terça-feira, 30 de novembro de 2021

O ESPIRITISMO E A MAGISTRATURA[1]

 

Allan Kardec

 

Perseguições Judiciais contra o Espiritismo

Cartas de um Juiz de Instrução

 

Como temos dito muitas vezes, o Espiritismo conta em suas fileiras mais de um magistrado, não só na França, como na Itália, Espanha, Bélgica, Alemanha e na maioria dos países estrangeiros. A maior parte dos detratores da doutrina, que julga ter o privilégio do bom-senso, trata de insensatos os que não partilham de seu cepticismo a respeito das coisas espirituais – não dizemos sobrenaturais porque o Espiritismo não as admite – admira-se que homens de inteligência e de valor incorram em semelhante erro. Os magistrados não são livres de ter sua opinião, sua fé, sua crença? Não há entre eles católicos, protestantes, livres-pensadores, franco maçons? Quem, pois, poderia incriminar os que são espíritas? Não estamos mais no tempo em que teriam cassado, talvez queimado, o juiz que tivesse ousado afirmar publicamente que é a Terra que gira.

Coisa estranha! Há gente que gostaria de fazer reviver esse tempo para os espíritas. No último levante não vimos homens que se diziam apóstolos da liberdade de pensamento, os apontar à vindita da lei como malfeitores, excitar as populações a ir-lhes ao encalço, estigmatizá-los e lhes atirar injúrias à face, nas folhas públicas e nos panfletos? Foi um momento de verdadeira raiva, e não de brincadeira que, graças ao tempo em que vivemos, exalou-se em palavras. Foi necessária toda a força moral de que se sentem animados os espíritas, toda a moderação, de que os próprios princípios da doutrina fazem uma lei, para manter a calma e o sangue-frio em tal circunstância e abster-se de represálias, que poderiam ter sido lamentáveis. Esse contraste chocou todos os homens imparciais.

Então o Espiritismo é uma associação, uma filiação tenebrosa, perigosa para a sociedade, obediente a uma palavra de ordem? Seus adeptos fizeram um pacto entre si? Só a ignorância e a má-fé podem avançar tais absurdos, já que sua doutrina não tem segredos para ninguém e eles agem à luz do dia. O Espiritismo é uma filosofia como qualquer outra, que se aceita livremente, se convém, ou se rejeita, se não convém; que repousa numa fé inalterável em Deus e no futuro e que só obriga moralmente seus aderentes a uma coisa: considerar todos os homens como irmãos, sem acepção de crença, e fazer o bem, mesmo aos que nos fazem mal.

Por que, então, não poderia um magistrado dizer-se abertamente seu partidário e declará-la boa, se a julga boa, como pode dizer-se partidário da filosofia de Aristóteles, de Descartes ou de Leibnitz?

Temeriam que sua justiça sofresse por isto? Que isto o tornasse muito indulgente para os adeptos? Algumas observações aqui encontram naturalmente o seu lugar.

Num país como o nosso, onde as opiniões e as religiões são livres por lei, seria uma monstruosidade perseguir um indivíduo porque acredita nos Espíritos e em suas manifestações. Se, pois, um espírita fosse chamado em juízo, não seria por causa de sua crença, como se fazia em outros tempos, mas porque teria cometido uma infração à lei. É, pois, a falta que seria punida, e não a crença; e se fosse culpado seria passível das penas da lei. Para incriminar a doutrina é preciso verificar se ela encerra algum princípio ou máxima que autorizaria ou justificaria a falta. Se, ao contrário, aí se achasse algo censurável ou instruções em sentido oposto, a doutrina não poderia ser responsável pelos que não a compreendem ou não a praticam. Pois bem! Que analisem a Doutrina Espírita com imparcialidade e desafiamos que aí encontrem uma só palavra sobre a qual se possam apoiar para cometer um ato qualquer repreensível aos olhos da moral, ou a respeito do próximo, ou mesmo que possa ser interpretado como mal, porque tudo aí é claro e sem equívoco.

