhe os segredos do céu: a verdade completa dissipa num instante essa
nuvem de erros com que tinham sido forçados a envolver seu protegido.
Chegado a esse ponto, nada mais tem o médium a temer;
os Espíritos bons jamais o deixarão. Todavia, que não creia ter sempre a
verdade, e nada mais que a verdade. Seja para o experimentar, seja para o punir
de suas faltas passadas, seja ainda para o castigar por perguntas egoístas ou
curiosas, infligindo-lhe correções físicas e morais, os Espíritos bons
vêm atormentá-lo por ordem de Deus. Muitas vezes esses Espíritos elevados se
queixam da triste missão que desempenham: um pai persegue o filho durante
semanas inteiras, um amigo ao seu amigo, tudo para maior felicidade do médium.
Então os nobres Espíritos dizem loucuras, blasfêmias e até torpezas. É
necessário que o médium se obstine e diga: Vós me tentais; sei que me encontro
entre mãos caridosas de Espíritos ternos e afetuosos; que os maus já não podem
aproximar-se de mim. Boas almas, que me atormentais, não me impedireis de crer
no que me dissestes e no que ainda havereis de dizer-me.
Os católicos expulsam mais facilmente o demônio [esse jovem médium era protestante]
porque por um instante ele se afastou no dia do batismo. Os católicos são
julgados pelo Cristo e os outros por Deus; é preferível ser julgado pelo
Cristo. Erram os protestantes em não admitir isso: assim, é necessário que te
tornes católico o mais cedo possível; enquanto esperas, vai tomar água benta:
será o teu batismo.
O jovem em questão, tendo sido
curado mais tarde da obsessão de que era vítima, por meios que relataremos,
havíamos pedido a ele que nos escrevesse essa história e nos fornecesse o próprio
texto dos preceitos que lhe haviam sido ditados. Transcrevendo-os, acrescentou
na cópia que nos remeteu:
Questiono-me se não ofendo a Deus e aos Espíritos bons,
transcrevendo semelhantes tolices.
A isto lhe respondemos:
Não; não ofendeis a Deus; longe disso, porque agora
reconheceis a armadilha na qual havíeis tombado. Se vos pedi a cópia dessas
máximas perversas, foi para difamá-las como bem o merecem, desmascarar os
Espíritos hipócritas e alertar quem quer que receba coisa semelhante.
Um dia farão com que escreva: Morrerás
esta noite, ao que ele responderá:
– Sinto-me bastante
aborrecido neste mundo; morramos, se preciso for, não peço nada melhor; que eu
não sofra mais: é tudo quanto desejo.
À noite adormece, acreditando
piamente não mais despertar na Terra. No dia seguinte ficará muito surpreendido
e até mesmo desapontado de se achar em seu leito habitual. Durante o dia escreve:
– Agora que passaste
pela prova da morte, que acreditaste firmemente que ias morrer, estás como
morto para nós; poderemos dizer-te toda a verdade; saberás tudo; nada haverá de
oculto para nós; nada haverá de oculto para ti. És Shakespeare reencarnado. Shakespeare
não é tua Bíblia? [O Sr. F... conhece perfeitamente o inglês e se compraz
na leitura das obras-primas dessa língua].
No dia seguinte escreve:
– Tu és Satã.
– Isso começa a ficar muito forte, responde o Sr. F...
– Não fizeste... não
devoraste o paraíso perdido?
Aprendeste a Fille du diable,
de Béranger; sabias que Satã se converteria: não o acreditaste sempre, não
afirmavas sempre, não escrevias sempre? Para converter-se ele se reencarna.
– Bem que eu
gostaria de ter sido um anjo rebelde qualquer; mas o rei dos anjos...!
– Sim, eras o anjo
da altivez; não és mau, tens um coração orgulhoso e é esse orgulho que é
preciso abater; és o anjo do orgulho, que os homens chamam Satã, não importa o
nome! Foste o gênio mau da Terra. Eis-te humilhado... Os homens progredirão...
Verás maravilhas. Enganaste os homens; enganaste a mulher na personificação de
Eva, a mulher pecadora. Está dito que Maria, a personificação da mulher sem
mácula, esmagar-te-á a cabeça. Maria vai chegar.
Um instante depois ele escreveu lentamente e com doçura:
– Maria vem ver-te;
Maria, que foi buscar-te no fundo de teu reino de trevas, não te abandonará.
