Alexandre Fontes da Fonseca
O conceito de duplo etérico é
controverso no meio espírita. Ele aparece em obras de autores respeitados como
André Luiz, além de outros. Porém, duplo
etérico não é um conceito espírita, isto é, não foi definido por Kardec ou
os Espíritos. Na verdade, duplo etérico
é um conceito esotérico. Ele é chamado de “Linga Sharira” e significa na teosofia, o 3º princípio na constituição
setenária do homem, que é levemente mais etéreo que o corpo físico (sthula
sharira). Segundo a Teosofia, ele permeia todo o corpo humano, sendo um molde
de todos os órgãos, artérias, e nervos[2].
É fácil encontrar na internet definições, funções e interpretações diversas (e
supostamente espíritas) para o duplo etérico. Ora se diz que o duplo etérico é
um tipo de filtro de energias ou fluidos;
ora se diz que ele é o perispírito do encarnado que contém fluido vital; ora se
diz que é um corpo vital (outro termo não definido pelo Espiritismo); ou,
ainda, que represente ou se manifeste através da aura; que ele é responsável pela vitalização da matéria; que é
responsável por administrar as energias vitais etc. Um problema sério com essas
definições é que elas são divulgadas como se fossem conceitos científicos,
avançados e modernos quando, na verdade, carecem de base tanto científica
quanto espírita, e demonstram desconhecimento a respeito da natureza dos
fluidos. Por exemplo, o que são energias
vitais para se afirmar que existe um corpo espiritual que administra essas
energias? Ou o que seria um corpo vital?
Há quem diga que André Luiz afirma que o duplo etérico é o corpo vital. Mas se
não sabemos ainda o que é, de fato, o duplo etérico, qualquer definição desse
tipo se torna vazia e redundante.
Na Doutrina Espírita, o termo
“duplo etérico” aparece uma única vez n’O
Livro dos Médiuns (LM)[3].
Ao analisar a visão que uma senhora teve de um senhor que a visitou durante o
período em que estava enferma e, em particular, buscando compreender a
descrição que ela fez do senhor que, na visão, portava uma caixa de rapé (item
116 do LM), Kardec supõe (item 126 do LM) que
possivelmente, aos
corpos inertes da Terra correspondem outros, análogos, porém etéreos, no mundo
invisível; de que a matéria condensada, que forma os objetos, pode ter uma
parte quintessenciada, que nos escapa aos sentidos.
Com o fito de desvendar essa
questão e os mecanismos de outros fenômenos de efeitos físicos, como a escrita
direta, Kardec apresenta uma série de questões ao Espírito São Luís (item 128
do LM). Em particular, na questão 4, do item 128, do capítulo VIII do LM,
Kardec usa o termo “duplo etérico” da seguinte forma:
4ª Dar-se-á que a matéria inerte se desdobre? Ou que haja
no mundo invisível uma matéria essencial, capaz de tomar a forma dos objetos
que vemos? Numa palavra, terão estes um duplo
etéreo no mundo invisível como os homens são nele representados pelos
Espíritos?
Não é assim que as coisas se passam. Sobre os elementos materiais disseminados
por todos os pontos do espaço, na vossa atmosfera, têm os Espíritos um poder
que estais longe de suspeitar. Podem, pois, eles concentrar à sua vontade esses
elementos e dar-lhes a forma aparente que corresponda à dos objetos materiais.
Da forma como Kardec faz a
pergunta, é fácil perceber que ele considerava o conceito de duplo etérico, como a simples existência
de um segundo corpo de natureza
fluídica, assim como os homens são nele
representados pelos Espíritos. A ideia do homem ser uma criatura que possui
dois corpos (físico e perispírito) e, por isso, duplo, pode ser verificada nas seguintes palavras de Kardec na
Revista Espírita de 1864[4]:
Quando a alma está
unida ao corpo durante a vida, tem um envoltório duplo: um pesado, grosseiro e destrutível, que é o corpo; outro fluídico, leve e indestrutível,
chamado perispírito. O perispírito é o laço que une a alma ao corpo; é por seu intermédio
que a alma faz o corpo agir e percebe as sensações experimentadas pelo corpo.
Ou seja, no máximo, o conceito
de “duplo etérico” no Espiritismo é o de o homem possuir dois corpos: o físico
e o perispírito.
