Foi na madrugada do dia 12 de
abril de 1827, na pequena cidade de Campanha, no sul do Estado de Minas Gerais,
na fazenda da senhora Mariana de Santa Bárbara Ferreira, que a escrava Lourença
Justiniana de Jesus dava à luz um menino, que foi batizado no dia 20 do mesmo
mês com o nome de Francisco de Paula Vítor. Como no dia 12 de abril o
Martirológio[2]
indicava, entre outros, o nome de São Vítor, acredita-se que daí tenha-se
originado o seu sobrenome.
Na fazenda de D. Mariana, sua
madrinha e educadora, Francisco cresceu, sempre admirado e amado por todos. Era
um garoto robusto, cheio de saúde e obediente. O seu caráter piedoso fazia-o
espelho para os demais. Tendo sido extremamente pobre, nunca abandonou a modéstia
e a disciplina.
Não se sabe se Francisco Vítor
foi criado como cativo, já que a Lei Rio Branco, que conferia liberdade aos
filhos de escravos, seria homologada somente no ano de 1871. Mas, segundo a
opinião de alguns dos seus biógrafos, acredita-se que não, pelo fato de a
proprietária da fazenda ser abolicionista.
Ainda jovem, Francisco de Paula
Vítor aprendeu o ofício de alfaiate. Entretanto, aos 21 anos de idade, o
coração do moço Vítor sentiu um outro desejo: o de tornar-se padre. Assim,
aproveitando a visita a sua cidade de D. Antônio Ferreira Viçoso, bispo de
Mariana, o jovem alfaiate foi ter com ele, confessando-lhe o desejo e a vocação
religiosa. Dom Viçoso, certificado das boas intenções daquele jovem, nada mais
fez senão animá-lo no digno propósito de tornar-se um sacerdote. Logo depois
aconselhou-o a estudar latim e música. Ajudado por sua madrinha e
"senhora", Vítor dedicou-se com muita perseverança ao estudo do latim
e da música, no início com dificuldade, mas em poucos meses de dedicação, já
dominava ambas as coisas.
Dessa forma, em 5 de junho de
1849, apareceu no Seminário de Mariana um negrinho corpulento, de cara chata,
nariz esparramado e muito beiçudo.
Vestido pobremente, supunham os
seminaristas que aquele moleque feio vinha para ser ajudante na cozinha ou para
outro qualquer serviço subalterno.
Ao saberem os colegas
seminaristas que o negro era como eles, um estudante e candidato ao sacerdócio,
ficaram atônitos. A sua admissão no Seminário causou desagrado aos estudantes
orgulhosos, que se sentiram deprimidos por terem que conviver ao lado de um
negro. E comentavam uns com os outros: Como é possível ser um padre, um
ministro de Deus, um negro tão feio, um tipo tão hediondo? Foi necessária a
intervenção do bispo de Mariana, D. Viçoso, para acalmar os ânimos dos
exaltados seminaristas, dizendo a eles que aquele negro possuía alma alvíssima.
Uma vez que o bispo o admitira
no seminário, no meio deles, os brancos, e não na cozinha ou na cocheira, como
queriam, começaram a menosprezá-lo, a reduzi-lo a mero criado. E incrementaram
as humilhações:
-Negro, escove as minhas
botas.
-Beiçudo, limpe a minha roupa.
-Macado, arranje essa cama.
O humilde estudante negro, sem
nenhuma relutância, dava execução às recomendações recebidas. Essa docilidade
lhe valeu, logo mais, o afeto e o carinho de todos os seminaristas, que
passaram a considerá-lo, dedicando-lhe respeito e atenção. Ninguém mais se
envergonhava da sua companhia, e todos com ele ombreavam, fraternalmente.
Dessa maneira, com o coração
embriagado de júbilo, Francisco de Paula Vítor foi ordenado por D. Viçoso, em
14 de junho de 1851, aos 24 anos.
