Na história da Terra, a
Humanidade talvez não passe de um sonho; e quando o nosso velho mundo adormecer
nos gelos de seu inverno, a passagem de nossas sombras sobre sua face talvez
nele não tenha deixado qualquer lembrança. A Terra possui uma história própria,
incomparavelmente mais rica e mais complexa que a do homem. Muito tempo antes
do aparecimento de nossa raça, durante séculos e séculos, ela foi seguidamente
ocupada por habitantes diversos, por seres primordiais, que estenderam sua
dominação sucessiva à sua superfície, e desapareceram com as modificações
elementares da física do globo.
Num destes últimos períodos, na
época terciária, à qual podemos fixar sem medo uma data de várias centenas de
milhares de anos, antes de nós, o sítio
onde hoje Paris ostenta os seus esplendores era um Mediterrâneo, um golfo do
oceano universal, acima do qual apenas se elevaram na França o terreno cretáceo
de Troie, Rouen, Tours; o terreno jurássico de Chaumont, Bourges, Niort; o
terreno triássico dos Vosges, e o terreno primitivo dos Alpes, do Auvergne e
das costas da Bretanha. Mais tarde a configuração mudou. Na época em que ainda
viviam o mamute, o urso das cavernas e o rinoceronte de narinas separadas,
podia-se ir por terra de Paris a Londres; e talvez esse trajeto fosse efetuado
por nossos antepassados daquele tempo, porque havia homens aqui, antes da
formação da França geográfica.
Sua vida diferia tanto da nossa
quanto a dos selvagens de que nos ocupávamos recentemente. Uns tinham
construído suas aldeias sobre palafitas, no meio dos grandes lagos; essas
cidades lacustres, comparáveis às dos castores, foram descobertas em 1853,
quando, em consequência de uma longa estiagem, os lagos da Suíça baixaram,
pondo a descoberto palafitas, utensílios de pedra, de chifre, de ouro e de
argila, vestígios inequívocos da antiga habitação do homem; e essas cidades
aquáticas não eram uma exceção: só na Suíça foram encontradas mais de duzentas.
Conta Heródoto que os Paeonianos habitavam cidades semelhantes sobre o lago
Prasias. Cada cidadão que tomava mulher era obrigado a mandar três pedras da
floresta vizinha e as fixar no lago. Como o número das mulheres não era
limitado, o piso da cidade cresceu depressa. As cabanas estavam em comunicação
com a água por um alçapão, e as crianças eram amarradas pelo pé a uma corda,
por medo de acidente. Homens, cavalo, gado, viviam juntos, alimentando-se de
peixe. Hipócrates relata os mesmos costumes dos habitantes de Phase. Em 1826,
Dumont d’Urville descobriu cidades lacustres análogas nas costas da Nova-Guiné.
Outros habitavam as cavernas, as
grutas naturais ou construíam um refúgio grosseiro contra os animais ferozes.
Hoje se encontram seus ossos misturados aos da hiena, do urso das cavernas, do
rinoceronte ticorino. Um cavouqueiro, em 1852, querendo saber a profundidade de
um buraco pelo qual os coelhos se esquivavam dos caçadores, em Aurignac
(Haute-Garonne), retirou dessa abertura ossos de grande dimensão. Atacando então
o flanco do montículo, na esperança de ali encontrar um tesouro, logo se achou
em frente de um verdadeiro ossuário. O rumor público, apoderando-se do fato,
pôs em circulação relatos de moedeiros falsos, de assassinatos etc. O prefeito
julgou por bem mandar reunir todas as ossadas para as levar ao cemitério; e
quando, em 1860, o Sr. Lartet quis examinar esses velhos restos, o coveiro nem
mais se lembrava do lugar da sepultura. Não obstante, com o auxílio de raros
vestígios que cercavam a caverna, traços de um foco, ossos quebrados para
extrair a medula, pode-se assegurar que as três espécies acima referidas
viveram nesse ponto da França ao mesmo tempo que o homem. O cão já era
companheiro do homem, e sem dúvida foi a sua primeira conquista.
O alimento desses homens
primitivos já era muito variado. Pretende um professor que a proporção entre
carnívoros e frugívoros era de doze para vinte. Acha o Sr. Florens que eles se nutriam
exclusivamente de frutos. Mas a verdade é que, desde o começo, o homem foi
onívoro. Os kjokkenmoddings da Dinamarca nos conservam restos de cozinha antediluviana,
provando este fato até a evidência. Já almoçavam ostras e peixes, conheciam o
ganso, o cisne, o pato; apreciavam o galo silvestre, o cervo, o cabrito-montês,
a rena, que caçavam, dos quais foram encontrados restos trespassados por
flechas de pedra. O bisão ou boi primitivo já lhe dava leite; o lobo, a raposa,
o cão e o gato lhes serviam de prato principal. As landes, a cevada, a aveia,
as ervilhas, as lentilhas lhes davam o pão e os legumes; o trigo só veio mais
tarde. As avelãs, as bolotas, as maçãs, as peras, os morangos e as framboesas rematavam
essas iguarias dos antigos dinamarqueses. Os suíços da idade da pedra se
apoderaram da carne do bisão, do alce e do touro selvagem, tinham domesticado a
cabra e a ovelha. A lebre e o coelho eram desdenhados por alguma razão
supersticiosa; mas, em compensação, o cavalo já havia tomado lugar em suas
refeições. Todas essas carnes eram comidas cruas e fumegantes na origem e, observação
curiosa, os antigos dinamarqueses não se serviam, como nós, dos dentes
incisivos para cortar, mas segurar, reter e mastigar o alimento, de sorte que
esses dentes não eram cortantes, como os nossos, mas achatados, como nossos
molares e as duas arcadas dentárias pousavam uma sobre a outra, em vez de se encaixarem.
