terça-feira, 12 de dezembro de 2017

Auto-de-fé de Barcelona[1]

 

Os jornais espanhóis não foram tão sóbrios de reflexões quanto os jornais franceses sobre esse acontecimento.
Seja qual for a opinião que se professe em relação às ideias espíritas, há no fato em si algo de tão estranho para o tempo em que vivemos, que mais excita piedade do que cólera contra gente que parece ter dormido durante vários séculos e haver despertado sem consciência do caminho que a Humanidade percorreu, julgando-se ainda no ponto de partida.
Eis um extrato do artigo em questão, publicado por Las Novedades, um dos grandes jornais de Madrid:
O auto-de-fé celebrado há alguns meses em La Coruña, em que foi queimado grande número de livros à porta de uma igreja, tinha produzido no nosso e no espírito de todos os homens de ideias liberais uma impressão muito triste. Mas é com indignação ainda bem maior que foi recebida em toda a Espanha a notícia do segundo auto-de-fé em Barcelona, nesta capital civilizada da Catalunha, em meio a uma população essencialmente liberal, à qual sem dúvida fizeram este bárbaro insulto, porque nela reconhecem grandes qualidades.
Depois de relatar os fatos, conforme o jornal de Barcelona, acrescenta:
Eis o repugnante espetáculo, autorizado pelos homens da união liberal, em pleno século dezenove: uma fogueira em La Coruña, outra em Barcelona, e ainda muitas outras, que não faltarão, em outros lugares. É o que deve acontecer, pois é uma consequência imediata do espírito geral que domina o atual estado de coisas e que em tudo se reflete. Reação no interior, relativa aos projetos de lei apresentados; reação no exterior, apoiando todos os governos reacionários da Itália, antes e depois de sua queda, combatendo as ideias liberais em todas as ocasiões, buscando por todos os lados o apoio da reação, obtido ao preço das mais desastradas concessões.
Seguem-se longas considerações, referentes aos sintomas e às consequências deste ato, mas que, pelo seu caráter eminentemente político, não são da competência do nosso jornal.
O Diário de Barcelona, jornal ultramontano, foi o primeiro a anunciar o auto-de-fé, dizendo:
Os títulos dos livros queimados bastavam para justificar a sua condenação; que é direito e dever da Igreja fazer respeitar a sua autoridade, tanto mais quanto se dá carta branca à liberdade de imprensa, principalmente nos países que desfrutam da terrível chaga da liberdade de cultos.
La Coruña, jornal de Barcelona, fez a respeito as seguintes reflexões:
Esperávamos que nosso colega (El Diário), que tinha dado a notícia, tivesse a bondade de satisfazer a curiosidade do público, seriamente alarmado por semelhante ato, incrível nos tempos em que vivemos; mas foi em vão que esperamos as suas explicações. Desde então temos sido assaltados por perguntas sobre esse acontecimento, e somos obrigados a dizer que os amigos do governo com isso sofrem mais penas do que os que lhe fazem oposição.
Com vistas a satisfazer a curiosidade tão vivamente excitada, pusemo-nos em busca da verdade; infelizmente o fato é verdadeiro. O auto-de-fé foi celebrado nas seguintes circunstâncias:
Os expedientes empregados para chegar a esse resultado não poderiam ter sido mais diligentes nem mais eficazes.
Apresentaram ao controle da Alfândega os livros supracitados.
Responderam ao comissário que não podiam ser expedidos sem uma licença do senhor bispo. O senhor bispo estava ausente; quando retornou, apresentaram-lhe um exemplar de cada obra; depois de as haver lido ou mandado ler por pessoas de sua confiança, conformando-se com o julgamento de sua consciência, ordenou que fossem lançados ao fogo, como imorais e contrários à fé católica. Reclamaram contra tal sentença e pediram ao governo, já que não permitiam a circulação de tais livros na Espanha, que pelo menos fosse permitido ao seu proprietário reexpedi-los ao lugar de procedência; mas até isto foi recusado, sob a alegação de que, sendo contrários à moral e à fé católica, o governo não podia consentir que esses livros fossem perverter a moral e a religião de outros países.
