segunda-feira, 2 de maio de 2022

FRANCISCO DE PAULA VÍTOR[1]

 

 

Foi na madrugada do dia 12 de abril de 1827, na pequena cidade de Campanha, no sul do Estado de Minas Gerais, na fazenda da senhora Mariana de Santa Bárbara Ferreira, que a escrava Lourença Justiniana de Jesus dava à luz um menino, que foi batizado no dia 20 do mesmo mês com o nome de Francisco de Paula Vítor. Como no dia 12 de abril o Martirológio[2] indicava, entre outros, o nome de São Vítor, acredita-se que daí tenha-se originado o seu sobrenome.

Na fazenda de D. Mariana, sua madrinha e educadora, Francisco cresceu, sempre admirado e amado por todos. Era um garoto robusto, cheio de saúde e obediente. O seu caráter piedoso fazia-o espelho para os demais. Tendo sido extremamente pobre, nunca abandonou a modéstia e a disciplina.

Não se sabe se Francisco Vítor foi criado como cativo, já que a Lei Rio Branco, que conferia liberdade aos filhos de escravos, seria homologada somente no ano de 1871. Mas, segundo a opinião de alguns dos seus biógrafos, acredita-se que não, pelo fato de a proprietária da fazenda ser abolicionista.

Ainda jovem, Francisco de Paula Vítor aprendeu o ofício de alfaiate. Entretanto, aos 21 anos de idade, o coração do moço Vítor sentiu um outro desejo: o de tornar-se padre. Assim, aproveitando a visita a sua cidade de D. Antônio Ferreira Viçoso, bispo de Mariana, o jovem alfaiate foi ter com ele, confessando-lhe o desejo e a vocação religiosa. Dom Viçoso, certificado das boas intenções daquele jovem, nada mais fez senão animá-lo no digno propósito de tornar-se um sacerdote. Logo depois aconselhou-o a estudar latim e música. Ajudado por sua madrinha e "senhora", Vítor dedicou-se com muita perseverança ao estudo do latim e da música, no início com dificuldade, mas em poucos meses de dedicação, já dominava ambas as coisas.

Dessa forma, em 5 de junho de 1849, apareceu no Seminário de Mariana um negrinho corpulento, de cara chata, nariz esparramado e muito beiçudo.

Vestido pobremente, supunham os seminaristas que aquele moleque feio vinha para ser ajudante na cozinha ou para outro qualquer serviço subalterno.

Ao saberem os colegas seminaristas que o negro era como eles, um estudante e candidato ao sacerdócio, ficaram atônitos. A sua admissão no Seminário causou desagrado aos estudantes orgulhosos, que se sentiram deprimidos por terem que conviver ao lado de um negro. E comentavam uns com os outros: Como é possível ser um padre, um ministro de Deus, um negro tão feio, um tipo tão hediondo? Foi necessária a intervenção do bispo de Mariana, D. Viçoso, para acalmar os ânimos dos exaltados seminaristas, dizendo a eles que aquele negro possuía alma alvíssima.

Uma vez que o bispo o admitira no seminário, no meio deles, os brancos, e não na cozinha ou na cocheira, como queriam, começaram a menosprezá-lo, a reduzi-lo a mero criado. E incrementaram as humilhações:

-Negro, escove as minhas botas.

-Beiçudo, limpe a minha roupa.

-Macado, arranje essa cama.

O humilde estudante negro, sem nenhuma relutância, dava execução às recomendações recebidas. Essa docilidade lhe valeu, logo mais, o afeto e o carinho de todos os seminaristas, que passaram a considerá-lo, dedicando-lhe respeito e atenção. Ninguém mais se envergonhava da sua companhia, e todos com ele ombreavam, fraternalmente.

Dessa maneira, com o coração embriagado de júbilo, Francisco de Paula Vítor foi ordenado por D. Viçoso, em 14 de junho de 1851, aos 24 anos.

Permaneceu, após ordenado, quase um ano em Mariana, sendo, então, nomeado vigário da cidade de Três Pontas, também Minas Gerais, em 18 de junho de 1852.

Assumindo a direção espiritual dos trespontanos, o novo sacerdote sentiu logo que não lhe bastava a prática religiosa, era necessário dar instrução ao povo. E, sem auxílio algum dos poderes públicos, Padre Vítor, como passou a ser conhecido, fundou o Colégio Sagrada Família, que, em pouco tempo, adquiriu conceito igual ao do Colégio de Caraça, um dos mais importantes colégios do Império e o centro mais famoso na área dos estudos humanísticos, em Minas Gerais, fundado em 1820 pelos padres portugueses da Congregação da Missão, de São Vicente de Paulo. Nesse educandário, os alunos encontraram não só a instrução, mas o vestuário também, ao mesmo tempo que as roupas de cama e de mesa e, sobretudo, o exemplo prático das mais edificantes e sólidas virtudes.

Padre Vítor foi diretor e professor do Colégio Sagrada Família por mais de 30 anos, contando sempre com a colaboração gratuita de diversos professores daquela região.

