terça-feira, 12 de julho de 2022

ENSAIO TEÓRICO DAS CURAS INSTANTÂNEAS[1]

 

Allan Kardec

 

De todos os fenômenos espíritas, um dos mais extraordinários é, sem contradita, o das curas instantâneas.

Compreende-se as curas produzidas pela ação continuada de um bom fluido; mas se pergunta como esse fluido pode operar uma transformação súbita no organismo e, sobretudo, por que o indivíduo que possui essa faculdade não tem acesso sobre todos os que são atingidos pela mesma doença, admitindo que haja especialidades. A simpatia dos fluidos é uma razão, sem dúvida, mas que não satisfaz completamente, porque nada tem de positivo, nem de científico. Entretanto, as curas instantâneas são um fato, que não poderia ser posto em dúvida. Se não se tivesse em apoio senão exemplos dos tempos recuados, poder-se-ia, com alguma aparência de fundamento, considerá-los como lendários, ou, pelo menos, como amplificados pela credulidade; mas quando os mesmos fenômenos se reproduzem aos nossos olhos, no século mais céptico, a respeito das coisas sobrenaturais, a negação já não é possível, e se é forçado a neles ver, não um efeito miraculoso, mas um fenômeno que deve ter sua causa nas leis da Natureza, ainda desconhecidas.

A explicação seguinte, deduzida das indicações fornecidas por um médium em estado de sonambulismo espontâneo, está baseada em considerações fisiológicas, que nos parecem projetar luz nova sobre a questão. Ela foi dada por ocasião de uma pessoa atingida por graves enfermidades, e que perguntava se um tratamento fluídico lhe poderia ser salutar.

Por mais racional que nos pareça esta explicação, não a damos como absoluta, mas a título de hipótese e como tema de estudo, até que tenha recebido a dupla sanção da lógica e da opinião geral dos Espíritos, único controle válido das doutrinas espíritas, e que pode assegurar a sua perpetuidade.

Na medicação terapêutica são necessários remédios apropriados ao mal. Não podendo o mesmo remédio ter virtudes contrárias: ser, ao mesmo tempo, estimulante e calmante, muito picante e refrescante, não pode convir a todos os casos. É por isto que não existe um remédio universal.

Dá-se o mesmo com o fluido curador, verdadeiro agente terapêutico, cujas qualidades variam conforme o temperamento físico e moral dos indivíduos que o transmitem. Há fluidos que superexcitam e outros que acalmam, fluidos duros e outros suaves e de muitas outras nuanças. Segundo as suas qualidades, o mesmo fluido, como o mesmo remédio, poderá ser salutar em certos casos, ineficaz e mesmo nocivo em outros; de onde se segue que a cura depende, em princípio, da apropriação das qualidades do fluido à natureza e à causa do mal. Eis o que muitas pessoas não compreendem e porque se admiram que um curador não cure todos os males. Quanto às circunstâncias que influem sobre as qualidades intrínsecas dos fluidos, foram suficientemente desenvolvidas no capítulo XIV de A Gênese, sendo supérfluo aqui as relembrar.

A esta causa inteiramente física das não-curas, deve-se acrescentar uma, toda moral, que o Espiritismo nos dá a conhecer.

É que a maioria das doenças, como todas as misérias humanas, são expiações do presente ou do passado, ou provas para o futuro; são dívidas contraídas, cujas consequências devem ser sofridas, até que tenham sido saldadas. Aquele, pois, que deve suportar sua provação até o fim não pode ser curado. Este princípio é um motivo de resignação para o doente, mas não deve ser uma desculpa para o médico que procurasse, na necessidade da provação, um meio cômodo para abrigar a sua ignorância.

Consideradas unicamente do ponto de vista fisiológico, as doenças têm duas causas, que até hoje não foram distinguidas, e que não podiam ser apreciadas antes dos novos conhecimentos trazidos pelo Espiritismo. É da diferença destas duas causas que ressalta a possibilidade das curas instantâneas, em casos especiais, e não em todos.

Certas moléstias têm sua causa original na própria alteração dos tecidos orgânicos; é a única que a Ciência admite até hoje. E como, para a remediar, não conhece senão as substâncias medicamentosas tangíveis, não compreende a ação de um fluido impalpável, tendo a vontade como propulsor. Entretanto, aí estão os curadores magnéticos para provar que não é uma ilusão.

Na cura das doenças desta natureza, pelo influxo fluídico, há substituição das moléculas orgânicas mórbidas por moléculas sadias. É a história de uma velha casa, cujas pedras carcomidas são substituídas por boas pedras; tem-se sempre a mesma casa, mas restaurada e consolidada. A torre Saint-Jacques e Notre-Dame de Paris acabam de sofrer um tratamento deste gênero.