Levanta-te, Satã; Deus está pronto para te estender os braços. Lê O Filho Pródigo. Adeus.
Em outra ocasião ele escreveu:
– Disse a serpente a
Eva: Vossos olhos abrir-se-ão e sereis como os deuses. O demônio disse a Jesus: Dar-te-ei todo o poder. A ti eu digo, pois
acreditas em nossas palavras: nós te amamos; tu serás tudo... Serás o rei da
Polônia.
– Persevera nas boas disposições em que te colocamos. Esta
lição fará a ciência espírita dar um grande passo. Ver-se-á que os Espíritos
bons podem dizer futilidades e mentiras para se divertirem com os sábios. Disse
Allan Kardec que um meio inadequado de reconhecer os Espíritos era fazê-los
confessar Jesus em carne. Eu digo que somente os Espíritos bons confessam Jesus
em carne e eu o confesso. Dize isso a Kardec.
Entretanto, o Espírito teve o
pudor de não aconselhar o Sr. F... a imprimir essas belas máximas. Se o tivesse
feito, por certo ele obedeceria, o que teria sido uma péssima ação, porquanto o
Sr. F... as teria considerado como coisa séria.
Encheríamos um volume com todas
as tolices que lhe foram ditadas e com todas as circunstâncias que se seguiram.
Entre outras coisas, fizeram-no desenhar um edifício, cujas dimensões eram de
tal monta que as folhas de papel, coladas umas às outras, ocupariam a altura de
dois pavimentos.
Notar-se-á que em tudo isso nada
há de grosseiro, nem de trivial; é uma série de raciocínios sofísticos que se
encadeiam com uma aparência de lógica. Nos meios empregados para o seduzir há
uma arte verdadeiramente infernal e, se nos tivesse sido possível relatar todas
essas comunicações, ver-se-ia até que ponto era levada a astúcia, e com que
habilidade para isso eram empregadas palavras melífluas.
O Espírito que representava o
principal papel nesse caso dava o nome de François Dillois, quando não se
cobria com a máscara de um nome respeitável. Mais tarde soubemos o que em vida
houvera sido esse tal Dillois e, desde então, nada mais nos surpreendeu em sua
linguagem. Todavia, no meio de todas essas extravagâncias, era fácil reconhecer
um Espírito bom que lutava, fazendo de quando em quando ouvir algumas palavras
boas para desmentir os absurdos do outro; havia, evidentemente, um combate, mas
a luta era desigual; o moço estava de tal forma subjugado, que sobre ele era
impotente a voz da razão. O Espírito de seu pai fez-lhe escrever especialmente
isso:
Sim, meu filho, coragem!
Sofres uma rude prova que será para o teu bem, no futuro; infelizmente, neste
momento, nada posso fazer para te libertar e isto me custa bastante. Vai ver
Allan Kardec; escuta-o; ele te salvará.
Realmente, o Sr. F... veio
procurar-me e contou-me sua história. Fiz com que escrevesse diante de mim e,
desde logo reconheci a influência perniciosa sob a qual se achava submetido, seja
pelas palavras, seja por certos sinais materiais que a experiência dá a
conhecer e que não nos podem enganar.
Voltou diversas vezes; empreguei
toda a minha força de vontade para chamar os Espíritos bons por seu intermédio,
toda a minha retórica para provar-lhe que era vítima de Espíritos detestáveis;
que aquilo que escrevia não tinha o menor sentido e, além disso, era
profundamente imoral. Para essa obra de caridade associei-me a um de meus companheiros
mais devotados, o Sr. T..., e aos poucos conseguimos fazer com que escrevesse
coisas sensatas. Tomou seu mau gênio em aversão, repelindo-o voluntariamente
toda vez que tentava manifestar-se e, pouco a pouco, apenas os Espíritos bons
prevaleceram. Para renunciar às suas ideias, e seguindo conselhos dos
Espíritos, entregou-se completamente a um rude trabalho, que não lhe deixava tempo
para ouvir as sugestões más.