Quem quer que se conforme aos preceitos da doutrina não poderia, pois, estar sujeito a perseguições judiciais, a menos que nele se persiga a própria crença, o que entraria nas perseguições contra a fé. Ainda não temos conhecimento de perseguições desta natureza na França, nem mesmo no estrangeiro, salvo a condenação, seguida do auto-de-fé, de Barcelona, embora fosse uma sentença do bispo, e não do tribunal civil, e onde apenas se queimaram livros. Com efeito, sob que pretexto perseguiriam pessoas que só pregam a ordem, a tranquilidade, o respeito às leis? Que praticam a caridade, não só entre si, como nas seitas exclusivas, mas para com todo o mundo? Cujo objetivo principal é trabalhar o seu próprio melhoramento moral? Que, contra os inimigos, abjuram todo sentimento de ódio e de vingança? Homens que professam tais princípios não podem ser perturbadores da sociedade; certamente não são eles que a levarão à desordem, o que fez um comissário de polícia dizer que se todos os seus subordinados fossem espíritas ele poderia fechar sua repartição.

Em semelhantes casos, a maior parte das perseguições tem por objetivo o exercício ilegal da Medicina, ou acusações de charlatanismo, prestidigitação ou fraude, por meio da mediunidade.

Primeiramente diremos que o Espiritismo não pode ser responsável por indivíduos que indevidamente se fazem passar por médiuns, assim como a verdadeira ciência não é responsável pelos escamoteadores que se dizem físicos. Um charlatão pode, pois, dizer que opera com o auxílio dos Espíritos, como um prestidigitador diz que opera com a ajuda da física. É um meio como qualquer outro de jogar poeira nos olhos; tanto pior para os que se deixam enganar. Em segundo lugar, condenando o Espiritismo a exploração da mediunidade, como contrária aos princípios da doutrina, do ponto de vista moral e, além disso, demonstrando que ela não deve, nem pode, ser um ofício ou uma profissão, todo médium que não tira de sua faculdade qualquer proveito direto ou indireto, ostensivo ou dissimulado, afasta, por isso mesmo, até a suspeita de fraude ou de charlatanismo; desde que não é atraído por nenhum interesse material, a trapaça não teria sentido. O médium que compreende o que há de grave e santo num dom dessa natureza julgaria profaná-lo fazendo-o servir a coisas mundanas, para si e para os outros, ou se dele fizesse um objeto de divertimento e de curiosidade. Respeita os Espíritos como gostaria que o respeitassem, quando for Espírito, e deles não faz alarde.

Ademais, sabe que a mediunidade não pode ser um meio de adivinhação; que não pode fazer descobrir tesouros, heranças, nem facilitar êxito nas coisas aleatórias; jamais será um ledor de buenadicha[2], nem por dinheiro, nem por nada; daí por que jamais terá altercações com a justiça. Quanto à mediunidade curadora, ela existe, é certo; mas está subordinada a condições restritivas, que excluem a possibilidade de consultório aberto, sem suspeitas de charlatanismo. É uma obra de devotamento e de sacrifício, e não de especulação. Exercida com desinteresse, prudência e discernimento, e encerrada nos limites traçados pela doutrina, não pode cair sob os golpes da lei.

Em resumo o médium, segundo os desígnios da Providência e a visão do Espiritismo, seja artífice ou príncipe, pois os há nos palácios e nas choupanas, recebeu um mandato que cumpre religiosamente e com dignidade; vê em sua faculdade apenas um meio para glorificar a Deus e servir ao próximo, e não um instrumento para servir aos seus interesses ou satisfazer a sua vaidade; faz-se estimar e respeitar por sua simplicidade, modéstia e abnegação, o que não sucede com os que dele buscam fazer um trampolim.

Ao punir com severidade os médiuns exploradores, os que abusam de uma faculdade real, ou simulam uma faculdade que não têm, a justiça não atinge a doutrina, mas o abuso. Ora, o Espiritismo verdadeiro e sério, que não vive de abuso, com isto só poderá ganhar em consideração e não tomaria sob seu patrocínio os que apenas desviam a opinião pública por conta própria.

Tomando a defesa para si, ele assumiria a responsabilidade do que eles fazem, porque esses tais não são verdadeiramente espíritas, ainda quando fossem realmente médiuns.

Enquanto não perseguirem num espírita, ou nos que se fazem passar por tais, senão os atos repreensíveis aos olhos da lei, o papel do defensor é discutir o ato em si mesmo, abstração feita da crença do acusado; seria grave erro procurar justificar o ato em nome da doutrina. Ao contrário, deve empenhar-se em demonstrar que ela lhe é estranha. Então o acusado cai no direito comum.

Um fato incontestável é que, quanto mais extensos e variados são os conhecimentos de um magistrado, tanto mais apto é este para apreciar os fatos sobre os quais é chamado a pronunciar-se.