Foram numerosos os estudantes, uns internos e outros em regime semiaberto, admitidos no Colégio, gratuitamente. Afirma um historiador campanhense que, no ano de 1874, nada menos que 186 alunos estavam ali recebendo educação e formação. Padre Vítor fez de muitos filhos de famílias pobres, homens de cultura que passaram a sobreviver da inteligência e da educação que ali receberam.

Durante 53 anos de ininterrupta atividade, Padre Vítor foi o pároco da Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, da cidade de Três Pontas, nunca deixando os fiéis sem a celebração da missa dominical.

A fama de "cidade piedosa e acolhedora" de que goza Três Pontas, até hoje, é, em grande parte, devida a esse generoso protetor e benfeitor.

A modéstia do seu trato, a bondade de seu olhar, a humildade de sua palavra, toda sua vida, enfim, tão simples e pura, demonstravam a nobreza do seu caráter. Para ele todas as felicidades do mundo se concentravam em servir a Deus, a vivenciar o Evangelho de Jesus, amando o semelhante despretensiosamente.

A sua residência era um verdadeiro "hotel", principalmente dos pobres, que ali dormiam e se refaziam, restabelecendo suas condições físicas e espirituais. Muitos leprosos foram por ali hospedados e tratados com dignidade e amor.

Narra o sr. Francisco Antônio Rabelo de Mesquita, então acólito de Padre Vítor, que certa manhã o vigário saía para a igreja, quando a criada lhe comunicou que não havia nem café nem açúcar. Ele não teve dinheiro para deixar-lhe, a fim de que comprasse o que faltava.

A missa foi celebrada em sufrágio da alma de pessoa falecida em outra localidade. Quem a solicitou deu a espórtula num envelope fechado.

Na rua, voltando para a casa, Padre Vítor foi abordado por uma mulher que lhe implorava certa quantia para adquirir remédio para o filho doente, pois o farmacêutico não lhe permitia o pagamento posterior da medicação. Na mesma hora o vigário tirou do bolso o envelope fechado e o entregou à mulher. Minutos depois, ela o procura em sua residência para devolver-lhe o envelope, já que nele a quantia existente era muito acima do valor do remédio.

"São seus, já lhes dei", replicou o nobre sacerdote.

Vivia em extrema pobreza. Tudo o que ganhava dava-o aos pobres. Certa vez, uma senhora que se chamava Joana, sua vizinha, fez um prato de abóbora d’água e mandou uma pessoa levar para a irmã dela. Entretanto, o emissário não entendeu bem e levou o alimento para o Padre Vítor. Ao saber do sucedido, D. Joana foi pedir-lhe desculpas por ter ele recebido um prato tão simples, e ele agradeceu dizendo que foi muito bom e providencial, porque naquele dia ele estava com fome e não tinha nada para comer. E, tendo comido aquele prato de abóbora ficou muito feliz.

Em Três Pontas existia ainda o sentimento de casta, porque os trespontanos, em sua maioria, eram portugueses, bem como seus descendentes imediatos. Eles não gostavam de se misturar com gente de cor. Daí o descontentamento geral, pelo gesto de D. Viçoso, que era português, enviando à cidade um padre negro.

No entanto, a dedicação sacerdotal, o critério e sobretudo a atuação como professor, e o amparo aos pobres, criaram uma aura de consideração ao redor do padre preto que, tempo depois, gozava de alta estima e de toda a população de Três Pontas.

A prova de grandessíssimo apreço teve-a o Padre Vítor, quando pretendeu transferir-se para Boa Esperança, cidade também mineira. Na época o seu Colégio reunia mais de duzentos alunos. Todavia, após vários anos de esforço, o padre não conseguira nenhuma economia, pelo contrário, achava-se endividado. Desejava, por isso, iniciar nova vida com o mesmo mister em Boa Esperança, a fim de poder pagar as dívidas contraídas.

Ao tomarem conhecimento de sua definitiva deliberação nesse sentido, algumas autoridades locais, acompanhadas pelo povo, em caráter de manifestação, dirigiram-se à residência do Padre Vítor e pediram-lhe que mudasse de ideia e continuasse em Três Pontas.

Quanto terminaram o discurso para tal solicitação, duas jovens entregaram-lhe uma salva de flores. Ao receber a bandeja, notou Padre Vítor que havia sob as flores alguns documentos. À medida que os lia, seus olhos iam ficando umedecidos, até que, em dado momento, sem conseguir conter a emoção, chorou copiosamente. Estava ali, em suas mãos, a quitação de todas as suas dívidas.

Era tão elevada a sua condição moral, que numa tarde chegaram quatro homens à sua residência, custodiando um possesso que não conseguiam controlar. Sentaram o homem em um banco no salão e apressaram-se em chamar o Padre Vítor. Quando o sacerdote se aproximou do subjugado, o espírito que o "possuía" enfrentou-o gritando: saia daqui, seu negro beiçudo. Os quatro homens não conseguiam deter aquela criatura obsedada, que por mais de uma vez tentara galgar a parede.