O problema em torno do termo e
do conceito de “duplo etérico” é sua propagação livre em livros, artigos e
palestras espíritas, como se fosse um conceito espírita. Não que seja proibido
pensar ou se expressar da forma que bem entende, mas há sempre responsabilidade
com relação ao que os nossos leitores e ouvintes aprendem de nós. Infelizmente,
várias referências apresentam o “duplo etérico” como um conceito avançado de
natureza científica, citando referências como as obras de André Luiz, como argumento de autoridade. Para o leigo,
argumentos como esse parecem ser fortes o bastante para introduzir um novo
termo ao linguajar espírita. Porém, por recomendar que nossa fé seja sempre raciocinada, que nossa crença seja
sempre baseada no entendimento, termos e novidades de outras religiões e
filosofias só devem ser utilizados em estudos que os expliquem em termos
espíritas. Isso é, exatamente, o que os Espíritos disseram a Kardec na resposta
à questão 628 d’O Livro dos Espíritos (LE)[5]:
628. Por que a verdade não foi sempre posta ao alcance de
toda gente?
Importa que cada
coisa venha a seu tempo. A verdade é como a luz: o homem precisa habituar-se a
ela, pouco a pouco; do contrário, fica deslumbrado. Jamais permitiu Deus que o homem recebesse comunicações tão completas e
instrutivas como as que hoje lhe são dadas. Havia, como sabeis, na
antiguidade alguns indivíduos possuidores do que eles próprios consideravam uma
ciência sagrada e da qual faziam mistério para os que, aos seus olhos, eram
tidos por profanos. Pelo que conheceis das leis que regem estes fenômenos, deveis compreender que esses indivíduos
apenas recebiam algumas verdades esparsas, dentro de um conjunto equívoco e, na
maioria dos casos, emblemático. Entretanto, para o estudioso, não há nenhum
sistema antigo de filosofia, nenhuma tradição, nenhuma religião que seja
desprezível, pois em tudo há germens de grandes verdades que, se bem pareçam
contraditórias entre si, dispersas que se acham em meio de acessórios sem
fundamento, facilmente coordenáveis se
vos apresentam, graças à explicação que o Espiritismo dá de uma imensidade de
coisas que até agora se vos afiguraram sem razão alguma e cuja realidade
está hoje irrecusavelmente demonstrada. Não desprezeis, portanto, os objetos de
estudo que esses materiais oferecem. Ricos eles são de tais objetos e podem
contribuir grandemente para vossa instrução.
Se o Espiritismo fornece a
explicação que torna os conhecimentos esotéricos verdades “facilmente coordenáveis”, então são os conceitos do
Espiritismo é que devem ser utilizados para interpretar e compreender esses
conceitos de outras doutrinas. Ao introduzir conceitos esotéricos no linguajar
espírita, consciente ou não, o movimento espírita age de modo contrário ao que
foi recomendado pelos Espíritos na questão 628 do LE. É como se o movimento
espírita não apoiasse a Doutrina Espírita, já que valoriza mais as teorias e
conceitos de outras doutrinas. É como se o movimento espírita considerasse
esses conceitos como mais avançados do que o Espiritismo. Se alguém, de fato,
acredita que o Espiritismo é incompleto e inadequado para descrever fenômenos
espíritas, que deixe o Espiritismo e se afilie em doutrinas ou filosofias que
achar melhor. Se somos espíritas, devemos utilizar os conceitos do Espiritismo.
Se desejamos ser espíritas, devemos estudar e compreender com profundidade a
Doutrina Espírita.
Mas como o Espiritismo explica o que dizem ser as funções do duplo
etérico como filtro, vitalização da matéria etc.? O
Espiritismo explica todas essas funções de modo simples e com termos próprios.
A Doutrina Espírita define e ensina dois conceitos fundamentais nessa questão: princípio vital e fluido vital. O cap. IV da primeira parte do LE é dedicado ao tema
“Princípio Vital”. Nesse capítulo, no comentário à questão 70 do LE, Kardec
introduz o termo fluido vital.
Podemos dizer que o princípio vital é
o princípio que permite a animalização da matéria, enquanto que o fluido vital é a porção ou quantidade de
uma das modificações do Fluido Universal que contém o princípio vital. Assim
explica Kardec no item II da introdução do LE:
Princípio vital, o
princípio da vida material e orgânica, qualquer que seja a fonte donde promane,
princípio esse comum a todos os seres vivos, desde as plantas até o homem. Pois
que pode haver vida com exclusão da faculdade de pensar, o princípio vital é
uma propriedade da matéria, um efeito que se produz achando-se a matéria em
dadas circunstâncias. Segundo outros, e esta é a ideia mais comum, ele reside em um fluido especial,
universalmente espalhado e do qual cada ser absorve e assimila uma parcela
durante a vida, tal como os corpos inertes absorvem a luz. Esse seria então o fluido vital que, na opinião de alguns, em nada
difere do fluido elétrico animalizado, ao qual também se dão os nomes de fluido
magnético, fluido nervoso etc.