A substância fluídica produz um efeito análogo ao da substância medicamentosa, com esta diferença: sendo maior a sua penetração, em razão da tenuidade de seus princípios constituintes, age mais diretamente sobre as moléculas primeiras do organismo do que o podem fazer as moléculas mais grosseiras das substâncias materiais. Em segundo lugar, sua eficácia é mais geral, sem ser universal, porque suas qualidades são modificáveis pelo pensamento, enquanto as da matéria são fixas e invariáveis e não podem aplicar-se senão em determinados casos.

Tal é, em tese geral, o princípio sobre o qual repousam os tratamentos magnéticos. Acrescentemos sumariamente, e de memória, já que não podemos aprofundar aqui o assunto, que a ação dos remédios homeopáticos em doses infinitesimais, é baseada no mesmo princípio; a substância medicamentosa, levada pela divisão ao estado atômico, até certo ponto adquire as propriedades dos fluidos, menos, todavia, o princípio anímico, que existe nos fluidos animalizados e lhes dá qualidades especiais.

Em resumo, trata-se de reparar uma desordem orgânica pela introdução, na economia, de materiais sãos, substituindo materiais deteriorados. Esses materiais sãos podem ser fornecidos pelos medicamentos ordinários in natura; por esses mesmos medicamentos em estado de divisão homeopática; enfim, pelo fluido magnético, que não é senão matéria espiritualizada. São três modos de reparação, ou melhor, de introdução e de assimilação dos elementos reparadores; todos os três estão igualmente na Natureza, e têm sua utilidade, conforme os casos especiais, o que explica por que um tem êxito onde outro fracassa, porquanto seria parcialidade negar os serviços prestados pela medicina ordinária. Em nossa opinião, são três ramos da arte de curar, destinados a se suplementarem e a se completarem, conforme as circunstâncias, mas dos quais nenhum tem lastro para se julgar a panaceia universal do gênero humano.

Cada um desses meios poderá, pois, ser eficaz, se empregado a propósito e adequado à especialidade do mal; mas, seja qual for, compreende-se que a substituição molecular, necessária ao restabelecimento do equilíbrio, não pode operar-se senão gradualmente, e não por encanto e por um golpe de batuta; se possível, a cura só pode ser o resultado de uma ação contínua e perseverante, mais ou menos longa, conforme a gravidade dos casos.

Entretanto, as curas instantâneas são um fato, e como não podem ser mais miraculosas que as outras, é preciso que se realizem em circunstâncias especiais. O que o prova é que não se dão indistintamente para todas as doenças, nem para todos os indivíduos. É, pois, um fenômeno natural, cuja lei deve ser buscada.

Ora, eis a explicação que se lhe dá; para a compreender, era preciso ter o ponto de comparação que acabamos de estabelecer.

Certas afecções, mesmo muito graves e passadas ao estado crônico, não têm como causa primeira a alteração das moléculas orgânicas, mas a presença de um mau fluido que, a bem dizer, as desagrega, perturbando a sua economia.

Sucede aqui como num relógio, em que todas as peças estão em bom estado, mas cujo movimento é parado ou desregulado pela poeira; nenhuma peça deve ser substituída e, contudo, ele não funciona; para restabelecer a regularidade do movimento basta expurgar o relógio do obstáculo que o impedia de funcionar.

Tal é o caso de grande número de doenças, cuja origem é devida aos fluidos perniciosos de que é penetrado o organismo.

Para obter a cura, não são moléculas deterioradas que devem ser substituídas, mas um corpo estranho que se deve expulsar; desaparecida a causa do mal, o equilíbrio se restabelece e as funções retomam seu curso.

Concebe-se que em semelhantes casos os medicamentos terapêuticos, destinados, por sua natureza, a agir sobre a matéria, não tenham eficácia sobre um agente fluídico; por isso a medicina ordinária é impotente em todas as moléstias causadas por fluidos viciados, e elas são numerosas. À matéria pode-se opor a matéria, mas a um fluido mau é preciso opor um fluido melhor e mais poderoso. A medicina terapêutica naturalmente falha contra os agentes fluídicos; pela mesma razão, a medicina fluídica falha onde é preciso opor a matéria à matéria; a medicina homeopática nos parece ser o intermediário, o traço de união entre esses dois extremos, e deve particularmente triunfar nas afecções que poderiam chamar-se mistas.

Seja qual for a pretensão de cada um destes sistemas à supremacia, o que há de positivo é que, cada um de seu lado, obtém incontestáveis sucessos, mas que, até o presente, nenhum justificou estar na posse exclusiva da verdade; donde se deve concluir que todos têm sua utilidade, e que o essencial é os aplicar adequadamente.

Não temos que nos ocupar aqui dos casos em que o tratamento fluídico é aplicável, mas da causa pela qual esse tratamento pode, por vezes, ser instantâneo, ao passo que em outros casos exige uma ação continuada.