Padre Vítor, aproximando-se dele, pousou-lhe a mão sobre a cabeça e orou. O doente foi-se acalmando, consideravelmente, como se estivesse desalimentado. Foi colocado, em seguida, sobre um leito, onde dormiu tranquilamente durante toda a noite, mostrando-se perfeitamente equilibrado, no dia seguinte.

Disse Jesus:

Curai os enfermos; expulsai os demônios; dai de graça o que de graça recebestes; amai o vosso próximo como a vós mesmos; não possuais nem ouro, nem prata, nem cobre em vossos cintos, nem alforje para o caminho, nem duas túnicas, nem alparcas, nem bordão, porque digno é o operário do seu alimento.

Assim procurou fazer Francisco de Paula Vítor, transformando-se no esteio dos desvalidos, no arrimo dos esfaimados, no consolo dos aflitos e na esperança dos atribulados, vivendo para servir, sem nenhuma preocupação em ser servido.

Abraçou a bandeira de uma ideal para vivê-lo. Foi um homem cônscio de suas responsabilidades. Preparou-se, não para mandar que os outros fizessem, mas para fazer de sua vida um espelho, a fim de que pudesse refletir o seu ideal.

Durante 78 anos em que ocupou o invólucro carnal, procurou ser sempre fiel a Jesus. Nunca a sua porta fechou-se para as necessidades alheias.

Era desejo de D. Pedro II extinguir, paulatinamente, a escravidão no Brasil, o que já vinha efetuando.

De fato, a Lei Matoso Câmara vedou o tráfico africano. A partir de 1850 não entraram mais no país escravos oriundos da África.

A Lei Rio Branco, também chamada a Lei do Ventre Livre, libertou os nascituros. A partir de 1871, ninguém mais nascia escravo no Brasil. Dessa forma, a extinção se completaria, automaticamente, pelo desaparecimento dos escravos existentes.

Insatisfeito com isso, o magnânimo Imperador aplicou meios de emancipação, sem prejuízo de proprietários de escravos. Assim, permitiu D. Pedro, por lei, a formação, em cada comarca, de uma Junta Abolicionista que se encarregava de promover a aquisição da liberdade pelos cativos, mediante a justa indenização aos senhores.

As Juntas, constituídas de filantropos, recebiam auxílio do governo, sendo que, algumas vezes, os próprios negros é que pagavam as suas cartas de alforria.

Em Três Pontas, a Junta Abolicionista se instalou sob a presidência do sr. Custódio Vieira de Brito, pertencente a distinta família local e diligente advogado licenciado. Essa Junta requereu a inscrição de dois escravos pertencentes a abastados fazendeiros. Para isso, os escravos deixaram as fazendas e se refugiaram na casa do presidente da Junta, onde se fizeram serviçais.

Os fazendeiros, pessoas de muita consideração, mas de pouca compreensão, viram no procedimento do advogado, mais do que um abuso, uma insolência.

Combinaram, então, reagir. Arquitetaram diabólico plano, congregando outros vizinhos fazendeiros, parentes e amigos, e resolveram que invadiriam a cidade, massacrariam os membros da Junta e, por fim, incendiariam a casa do seu presidente. Para isso providenciaram duas caixas de querosene.

Um servo de uma das fazendas acompanhou todo o movimento. Na véspera do dia combinado para o ataque, esperou que os senhores repousassem e partiu para a cidade, a fim de avisar o sr. Custódio de Brito da trama da qual ele e seus companheiros da Junta seriam vítimas.

A notícia correu de boca em boca, reinando, então, enorme ansiedade na população com a iminência da invasão. Tudo isso, porém, chegou aos ouvidos do Padre Vítor.

Às 14h do dia seguinte, chegava a informação de que o bando se aproximava, trazendo por um muar duas caixas de querosene para o incêndio da casa.

Padre Vítor dirigiu-se para a entrada da cidade e postou-se à espera. No momento em que a turba se aproximou, ele empunhou o crucifixo e bradou: Entrem! Entrem!... ,mas passem primeiro por cima do meu cadáver.

O bando estanca ante a espessa muralha moral que, inopinadamente, se erguia para poupar a cidade de uma cena de vandalismo.

O imprevisto abateu o ânimo daqueles homens que, imediatamente, silenciaram, pondo fim à algazarra que faziam. Os líderes da turba consultaram-se e, segundos depois, regressavam.

Em 1903, já muito idoso, Padre Vítor foi à cidade de Poços de Caldas, em busca de melhoria para a sua saúde bastante precária. Cerca de dois anos após o seu regresso desta cidade, agravaram-se os seus sofrimentos, vindo a desencarnar às 22:00 horas do dia 23 de setembro de 1905, e a inumação do seu corpo foi feita às 10:00 horas do dia 25, para que houvesse tempo para que todo o seu rebanho pudesse ver-lhe o corpo pela vez derradeira, sendo que os funerais contaram com a presença de mais de três mil pessoas.

A esse Espírito de Escol que, na continuidade dos serviços de Jesus Cristo, ampara-nos e abençoa-nos com a sua providencial assistência, nossa empobrecida homenagem, nossa admiração, respeito e muito carinho.

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