Num caso de medicina legal, por exemplo, é evidente que aquele que não for totalmente estranho à ciência poderá melhor julgar o valor dos argumentos da acusação e da defesa, do que outro que lhe ignora os mais elementares princípios. Num caso onde o Espiritismo estivesse em questão, e hoje que ele está na ordem do dia, pode apresentar-se, incidentemente, como principal ou como acessório numa porção de casos, há um interesse real para os magistrados em saber ao menos o que ele é, sem que, por isso, sejam tidos por espíritas. Num dos casos precitados, incontestavelmente saberiam melhor discernir o abuso da verdade.

Infiltrando-se o Espiritismo cada vez mais nas ideias, e tendo já um lugar reservado entre as crenças reveladas, não está longe o tempo em que não será mais permitido a nenhum homem esclarecido ignorar, exatamente, o que é essa doutrina, do mesmo modo que hoje não pode ignorar os primeiros elementos das ciências. Ora, como ele toca em todas as questões científicas e morais, compreender-se-á melhor uma porção de coisas que, à primeira vista, aí pareciam estranhas. É assim, por exemplo, que o médico aí descobrirá a verdadeira causa de certas afecções, que o artista colherá numerosos temas de inspiração, que será em muitas circunstâncias uma fonte de luz para o magistrado e para o advogado.

É neste sentido que o aprecia o Sr. Jaubert, o honrado vice-presidente do tribunal de Carcassonne. Nele é mais que um conhecimento adicionado aos que possui, é uma questão de convicção, pois lhe compreende o alcance moral. Embora jamais tenha ocultado sua opinião a esse respeito, convencido de estar certo e da força moralizadora da doutrina, hoje que a fé se extingue no cepticismo, ele quis dar-lhe o apoio da autoridade do seu nome, no momento mesmo em que ela era atacada com mais violência, afrontando resolutamente a zombaria e mostrando aos seus adversários o pouco caso que faz de seus sarcasmos. Em sua posição e dadas as circunstâncias, a carta que nos pediu que publicássemos, e que inserimos no número de janeiro último, é um ato de coragem, do qual todos os espíritas sinceros guardarão preciosa lembrança. Ela marcará na História o estabelecimento do Espiritismo.

A carta seguinte, que igualmente estamos autorizados a publicar, tem lugar reservado ao lado da do Sr. Jaubert. É uma dessas adesões explícitas e motivadas, à qual a posição do autor dá tanto mais peso quanto é espontânea, já que não tínhamos a honra de conhecer esse senhor. Ele julga a doutrina tão-só pela impressão das obras, pois nada tinha visto. É a melhor resposta à acusação de inépcia e de trapaça lançada indistintamente contra o Espiritismo e seus aderentes.

21 de novembro de 1865.

Senhor,

Permiti-me, como novo e fervoroso adepto, testemunhar-vos todo o meu reconhecimento por me terdes iniciado, pelos vossos escritos, à ciência espírita. Por curiosidade, li O Livro dos Espíritos; mas, após uma leitura atenta, a admiração, depois a mais inteira convicção sucederam em mim a uma desconfiada incredulidade. Com efeito, a doutrina que dele decorre dá a mais lógica solução, a mais satisfatória para a razão, de todas as questões que tão seriamente preocuparam os pensadores de todos os tempos, para definir as condições da existência do homem nesta Terra e determinar seus fins últimos. Esta admirável doutrina é, incontestavelmente, a sanção da mais pura e da mais fecunda moral, a exaltação demonstrada da justiça, da bondade de Deus e da obra sublime da criação, assim como a base mais segura e mais firme da ordem social.

Não testemunhei as manifestações espíritas, mas este elemento de prova, de modo algum contrário aos ensinamentos de minha religião (a religião católica), não é necessário à minha convicção. Antes de mais, basta-me encontrar na ordem da Providência a razão de ser da desigualdade das condições nesta Terra, numa palavra, a razão de ser do mal material e do mal moral.

Com efeito, minha razão admite plenamente, como justificando a existência do mal material e moral, a alma saindo simples e ignorante das mãos do Criador, enobrecida pelo livrearbítrio, progredindo por provas e expiações sucessivas e não chegando à soberana felicidade senão adquirindo a plenitude de sua essência etérea, pela libertação completa das constrições da matéria, que, alterando as condições da beatitude, deve ter servido para o seu adiantamento.