Portanto, o Espiritismo
apresenta os conceitos de princípio vital e fluido vital de modo coerente com
seus conceitos de fluidos, de perispírito etc. Como não há na codificação
nenhuma menção à estrutura do perispírito como sendo formada por vários corpos,
não há definição alguma de expressões como corpo
vital. Essas expressões são destituídas de significado dentro do contexto
espírita.
Mas alguns poderiam perguntar se
não poderia ser a aura, o que algumas
pessoas chamam de duplo etérico.
Aqui, novamente, a questão está sendo proposta sem um maior aprofundamento na
Doutrina Espírita. Nas obras básicas e na Revista Espírita, Kardec não usou a
palavra aura. Porém usou a expressão atmosfera fluídica ou atmosfera individual e a definiu da
seguinte maneira no item 11 do capítulo intitulado “Manifestações dos
Espíritos”, em Obras Póstumas (OP)[6]:
O perispírito não se
acha encerrado nos limites do corpo, como numa caixa. Pela sua natureza
fluídica, ele é expansível, irradia para o exterior e forma, em torno do corpo,
uma espécie de atmosfera que o pensamento e a força da vontade podem dilatar
mais ou menos. Daí se segue que pessoas há que, sem estarem em contato
corporal, podem achar-se em contato pelos seus perispíritos e permutar a seu
mau grado impressões e, algumas vezes, pensamentos, por meio da intuição.
A definição acima coincide com o
conceito de aura que conhecemos. No item 22 do mesmo capítulo e obra, Kardec
diz:
O perispírito das
pessoas vivas goza das mesmas propriedades que o dos Espíritos. Como já foi
dito, o daquelas não se acha confinado no corpo: irradia e forma em torno deste uma espécie de atmosfera fluídica.
Aqui Kardec usa a expressão atmosfera fluídica. Mais adiante em OP,
no capítulo intitulado Introdução ao
estudo da fotografia e da telegrafia do pensamento, Kardec diz:
Cada um de nós tem,
pois, o seu fluido próprio, que o envolve e acompanha em todos os movimentos,
como a atmosfera acompanha cada planeta. É
muito variável a extensão da irradiação dessas atmosferas individuais.
Achando-se o Espírito em estado de absoluto repouso, pode essa irradiação ficar
circunscrita nos limites de alguns passos; mas, atuando à vontade, pode
alcançar distâncias infinitas. A vontade como que dilata o fluido, do mesmo
modo que o calor dilata os gases. As diferentes atmosferas individuais se entrecruzam e misturam, sem jamais se
confundirem, exatamente como as ondas sonoras que se conservam distintas, ...
Aqui, Kardec chama a aura de atmosferas individuais e não tem nada a
ver com os conceitos de fluido vital. Vemos, portanto, que Kardec utilizou
termos mais apropriados para os conceitos de fluido vital e irradiação de
fluidos.
Percebemos, portanto, que o
conceito de duplo etérico como uma
camada ou corpo do perispírito não está presente na Doutrina Espírita.
Cientificamente falando, não é correto fazer uso de termos de outras doutrinas,
sem que haja justificativas plenamente coerentes com os critérios espíritas.
Para quem respeitosamente acredita que o fato de um Autor respeitado como André
Luiz ter usado o termo duplo etérico,
seja razão suficiente para incorporar esse termo ao linguajar e conceitos
espíritas, vejamos o comentário e o exemplo do próprio Allan Kardec na Revista
Espírita de 1868[7]
sobre um conceito que ele acreditava como correto (e que hoje sabemos pela
Ciência que estava errado), mas que ele preferiu não adotá-la na Doutrina
Espírita por ser apenas uma opinião própria:
A questão da geração
espontânea está neste número. Para nós,
pessoalmente, é uma convicção, e se a tivéssemos tratado numa obra comum,
tê-la-íamos resolvido pela afirmativa; mas numa obra constitutiva da
Doutrina Espírita, as opiniões
individuais não podem fazer lei; não se baseando a Doutrina em
probabilidades, não podíamos decidir uma questão de tal gravidade, apenas
despontada, e que ainda está em litígio entre os especialistas. Afirmando a coisa sem restrição, teria sido
comprometer a Doutrina prematuramente, o que jamais fazemos, mesmo para
fazer prevalecerem as nossas simpatias.