Permaneceu, após ordenado, quase
um ano em Mariana, sendo, então, nomeado vigário da cidade de Três Pontas,
também Minas Gerais, em 18 de junho de 1852.
Assumindo a direção espiritual
dos trespontanos, o novo sacerdote sentiu logo que não lhe bastava a prática
religiosa, era necessário dar instrução ao povo. E, sem auxílio algum dos
poderes públicos, Padre Vítor, como passou a ser conhecido, fundou o Colégio
Sagrada Família, que, em pouco tempo, adquiriu conceito igual ao do Colégio de
Caraça, um dos mais importantes colégios do Império e o centro mais famoso na
área dos estudos humanísticos, em Minas Gerais, fundado em 1820 pelos padres
portugueses da Congregação da Missão, de São Vicente de Paulo. Nesse
educandário, os alunos encontraram não só a instrução, mas o vestuário também,
ao mesmo tempo que as roupas de cama e de mesa e, sobretudo, o exemplo prático
das mais edificantes e sólidas virtudes.
Padre Vítor foi diretor e
professor do Colégio Sagrada Família por mais de 30 anos, contando sempre com a
colaboração gratuita de diversos professores daquela região.
Foram numerosos os estudantes,
uns internos e outros em regime semiaberto, admitidos no Colégio,
gratuitamente. Afirma um historiador campanhense que, no ano de 1874, nada
menos que 186 alunos estavam ali recebendo educação e formação. Padre Vítor fez
de muitos filhos de famílias pobres, homens de cultura que passaram a
sobreviver da inteligência e da educação que ali receberam.
Durante 53 anos de ininterrupta
atividade, Padre Vítor foi o pároco da Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, da
cidade de Três Pontas, nunca deixando os fiéis sem a celebração da missa
dominical.
A fama de "cidade piedosa e
acolhedora" de que goza Três Pontas, até hoje, é, em grande parte, devida
a esse generoso protetor e benfeitor.
A modéstia do seu trato, a
bondade de seu olhar, a humildade de sua palavra, toda sua vida, enfim, tão
simples e pura, demonstravam a nobreza do seu caráter. Para ele todas as
felicidades do mundo se concentravam em servir a Deus, a vivenciar o Evangelho
de Jesus, amando o semelhante despretensiosamente.
A sua residência era um
verdadeiro "hotel", principalmente dos pobres, que ali dormiam e se
refaziam, restabelecendo suas condições físicas e espirituais. Muitos leprosos
foram por ali hospedados e tratados com dignidade e amor.
Narra o sr. Francisco Antônio
Rabelo de Mesquita, então acólito de Padre Vítor, que certa manhã o vigário
saía para a igreja, quando a criada lhe comunicou que não havia nem café nem
açúcar. Ele não teve dinheiro para deixar-lhe, a fim de que comprasse o que
faltava.
A missa foi celebrada em
sufrágio da alma de pessoa falecida em outra localidade. Quem a solicitou deu a
espórtula num envelope fechado.
Na rua, voltando para a casa,
Padre Vítor foi abordado por uma mulher que lhe implorava certa quantia para
adquirir remédio para o filho doente, pois o farmacêutico não lhe permitia o
pagamento posterior da medicação. Na mesma hora o vigário tirou do bolso o
envelope fechado e o entregou à mulher. Minutos depois, ela o procura em sua
residência para devolver-lhe o envelope, já que nele a quantia existente era
muito acima do valor do remédio.
"São seus, já lhes
dei", replicou o nobre sacerdote.
Vivia em extrema pobreza. Tudo o
que ganhava dava-o aos pobres. Certa vez, uma senhora que se chamava Joana, sua
vizinha, fez um prato de abóbora d’água e mandou uma pessoa levar para a irmã
dela. Entretanto, o emissário não entendeu bem e levou o alimento para o Padre
Vítor. Ao saber do sucedido, D. Joana foi pedir-lhe desculpas por ter ele
recebido um prato tão simples, e ele agradeceu dizendo que foi muito bom e
providencial, porque naquele dia ele estava com fome e não tinha nada para
comer. E, tendo comido aquele prato de abóbora ficou muito feliz.