O próprio Dillois acabou por confessar-se
vencido, exprimindo o desejo de melhorar-se numa nova existência; confessou o
mal que tinha tentado fazer e deu demonstrações de arrependimento. A luta foi
longa, penosa, e ofereceu particularidades realmente curiosas para o
observador. Hoje, o Sr. F... sente-se libertado e é feliz; parece que se livrou
de um fardo. Recuperou a alegria e nos agradece pelo serviço que lhe prestamos.
Algumas pessoas deploram que
haja Espíritos maus. De fato, não é sem um certo desencanto que encontramos a
perversidade neste mundo, onde só gostaríamos de encontrar seres perfeitos. Desde
que as coisas são assim, nada podemos fazer: é preciso aceita-las como são. É a
nossa própria inferioridade que faz com que os Espíritos imperfeitos pululem à
nossa volta; as coisas mudarão quando nos tornarmos melhores, como já ocorreu
nos mundos mais adiantados. Enquanto esperamos, e considerando que nos achamos ainda
nas regiões mais inferiores do universo moral, somos advertidos: cabe-nos,
então, pôr-nos em guarda e não aceitar, sem controle, tudo quanto nos dizem os
Espíritos. Ao esclarecer-nos, a experiência nos torna circunspectos. Ver e
compreender o mal é uma maneira de nos preservarmos contra ele. Não haveria
perigo muito maior em nos deixarmos iludir quanto à natureza dos Espíritos que
nos rodeiam? O mesmo acontece aqui, onde estamos expostos diariamente à
malevolência e às sugestões pérfidas; são outras tantas provas, às quais a
nossa razão, a nossa consciência e o nosso julgamento nos fornecerão os meios
de resistir. Quanto mais difícil for a luta, maior será o mérito do sucesso: Quem vence sem perigo triunfa sem glória.
Essa história, que infelizmente
não é a única do nosso conhecimento, levanta uma questão muito grave. Não terá
sido, para esse rapaz, um aborrecimento muito grande o haver sido médium? Não
foi essa faculdade a causa da obsessão de que foi vítima? Numa palavra, não
será uma prova do perigo das comunicações espíritas? Nossa resposta é fácil, e
pedimos que nela meditem cuidadosamente.
Não foram os médiuns que criaram
os Espíritos, já que estes sempre existiram e em todas as épocas têm exercido
sua influência, salutar ou perniciosa, sobre os homens. Para isso, pois, não é
necessário ser médium. Para eles a faculdade mediúnica nada mais é do que um
meio de se manifestarem; na ausência de tal faculdade, eles o fazem de mil
outras maneiras. Se esse moço não fosse médium, nem por isso deixaria de sofrer
a influência desse Espírito mau que, sem dúvida, fá-lo-ia cometer extravagâncias
que teriam atribuído a outras causas. Felizmente, para ele, a sua faculdade de
médium permitiu ao Espírito que se comunicasse por palavras, e foi por estas
que o Espírito se traiu; elas permitiram conhecer as raízes de um mal que
poderia ter tido consequências funestas e que, como se viu, nós a destruímos
por meios bem simples, bem racionais e sem exorcismos. A faculdade mediúnica
permitiu ver o inimigo face a face, se assim nos podemos exprimir, e de o
combater com suas próprias armas. Pode-se, pois, dizer com inteira certeza que
foi ela que o salvou; quanto a nós, fomos apenas o médico que, tendo julgado a
causa do mal, aplicamos o remédio. Seria grave erro acreditar que os Espíritos somente
exercem sua influência através de comunicações escritas ou verbais; essa
influência se dá em todos os momentos e a ela, tanto quanto os outros, estão
expostos aqueles que não creem nos Espíritos: estes, talvez, mais expostos
ainda, pelo próprio fato de a ignorarem. A quantos atos, infelizmente, não
somos impelidos, e que teriam sido evitados se tivéssemos tido um meio de nos
esclarecermos! Os mais incrédulos não se dão conta de que dizem uma verdade
quando afirmam, a propósito de um homem que se desencaminha com obstinação: É o
seu mau gênio que o empurra para a perdição.
Regra geral – Quem
quer que obtenha más comunicações espíritas, escritas ou verbais, está
submetido a uma má influência; tal influência se exerce sobre aquele que
escreve, ou não, isto é, seja ou não médium. A escrita proporciona um meio de
nos assegurarmos da natureza dos Espíritos que agem sobre ele e de os combater,
o que se faz ainda com maior sucesso quando conseguimos saber o motivo que os
levam a agir. Se for bastante cego para não o compreender, outros poderão
abrir-lhe os olhos. Aliás, precisa-se ser médium para escrever coisas absurdas?