Como se vê nas palavras de
Kardec acima, não se deve tomar opiniões ou descrições individuais de
encarnados ou desencarnados com relação a conceitos que diferem do Espiritismo.
Em Ciência, como sabemos, não é assim que o conhecimento progride[8].
Por fim, há quem questione por que confiar no Espiritismo, na forma
como ele descreve os fenômenos espíritas (incluindo a relação entre fluido
vital e o corpo físico)? A confiança que nós espíritas podemos depositar no
Espiritismo decorre do estudo da forma como Kardec obteve o conhecimento
espírita. O Espiritismo é a única
teoria conhecida na Humanidade que foi desenvolvida através do duplo caráter de
uma revelação: divino e científico[9].
O Espiritismo não é fruto de opiniões isoladas de Kardec (como na citação
acima), mas sim da observação, do estudo e da análise cuidadosa dos fenômenos
espíritas, das mensagens e ensinamentos dos Espíritos e suas consequências.
Kardec não formou a Doutrina a partir das primeiras mensagens, mas observou e
testou, constantemente, durante sua vida, os conceitos apresentados pelos
Espíritos. Em outras palavras, Kardec desenvolveu e aplicou um método científico apropriado para a
investigação dos fenômenos espíritas, e teve na assistência constante dos bons
Espíritos, a supervisão na preparação dos textos da Doutrina Espírita. Através
desse esforço de observação e verificação dos conceitos observados ou ensinados
pelos Espíritos, Kardec foi capaz de tornar um conjunto de crenças a respeito da vida após a morte em um
verdadeiro conhecimento[10].
Por essas razões, os conceitos espíritas são muito mais confiáveis do que os de
outras doutrinas esotéricas e mesmo daquelas que, superficialmente, se
apresentam em nome de conceitos científicos como os da Física.
O movimento espírita deve ter
notado que a Espiritualidade tem manifestado preocupação em nos orientar a pautar
e valorizar nossos estudos pelo Espiritismo. Inúmeras mensagens, desde décadas,
têm buscado incentivar o estudo e valorização do Espiritismo em nossas casas
espíritas. Veja, por exemplo, trechos inteiros de mensagens de Bezerra e
Camilo, pela mediunidade de Chico Xavier, Divaldo P. Franco e Raul Teixeira,
transcritos na parte final do artigo intitulado A Pureza Doutrinária e a Ciência, publicado em “O Consolador8”.
Aqui, encerramos o artigo com as seguintes palavras de Eurípedes Barsanulfo[11]:
Continuamos convosco,
renovando nossos mais sinceros votos de um trabalho fervoroso, comprometido,
idealista, estudado, dissecado, meditado, instruído, amadurecido, balizado,
abençoado e, sobretudo, incrustado em
Allan Kardec!
Os grifos são do
articulista.
[2] Tirado do link da Wikipedia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Linga_sharira.
[3] A.
Kardec, O Livro dos Médiuns, Editora
FEB, 62ª Edição, Rio de Janeiro (1996).
[4] A.
Kardec, “Resumo da Lei dos Fenômenos Espíritas”, Revista Espírita Jornal de Estudos Psicológicos (Abril/1864), pp.
147-156; FEB: Tradução de Evandro Noleto Bezerra.
[5] A.
Kardec, O Livro dos Espíritos,
Editora FEB, 76ª Edição, Rio de Janeiro (1995).
[6] A.
Kardec, Obras Póstumas, IDE, 1ª
edição, Araras (1993).
[7] A. Kardec, “A Geração Espontânea e A Gênese”, Revista Espírita Jornal de Estudos
Psicológicos (Julho/1868), pp. 285-293; FEB: Tradução de Evandro Noleto
Bezerra.
[8] A. F. da Fonseca, “A Pureza Doutrinária e a Ciência”, “O
Consolador” 319 (2013), link de acesso: http://www.oconsolador.com.br/ano7/319/especial.html .
[9] A. F. da Fonseca, “Espiritismo: único conhecimento
humano que tem o duplo caráter de uma Revelação!”, O Consolador 209 (2011),
link de acesso: http://www.oconsolador.com.br/ano5/209/alexandre_fonseca.html.
[10] A. F. da Fonseca, “Como o Espiritismo contribui para a
Sociedade?”, Jornal de Estudos Espíritas 1, artigo número 010203 (2013). Link
de acesso: https://sites.google.com/site/jeespiritas/volumes/Volume-1---2013/resumo---art-n-010203.
[11] Mensagem psicografada pelo médium Emanuel Cristiano na
noite de 20/04/2014 no Centro Espírita “Allan Kardec” de Campinas/SP.
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