Em Três Pontas existia ainda o
sentimento de casta, porque os trespontanos, em sua maioria, eram portugueses,
bem como seus descendentes imediatos. Eles não gostavam de se misturar com gente
de cor. Daí o descontentamento geral, pelo gesto de D. Viçoso, que era
português, enviando à cidade um padre negro.
No entanto, a dedicação
sacerdotal, o critério e sobretudo a atuação como professor, e o amparo aos
pobres, criaram uma aura de consideração ao redor do padre preto que, tempo
depois, gozava de alta estima e de toda a população de Três Pontas.
A prova de grandessíssimo apreço
teve-a o Padre Vítor, quando pretendeu transferir-se para Boa Esperança, cidade
também mineira. Na época o seu Colégio reunia mais de duzentos alunos. Todavia,
após vários anos de esforço, o padre não conseguira nenhuma economia, pelo
contrário, achava-se endividado. Desejava, por isso, iniciar nova vida com o
mesmo mister em Boa Esperança, a fim de poder pagar as dívidas contraídas.
Ao tomarem conhecimento de sua
definitiva deliberação nesse sentido, algumas autoridades locais, acompanhadas
pelo povo, em caráter de manifestação, dirigiram-se à residência do Padre Vítor
e pediram-lhe que mudasse de ideia e continuasse em Três Pontas.
Quanto terminaram o discurso
para tal solicitação, duas jovens entregaram-lhe uma salva de flores. Ao
receber a bandeja, notou Padre Vítor que havia sob as flores alguns documentos.
À medida que os lia, seus olhos iam ficando umedecidos, até que, em dado
momento, sem conseguir conter a emoção, chorou copiosamente. Estava ali, em
suas mãos, a quitação de todas as suas dívidas.
Era tão elevada a sua condição
moral, que numa tarde chegaram quatro homens à sua residência, custodiando um
possesso que não conseguiam controlar. Sentaram o homem em um banco no salão e
apressaram-se em chamar o Padre Vítor. Quando o sacerdote se aproximou do
subjugado, o espírito que o "possuía" enfrentou-o gritando: saia
daqui, seu negro beiçudo. Os quatro homens não conseguiam deter aquela
criatura obsedada, que por mais de uma vez tentara galgar a parede.
Padre Vítor, aproximando-se
dele, pousou-lhe a mão sobre a cabeça e orou. O doente foi-se acalmando,
consideravelmente, como se estivesse desalimentado. Foi colocado, em seguida,
sobre um leito, onde dormiu tranquilamente durante toda a noite, mostrando-se
perfeitamente equilibrado, no dia seguinte.
Disse Jesus:
Curai os enfermos; expulsai os demônios; dai de graça o
que de graça recebestes; amai o vosso próximo como a vós mesmos; não possuais
nem ouro, nem prata, nem cobre em vossos cintos, nem alforje para o caminho,
nem duas túnicas, nem alparcas, nem bordão, porque digno é o operário do seu
alimento.
Assim procurou fazer Francisco
de Paula Vítor, transformando-se no esteio dos desvalidos, no arrimo dos
esfaimados, no consolo dos aflitos e na esperança dos atribulados, vivendo para
servir, sem nenhuma preocupação em ser servido.
Abraçou a bandeira de uma ideal
para vivê-lo. Foi um homem cônscio de suas responsabilidades. Preparou-se, não
para mandar que os outros fizessem, mas para fazer de sua vida um espelho, a
fim de que pudesse refletir o seu ideal.
Durante 78 anos em que ocupou o
invólucro carnal, procurou ser sempre fiel a Jesus. Nunca a sua porta fechou-se
para as necessidades alheias.
Era desejo de D. Pedro II
extinguir, paulatinamente, a escravidão no Brasil, o que já vinha efetuando.
De fato, a Lei Matoso Câmara
vedou o tráfico africano. A partir de 1850 não entraram mais no país escravos
oriundos da África.