E, nesta ordem de ideias, que de mais racional que os Espíritos, nas diversas fases de sua depuração progressiva, se comuniquem entre si, de um a outro mundo, encarnado ou invisível, para se esclarecerem, se ajudarem mutuamente, concorrerem reciprocamente para o seu avanço, facilitarem suas provas e entrarem na via reparadora do arrependimento e da volta a Deus! Que de mais racional, digo eu, que numa tal continuidade, um tal fortalecimento dos laços de família, de amizade e de caridade que, unindo os homens em sua passagem por esta Terra, devem, como último objetivo, reuni-los um dia numa só família no seio de Deus!

Que traço de união sublime: o amor partindo do céu, para abraçar com o seu sopro divino a Humanidade inteira, povoando o imenso Universo, e a reconduzir a Deus para fazê-la participar da beatitude eterna, do qual este amor é a fonte! Que de mais digno da sabedoria, da justiça e da bondade infinita do Criador! Que grandiosa ideia da obra cuja harmonia e imensidade o Espiritismo revela, ao levantar uma ponta do véu que ainda não permite ao homem penetrar-lhe todos os segredos! Quanto os homens não tinham restringido sua incomensurável grandeza, encerrando a Humanidade num ponto imperceptível, perdido no espaço, e não concedendo senão a pequeno número de eleitos a felicidade eterna reservada a todos! Assim, rebaixaram o divino artífice às proporções ínfimas de suas percepções, das aspirações tirânicas, vingativas e cruéis inerentes às suas imperfeições.

Enfim, basta à minha razão encontrar nesta santa doutrina a serenidade da alma, coroando uma existência conformada às tribulações providenciais de uma vida honestamente preenchida pelo cumprimento de seus deveres e pela prática da caridade, a firmeza na sua fé, pela solução das dúvidas que restringem as aspirações para Deus e, finalmente, esta plena e inteira confiança na justiça, na bondade e na misericordiosa e paternal solicitude de seu Criador.

Dignai-vos, senhor, contar-me no número dos vossos irmãos em Espiritismo, e aceitar etc.

Bonnamy, juiz de instrução

 

Uma comunicação dada pelo Espírito do pai do Sr. Bonnamy provocou a carta seguinte. Não reproduzimos essa comunicação por causa de seu caráter íntimo e pessoal, mas a seguir publicamos outra, que é de interesse geral.

Senhor e caro mestre, mil vezes obrigado por ter tido a bondade de evocar meu pai. Há tanto tempo que não ouvia essa voz amada! Extinta para mim há tantos anos, ela revive hoje! Assim se realiza o sonho de minha imaginação entristecida, sonho concebido sob a impressão de nossa separação dolorosa. Que doce, que consoladora revelação, tão cheia de esperanças para mim! Sim, vejo meu pai e minha mãe no mundo dos Espíritos, velando por mim, prodigalizando-me o benefício dessa ansiosa solicitude com que me cercavam na Terra. Minha santa mãe, em sua terna preocupação pelo futuro, penetrando-me com seu eflúvio simpático para me levar a Deus e mostrar-me o caminho das verdades eternas, que para mim cintilavam num longínquo nebuloso!

 Como eu seria feliz se, conforme o desejo expresso por meu pai, de se comunicar novamente, sua comunicação pudesse ser julgada útil ao progresso da ciência espírita, e entrar na ordem dos ensinamentos providenciais reservados à obra! Assim eu encontraria, em vosso jornal, os elementos de instruções espíritas, por vezes misturados às doçuras das conversas familiares. É um simples voto, bem o compreendeis, caro mestre; levo em grande conta as exigências da missão que vos incumbe, para fazer de tal voto uma prece.

Dou plena autorização à publicação de minha carta. De boa vontade levarei meu grão de areia à inauguração do edifício espírita; feliz se, ao contato de minha convicção profunda, as dúvidas de alguns se dissipassem e se os incrédulos pensassem em refletir mais seriamente!

Permiti-me, caro mestre, dirigir-vos algumas palavras de simpatia e de encorajamento por vosso duro labor. O Espiritismo é um farol providencial, cuja luz deslumbrante e fecunda deve abrir todos os olhos, confundir o orgulho dos homens, comover todas as consciências; sua irradiação será irresistível. E que tesouros de consolação, de misericórdia e de amor, de que sois o distribuidor!

Aceitai etc.

Bonnamy



[1] Revista Espírita – Março/1866 – Allan Kardec

[2] Sina, fortuna, sorte.

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