sexta-feira, 1 de julho de 2022

O FENÔMENO DA APOROFOBIA E O TRABALHO[1]

 

Anselmo Ferreira Vasconcelos

 

Cresce nas grandes cidades brasileiras o fenômeno da aporofobia, neologismo que designa basicamente rejeição aos pobres. Tal fenômeno, que foi significativamente exacerbado com o aparecimento da Covid-19 pelo menos em nosso país, tomou corpo com o fechamento de empresas e empreendimentos comerciais e, por extensão, vagas de trabalho. Vale lembrar que muitas pessoas ficaram sem renda de uma hora para outra e, assim, se viram obrigadas a morar nas ruas aumentando substancialmente o número dos deserdados sociais.

Dados de 2021 relativos à cidade de São Paulo indicavam existir mais de 31.884 pessoas nessa condição, ou seja, um crescimento de mais de 31% em comparação à 2019. É importante destacar que a epidemia só fez agravar a situação de miséria nesta nação onde o egoísmo, infelizmente, ainda prevalece. Aliás, cumpre ressaltar que o Brasil tem sistematicamente se notabilizado pelos motivos errados, a saber: alta inflação e desemprego, crescente endividamento das famílias, extrema violência urbana, corrupção em larga escala, desmandos de toda sorte e desrespeito às questões ambientais, entre outros descalabros. Em suma, a nação não avança.

Mas, se não bastasse o lamentável quadro de penúria (lembro que 33,1 milhões de pessoas estão passando fome no país), tem-se, ainda, a ojeriza de parte da população aos menos favorecidos (ver, a propósito, o vídeo:

https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/sp2/video/moradores-de-rua-relatam-aporofobia-nas-ruas-da-capital-paulista-10627090.ghtml .

No plano prático, inúmeras ações são tomadas pelos administradores dos edifícios e gestores públicos para dificultar ainda mais a expiação de quem vive nas ruas. Como esclarece a reportagem acima, até mesmo uma marquise de um prédio ou bancos de praças têm sido negados como local de repouso aos nossos irmãos mais desprovidos da sorte. Com efeito, a sociedade mais favorecida em termos econômicos tem conscientemente negado o amparo e a caridade àqueles nossos irmãos duramente atingidos pelos reveses da vida.

O Brasil, que um dia foi celebrado por ter um povo amistoso e solidário, mostra agora uma faceta cruel e egoísta. A propósito, atualmente discute-se tanto a respeito dos programas de transferência de renda (que, na essência, visam a obtenção de votos em tempos de eleição), mas a miséria − que só faz aumentar − continua sendo um tema de somenos importância. Já não se trata mais apenas de lidar com os pobres – cujo contingente avança consideravelmente −, mas de assisti-los dignamente. Como bem pondera o Espírito Lancellin, no livro “Cirurgia Moral” (psicografia de João Nunes Maia):

“Nós todos precisamos uns dos outros na sequência da própria vida. [...] O patrão que se esquece dos seus empregados perde seus tesouros. Uma nação que não cuida dos seus filhos, passa a pedir auxílio às outras que cumprem o dever para com aqueles que trabalham. O nosso próximo é a nossa primeira meta de vida”.

Posto isto, muito mais inteligente seria desenvolver uma sociedade através da qualificação e amparo dos seus cidadãos para que possam algo retribuir ao Estado, do que abandoná-los completamente. No entanto, não tem sido assim, infelizmente, em nossas plagas, esgarçando cada vez mais nossas profundas mazelas coletivas. É verdade que a miséria, de modo geral, tem se espalhado por praticamente todos os quadrantes do planeta. Mas há diferenças consideráveis na maneira como ela é enfocada pelas nações. Ou seja, enquanto algumas atuam de maneira proativa, outras agem a reboque dos acontecimentos, assumindo apenas uma postura reativa. Esse cenário degradante, cabe lembrar, tem muito a ver com a forma negligente que a questão do trabalho tem sido tratada pelas organizações humanas e órgãos mundiais da esfera do trabalho.

A OCDE, por exemplo, estima que 1,1 bilhão de postos de trabalho deverão ser radicalmente afetados na próxima década por causa das mudanças tecnológicas. Em outras palavras, um contingente enorme de pessoas provavelmente perderá o seu ganha-pão, já que menos de 0,5% do PIB global é investido em programas de educação continuada (lifelong learning). Nesse sentido, um relatório sobre o futuro do trabalho recentemente publicado pela revista “Veja” apontava que:

As mudanças tecnológicas, a pandemia de Covid-19 e a transição para as economias limpas e livres de carbono implicam em um grande risco para o meio de vida de muitas pessoas [...]. Com isso, é urgente o investimento em capital humano para criar um mundo mais justo ao garantir que as pessoas tenham a chance de alcançar seu potencial e evoluir profissionalmente.

Portanto, investir no capital humano é não apenas uma necessidade econômica imperiosa, mas igualmente espiritual. Cabe lembrar que a lei do trabalho é uma das leis morais divisadas por Allan Kardec com a ajuda dos seus mentores espirituais. A propósito, na questão 621 de O Livro dos Espíritos somos informados que a “Lei de Deus” está exarada em nossa consciência. Deduz-se, assim, que lá dormita os caminhos (retos e justos) a serem seguidos pela humanidade, assim como em suas deliberações. Desse modo, é inequívoco que sabemos o que deve ou não ser feito, especialmente nesse particular tão crítico à vida humana. Sendo o trabalho também uma questão de natureza transcendente, ele serve a propósitos superiores delineados pelo Criador às suas criaturas (nós). A resposta dada à questão 676 da referida obra não deixa nenhuma dúvida a respeito:

[...] Sem o trabalho, o homem permaneceria sempre na infância, quanto à inteligência. Por isso é que seu alimento, sua segurança e seu bem-estar dependem do seu trabalho e da sua atividade [...] (ênfase minha). 

Pelo exercício do trabalho, enfim, a criatura humana deve:

1.       encontrar significado e realização em suas habilidades inatas,

2.       suprir as suas necessidades básicas, além de prosperar, e

3.       contribuir para algo maior.

Assim sendo, tal lei moral revela enorme importância para o equilíbrio geral haja vista o seu caráter humanitário. Desse modo, cabem aos governos do mundo identificados com os valores cristãos, o dever e a responsabilidade de eliminar tal aberração, que avilta a nossa civilização. Primeiramente, assim creio, provendo condições decentes para que o desventurado se reerga.



[1] O CONSOLADOR -   Ano 16 - N° 778 - 26 de Junho de 2022 - http://www.oconsolador.com.br/ano16/778/ca1.html

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