E quem garante que entre todas essas elucubrações ridículas ou perigosas não
haverá algumas cujos autores são impelidos por Espíritos malévolos? Três quartas
partes de nossas ações más e de nossos maus pensamentos representam o fruto
dessa sugestão oculta.
Perguntarão se teríamos feito
cessar a obsessão, caso o Sr. F... não fosse médium! Certamente; apenas os
meios teriam diferido, conforme as circunstâncias; mas, então, os Espíritos não
o teriam enviado a nós, como o fizeram, e é provável que a causa tivesse sido
levada em consideração, desde que não havia manifestação espírita ostensiva.
Todo homem de boa vontade, e que é simpático aos Espíritos bons, com o auxílio
destes poderá sempre neutralizar a influência dos maus. Dizemos que deve ser simpático
aos Espíritos bons, porque se ele próprio atrai os inferiores, é evidente que
não se caça lobo com lobo.
Em resumo, o perigo não está
propriamente no Espiritismo, visto que ele pode, ao contrário, servir de
controle, preservando-nos daquilo a que somos arrastados, mau grado nosso; o
perigo está na propensão de certos médiuns que, muito levianamente, se julgam
instrumentos exclusivos dos Espíritos superiores, e na espécie de fascinação
que não os deixa compreender as tolices de que são intérpretes. Mesmo aqueles
que não são médiuns podem ser levados a isso. Encerraremos este capítulo com as
seguintes considerações:
1º Todo médium deve desconfiar da compulsão irresistível
que o leva a escrever sem cessar e nos momentos mais inoportunos; deve ser
senhor de si mesmo e escrever somente quando o desejar;
2º Não dominamos os Espíritos superiores, nem mesmo os
que, sem ser superiores, são bons e benévolos, mas podemos dominar e domar os
Espíritos inferiores. Todo aquele que não é mestre de si não o poderá ser dos
Espíritos;
3º O único critério para discernirmos o valor dos Espíritos
é o bom-senso. Qualquer fórmula, dada a esse fim pelos próprios Espíritos, é
absurda e não pode emanar de Espíritos superiores;
4º Como os homens, os Espíritos são julgados pela sua linguagem.
Toda expressão, todo pensamento, toda máxima, toda teoria moral ou científica
que choque o bom-senso ou não corresponda à ideia que fazemos de um Espírito
puro e elevado, procede de um Espírito mais ou menos inferior;
5º Os Espíritos superiores têm sempre a mesma linguagem
com a mesma pessoa e jamais se contradizem;
6º Os Espíritos superiores são sempre bons e
benevolentes; em seu palavreado jamais encontramos acrimônia, arrogância,
aspereza, orgulho, fanfarronice ou a estólida presunção. Falam com simplicidade,
aconselham e se retiram quando não são ouvidos.
7º Não devemos julgar os Espíritos pela forma material,
nem pela correção da linguagem, mas sondar-lhes o íntimo, perscrutar suas
palavras, pesá-las friamente, maduramente e sem prevenção. Qualquer distanciamento
do bom-senso, da razão e da sabedoria não pode deixar dúvidas sobre sua origem,
seja qual for o nome sob o qual se disfarce o Espírito;
8º Os Espíritos inferiores temem os que lhes analisam
as palavras, os que lhes desmascaram as torpezas e não se deixam envolver em
seus sofismas; às vezes ensaiam levantar a cabeça, mas terminam sempre
abandonando a presa quando se sentem mais fracos;
9º Todo aquele que em tudo age visando ao bem, eleva-se
acima das vaidades humanas, expulsa do coração o egoísmo, o orgulho, a inveja,
o ciúme e o ódio, perdoa os inimigos e põe em prática esta máxima do Cristo: “Fazei aos outros o que gostaríeis que
fizessem a vós mesmos”; simpatiza com os Espíritos bons, ao passo que os
maus o temem e dele se afastam.
Seguindo esses preceitos,
estaremos garantidos contra as más comunicações, o domínio dos Espíritos
impuros e, aproveitando tudo quanto nos ensinam os Espíritos verdadeiramente superiores,
contribuiremos, cada um por sua parte, para o progresso moral da Humanidade.
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