Esta diferença se prende à própria natureza e à causa primeira do mal. Duas afecções que, aparentemente, apresentam sintomas idênticos, podem ter causas diferentes; uma pode ser determinada pela alteração das moléculas orgânicas e, neste caso, é preciso reparar, substituir, como me disseram, as moléculas deterioradas por moléculas sadias, operação que só pode ser feita gradualmente; a outra, por infiltração, nos órgãos saudáveis, de um fluido mau, que lhe perturba as funções. Neste caso, não se trata de reparar, mas de expulsar. Esses dois casos requerem, no fluido curador, qualidades diferentes; no primeiro, é preciso um fluido mais suave que violento, sobretudo rico em princípios reparadores; no segundo, um fluido enérgico, mais adequado à expulsão do que à reparação; segundo a qualidade desse fluido, a expulsão pode ser rápida e como por efeito de uma descarga elétrica. O doente, subitamente livre da causa estranha que o fazia sofrer, sente-se aliviado imediatamente, como acontece na extirpação de um dente estragado. Não estando mais obliterado, o órgão volta ao seu estado normal e retoma suas funções.

Assim podem explicar-se as curas instantâneas, que não são, na realidade, senão uma variedade da ação magnética. Como se vê, elas repousam sobre um princípio essencialmente fisiológico e nada têm de mais miraculoso que os outros fenômenos espíritas.

Compreende-se desde logo por que essas espécies de cura não são aplicáveis a todas as doenças. Sua obtenção se deve, ao mesmo tempo, à causa primeira do mal, que não é a mesma em todos os indivíduos, e às qualidades especiais do fluido que se lhe opõe.

Disso resulta que uma pessoa que produz efeitos rápidos, nem sempre é adequada para um tratamento magnético regular, e que excelentes magnetizadores são impróprios para curas instantâneas.

Esta teoria pode assim resumir-se:

Quando o mal exige a reparação de órgãos alterados, necessariamente a cura é lenta e requer uma ação contínua e um fluido de qualidade especial; quando se trata da expulsão de um mau fluido, ela pode ser rápida e, mesmo, instantânea.

Para simplificar a questão, não consideramos senão os dois pontos extremos; mas entre os dois há matizes infinitos, isto é, uma multidão de casos em que as duas causas coexistem em diferentes graus, e com mais ou menos preponderância de cada uma; em que, por consequência, é necessário, ao mesmo tempo, expulsar e reparar. Conforme aquela das duas causas que predomina, a cura é mais ou menos lenta; se for a do mau fluido, após a expulsão é preciso a reparação; se for a desordem orgânica, após a reparação é necessária a expulsão. A cura só é completa após a destruição das causas. É o caso mais comum. Eis por que os tratamentos terapêuticos muitas vezes precisam ser complementados por um tratamento fluídico e reciprocamente; eis, também, por que as curas instantâneas, que ocorrem nos casos em que a predominância fluídica é, por assim dizer, exclusiva, jamais poderão tornar-se um meio curativo universal; conseguintemente, elas não são chamadas a suplantar nem a Medicina, nem a Homeopatia, nem o magnetismo ordinário.

A cura instantânea, radical e definitiva, pode ser considerada como um caso excepcional, considerando-se que é raro:

1.       que a expulsão do mau fluido seja completa no primeiro golpe;

2.       que a causa fluídica não seja acompanhada de alguma alteração orgânica, o que obriga, num e noutro caso, a ele voltar várias vezes.

Enfim, não podendo os maus fluidos emanar senão de Espíritos maus, sua introdução na economia se liga muitas vezes à obsessão. Daí resulta que, para obter a cura, é preciso tratar, ao mesmo tempo, o doente e o Espírito obsessor.

Estas observações mostram quantas coisas devem ser levadas em conta no tratamento das doenças, e quanto ainda resta aprender a tal respeito. Além disso, vêm confirmar um fato capital, que ressalta da obra A Gênese – a aliança do Espiritismo e da Ciência. O Espiritismo marcha sobre o mesmo terreno que a Ciência, até os limites da matéria tangível; mas, enquanto a Ciência se detém nesse ponto, o Espiritismo continua seu caminho e prossegue suas investigações nos fenômenos da Natureza, com o auxílio dos elementos que colhe no mundo extramaterial; apenas aí está a solução das dificuldades contra as quais se choca a Ciência.

 

Nota – A pessoa cujo pedido motivou esta explicação está no caso das doenças de causa complexa. Seu organismo está profundamente alterado e, ao mesmo tempo, saturado dos fluidos mais perniciosos, que a tornam incurável apenas pela terapêutica ordinária. Uma magnetização violenta e muito enérgica não produziria mais que uma superexcitação momentânea, logo seguida de maior prostração, ao ativar o trabalho da decomposição.

Ser-lhe-ia necessária uma magnetização suave, continuada por muito tempo, um fluido reparador penetrante, e não um fluido que abala, mas que nada repara. Consequentemente, ela é inacessível à cura instantânea.



[1] Revista Espírita – Março/1868 – Allan Kardec

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