A Lei Rio Branco, também chamada
a Lei do Ventre Livre, libertou os nascituros. A partir de 1871, ninguém mais
nascia escravo no Brasil. Dessa forma, a extinção se completaria,
automaticamente, pelo desaparecimento dos escravos existentes.
Insatisfeito com isso, o
magnânimo Imperador aplicou meios de emancipação, sem prejuízo de proprietários
de escravos. Assim, permitiu D. Pedro, por lei, a formação, em cada comarca, de
uma Junta Abolicionista que se encarregava de promover a aquisição da liberdade
pelos cativos, mediante a justa indenização aos senhores.
As Juntas, constituídas de
filantropos, recebiam auxílio do governo, sendo que, algumas vezes, os próprios
negros é que pagavam as suas cartas de alforria.
Em Três Pontas, a Junta
Abolicionista se instalou sob a presidência do sr. Custódio Vieira de Brito,
pertencente a distinta família local e diligente advogado licenciado. Essa
Junta requereu a inscrição de dois escravos pertencentes a abastados
fazendeiros. Para isso, os escravos deixaram as fazendas e se refugiaram na
casa do presidente da Junta, onde se fizeram serviçais.
Os fazendeiros, pessoas de muita
consideração, mas de pouca compreensão, viram no procedimento do advogado, mais
do que um abuso, uma insolência.
Combinaram, então, reagir. Arquitetaram
diabólico plano, congregando outros vizinhos fazendeiros, parentes e amigos, e
resolveram que invadiriam a cidade, massacrariam os membros da Junta e, por
fim, incendiariam a casa do seu presidente. Para isso providenciaram duas
caixas de querosene.
Um servo de uma das fazendas
acompanhou todo o movimento. Na véspera do dia combinado para o ataque, esperou
que os senhores repousassem e partiu para a cidade, a fim de avisar o sr.
Custódio de Brito da trama da qual ele e seus companheiros da Junta seriam
vítimas.
A notícia correu de boca em
boca, reinando, então, enorme ansiedade na população com a iminência da
invasão. Tudo isso, porém, chegou aos ouvidos do Padre Vítor.
Às 14h do dia seguinte, chegava
a informação de que o bando se aproximava, trazendo por um muar duas caixas de
querosene para o incêndio da casa.
Padre Vítor dirigiu-se para a
entrada da cidade e postou-se à espera. No momento em que a turba se aproximou,
ele empunhou o crucifixo e bradou: Entrem! Entrem!... ,mas passem primeiro
por cima do meu cadáver.
O bando estanca ante a espessa
muralha moral que, inopinadamente, se erguia para poupar a cidade de uma cena
de vandalismo.
O imprevisto abateu o ânimo
daqueles homens que, imediatamente, silenciaram, pondo fim à algazarra que
faziam. Os líderes da turba consultaram-se e, segundos depois, regressavam.
Em 1903, já muito idoso, Padre
Vítor foi à cidade de Poços de Caldas, em busca de melhoria para a sua saúde
bastante precária. Cerca de dois anos após o seu regresso desta cidade,
agravaram-se os seus sofrimentos, vindo a desencarnar às 22:00 horas do dia 23
de setembro de 1905, e a inumação do seu corpo foi feita às 10:00 horas do dia
25, para que houvesse tempo para que todo o seu rebanho pudesse ver-lhe o corpo
pela vez derradeira, sendo que os funerais contaram com a presença de mais de
três mil pessoas.
A esse Espírito de Escol que, na
continuidade dos serviços de Jesus Cristo, ampara-nos e abençoa-nos com a sua
providencial assistência, nossa empobrecida homenagem, nossa admiração,
respeito e muito carinho.
[1] http://www.autoresespiritasclassicos.com/Biografias%20Espiritas/Letras/Biografias%20Esp%C3%ADritas%20Gr%C3%A1tis-----Letra%20F.htm
[2] Catálogo
dos Mártires que foram santificados pela Igreja.
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