Nem todos os selvagens
primitivos eram nus. Os primeiros habitantes das latitudes boreais, da
Dinamarca, da Gália e da Helvécia, tiveram que se garantir contra o frio com
agasalhos de peles. Mais tarde pensaram nos ornamentos. O coquetismo, o amor
aos enfeites não datam de hoje, senhoras: testemunham esses colares formados
com dentes de cão, de raposa e de lobo, atravessados por um furo de suspensão.
Mais tarde os grampos para cabelo, os braceletes, os pegadores de bronze se
multiplicaram ao infinito, e é surpreendente a variedade e até o bom-gosto dos objetos
que serviam à toalete das senhorinhas e dos homens elegantes daquele tempo.
Naquelas idades recuadas,
enterravam os mortos sob abóbadas sepulcrais. Os cadáveres eram colocados em
posição agachada, os joelhos quase tocando o queixo, os braços cruzados sobre o
peito e aproximados da cabeça. Como se observou, é esta a posição da criança no
seio materno. Esses homens primordiais certamente o ignoravam, e é por uma
espécie de intuição que equiparavam o túmulo a um berço.
Vestígios de idades que se
foram, esses grandes túmulos, esses montículos, essas colinas que nos séculos
passados eram chamados “túmulos de gigantes” e que serviam de limites invioláveis,
são câmaras mortuárias, sob as quais nossos antepassados escondiam seus mortos.
Quais eram esses primeiros homens? “Não é apenas por curiosidade, diz Virchow,
que perguntamos quem eram esses mortos, se em vida pertenciam a uma raça de
gigantes. Essas questões nos interessam. Esses mortos são nossos
antepassados, e as perguntas que dirigimos a esses túmulos se ligam igualmente
à nossa própria origem. De que raça saímos? De que fonte saiu nossa cultura
atual e para onde ela nos conduz?”
Não é preciso remontar à criação
para receber algum clarão sobre as nossas origens; do contrário ver-nos-íamos condenados
a permanecer sempre numa noite completa a esse respeito. Apenas sobre a data da
criação contaram-se mais de 140 opiniões, e da primeira à última não há menos
de 3.194 anos de diferença! Acrescentar uma 141ª hipótese não esclareceria o problema.
Assim, limitar-nos-emos a esclarecer que, do ponto de vista geológico, o último
período da história da Terra, o período quaternário, o que dura ainda hoje,
foi dividido em três fases: a fase diluviana, durante a qual houve
imensas inundações parciais, e vastos depósitos e acumulações de areia; a fase glaciária,
caracterizada pela formação de geleiras e por um maior resfriamento do globo;
enfim a fase moderna. Em suma, a importante questão, hoje mais ou menos
resolvida, era saber se o homem não data senão desta última época, ou das
precedentes.
Ora, agora está comprovado que
data no mínimo da primeira, e que os nossos primeiros ancestrais têm direito ao
título de fósseis, considerando-se que suas ossadas (o pouco que resta) jazem
com as do ursus spelaeus, da hiena e dos felis spelaea, do elephas
primigenius, do megacero etc., numa camada pertencente a uma ordem
de vida diferente da ordem atual.
Nessas épocas longínquas reinava
uma Natureza muito diferente da que hoje desdobra os seus esplendores em volta
de nós; outros tipos de plantas decoravam as florestas e os campos; outras
espécies de animais viviam na superfície do solo e nos mares. Quais foram os
primeiros homens que despertaram nesse mundo primordial? Que cidades foram
edificadas? Que língua foi falada? Que costumes estiveram em uso? Estas
questões ainda estão cercadas para nós de profundo mistério. Mas o de que temos
certeza é que ali onde fundamos dinastias e monumentos, várias raças de
homens habitaram sucessivamente, durante períodos seculares.
Sir John Lubbock, na obra
assinalada no começo deste estudo, demonstrou a ancianidade da raça humana
pelas descobertas relativas aos usos e costumes de nossos ancestrais, como Sir
Charles Lyell o tinha demonstrado do ponto de vista geológico. Seja qual for o
mistério que ainda envolve as nossas origens, preferimos esse resultado ainda
incompleto da ciência positiva, às fábulas e aos romances da antiga mitologia.
[1] Revista Espírita – Dezembro/1867 – Allan Kardec.
[2] Este artigo é tirado dos artigos científicos que o Sr.
Flammarion publicou no Siècle. Julgamos por bem reproduzi-lo, primeiro porque
sabemos do interesse dos nossos leitores pelos escritos desse jovem sábio, e,
além disso, porque, do ponto de vista da Ciência, ele toca em alguns pontos
fundamentais da doutrina exposta em nossa obra sobre a Gênese.
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