Allan Kardec
(Paris, 20 de
março de 1867 – Grupo do Sr. Lampérière)
Assim como o corpo tem seus
órgãos de locomoção, de nutrição, de respiração etc., também o Espírito tem
faculdades variadas, que se relacionam respectivamente com cada situação
particular de seu ser. Se o corpo tem sua infância, se os membros desse corpo
são fracos e débeis, incapazes de mover fardos que mais tarde erguerão sem
esforço, o Espírito possui, antes de mais, faculdades que devem, como tudo o
que existe, passar da infância à juventude e da juventude à idade madura.
Pediríeis à criança no berço que agisse com a rapidez, a segurança e a
habilidade do homem feito? Não; seria loucura, não é? Não se deve exigir de
cada um senão o que entra no quadro de suas forças e de seus conhecimentos.
Pedir àquele que jamais tocou num livro de Matemática ou de Física, que
raciocine sobre um ramo qualquer dos conhecimentos que dependem dessas
ciências, seria tão pouco lógico quanto pretender exigir uma descrição exata de
um país longínquo a um parisiense que jamais deixou os limites de sua terra
natal e, por vezes de seu bairro!
É, pois, necessário, para julgar
uma coisa sensatamente, ter dessa coisa um conhecimento tão completo quanto
possível. Seria absurdo submeter a um exame de leitura corrente aquele que
apenas começa a soletrar; e, contudo! Contudo o homem, esse humanimal
dotado de raciocínio, esse poderoso da Criação, para quem tudo é obstáculo no
livro dos mundos, essa criança terrível que apenas balbucia as primeiras
palavras da verdadeira ciência, esse mistificado da aparência, pretende ler,
sem hesitação, as mais indecifráveis páginas do manual que a Natureza
diariamente apresenta aos seus olhos. O desconhecido nasce sob os seus passos;
esbarra aos seus lados; à frente, atrás, em toda parte, em tudo, não são senão
problemas sem solução, ou cujas soluções conhecidas são ilógicas e irracionais,
e a criança grande desvia os olhos do livro, dizendo: Eu te conheço;
para um outro, ignorante das coisas, liga-se às causas dessas coisas e, sem
bússola, sem compasso, embarca no mar tempestuoso dos sistemas preconcebidos,
que o conduz fatalmente ao naufrágio, cujo resultado são a dúvida e a
incredulidade! O fanatismo, filho do erro, o tem sob o seu cetro; porque,
sabei-o bem, o fanático não é aquele que crê sem provas e que, por uma fé
incompreendida, daria a sua vida. Há fanáticos da incredulidade, como há
fanáticos da fé!
O caminho da verdade é estreito
e é necessário sondar o terreno antes de avançar, para não se precipitar nos
abismos que o ladeiam, à direita e à esquerda.
Apressa-te devagar, diz a
sabedoria das nações; e, como sempre, quando está de acordo com o bom-senso, a
sabedoria das nações tem razão.
– Não deixes inimigo atrás de
ti, e não avances senão quando estiveres seguro de não seres obrigado a
retroceder.
– Deus é paciente porque é
eterno; o homem, que tem a eternidade diante de si, também pode ser paciente.
Que julgue pelas aparências, que
se engane e reconheça seu erro no futuro, é lógico; mas que pretenda não poder
enganar-se, que marque um limite qualquer ao entendimento humano, a criança
reaparece sobre a água com seus caprichos e suas cóleras impotentes! O potro
ainda não fez diabruras; irrita-se, empina-se! O sangue ferve em suas veias! Deixai-o fazer: a idade saberá acalmar o seu
ardor sem o destruir e disso ele tirará proveito, medindo mais sabiamente os
seus gastos!
Ao nascer, o homem viu uma
planície formada de terra e de rocha estender-se sem limite sob os seus passos;
uma planície azul, salpicada de fogos cintilantes estendia-se sobre a sua
cabeça e parecia mover-se regularmente; daí concluiu que a Terra era um vasto
planalto acidentado, encimado por uma cúpula animada de um movimento constante.
Referindo tudo a si, fez-se o centro de um sistema por ele criado, e a Terra
imutável contemplou o Sol girando na planície celeste. Hoje o Sol não gira mais
e a Terra se pôs em movimento; o primeiro ponto talvez não fosse difícil de
elucidar segundo a Bíblia, porque se Josué um dia mandou o Sol parar, em
parte alguma se vê que lhe tenha mandado retomar o seu curso.
Hoje a inteligência humana dá um
desmentido aos trabalhos das inteligências de uma época mais recuada e, assim,
de idade em idade até a origem; e, contudo, malgrado as lições do passado,
embora se aperceba, pelos precedentes, que a utopia de ontem muitas vezes é a
realidade de amanhã, o homem se obstina a dizer:
Não! não irás mais longe! Quem poderia fazer mais que nós?
A inteligência está no topo da escada; depois de nós não se pode senão descer!
E, no entanto, os que dizem isto
são as testemunhas, os propagadores e os promotores das maravilhas realizadas
pela ciência atual. Fizeram numerosas descobertas, que modificaram
singularmente as teorias de seus predecessores; mas, que importa! O eu neles fala mais alto que a razão.
Gozando de uma realeza de um dia, não podem admitir que amanhã sejam submetidos
a um poder que o futuro mantém ao abrigo de seus olhares.
Negam o Espírito, como negavam o
movimento da Terra! Lamentemo-los e consolemo-nos de sua cegueira, dizendo-nos
que o que é não pode ficar eternamente oculto; a luz não pode tornar-se sombra;
a verdade não pode tornar-se erro; as trevas se desfazem diante da aurora.
Ó Galileu! Onde quer que estejas,
tu te alegras porque ela se move... e podemos alegrar-nos, nós também,
porque nossa Terra, nosso mundo, a inteligência, o Espírito também tem seu movimento
incompreendido, desconhecido, mas que logo se tornará tão evidente quanto os
axiomas reconhecidos pela Ciência.
François Arago
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