Malgrado isto, o proprietário foi obrigado a pagar os direitos que, parece, não deveriam ser exigidos. Uma grande multidão assistiu ao auto-de-fé, o que não é de admirar, se se levar em conta a hora e o local da execução e, sobretudo, o inusitado do espetáculo. O efeito produzido sobre os assistentes foi de estupefação entre alguns, de riso em outros e de indignação no maior número, à medida que se davam conta do que se passava. Palavras de ódio saíram de várias bocas, vindo depois as piadas, os ditos grotescos e mordazes dos que viam com extremo prazer a cegueira de certos homens. Nisto têm razão, porque nesta reação, digna do tempo da Inquisição, entreveem o mais rápido triunfo de suas ideias; zombavam para que essa cerimônia não aumentasse o prestígio da autoridade que, com tanta complacência, se presta a exigências verdadeiramente ridículas. Quando esfriaram as cinzas dessa nova fogueira, observou-se que as pessoas presentes, ou que passavam nas cercanias, instruídas do fato, dirigiam-se para o local do auto-de-fé, ali recolhendo uma parte das cinzas.
Tal é o relato dos acontecimentos, que não deixam de provocar comentários entre as pessoas que se encontram.
Indignam-se, lamentam, alegram-se ou se regozijam, conforme a maneira de interpretar as coisas. Os partidários sinceros da paz, do princípio de autoridade e da religião se afligem com essas demonstrações reacionárias, porque compreendem que às reações se sucedem as revoluções, e porque sabem que os que semeiam vento só podem colher tempestades. Os liberais sinceros se indignam que semelhantes espetáculos sejam dados ao mundo por homens que não compreendem a religião sem intolerância, querendo impô-la como Maomé impunha o Alcorão.
Agora, abstração feita da qualificação dada aos livros queimados, examinaremos o fato em si. Pode a jurisprudência admitir que um bispo diocesano tenha uma autoridade sem apelo e possa impedir a publicação e a circulação de um livro? Dirão que a lei de imprensa assinala o que deve ser feito neste caso. Mas diz a lei que se os livros forem maus e perniciosos, serão lançados ao fogo com tal aparato? Nela não encontramos nenhum artigo que possa justificar um ato semelhante. Além disso, os livros em questão foram publicamente declarados. Um comissário declara livros à alfândega, porque poderiam estar arrolados na categoria dos assinalados no artigo 6; passam a censura diocesana, o governo poderia proibir-lhes a circulação e a coisa estava acabada. Os sacerdotes deveriam limitar-se a aconselhar aos seus fiéis a abstenção de tal ou qual leitura, caso a julgassem contrária à moral e à religião; mas não se lhes deveria conceder um poder absoluto, que os torna juízes e carrascos. Não vamos emitir nenhuma opinião sobre o valor das obras queimadas; o que visamos é o fato, suas tendências, o espírito que ele revela. Doravante, em que diocese deixariam de usar, se não de abusar, de uma faculdade que em nossa opinião o próprio governo não tem, se em Barcelona, na liberal Barcelona, o fazem? O absolutismo é muito sagaz; ensaia se pode dar um golpe de autoridade em alguma parte; se vencer, ousa mais. Esperemos, todavia, que os esforços do absolutismo sejam inúteis e que todas as concessões que lhe façam não tenham outro resultado senão desmascarar o partido que, repetindo cenas como as de quinta-feira última, se precipite cada vez mais no abismo para onde corre obstinadamente. É o que nos leva a esperar o efeito produzido pelo auto-de-fé em Barcelona.
 
SOBRE O AUTO-DE-FÉ DE BARCELONA[2]
O amor da verdade deve sempre fazer-se ouvir: ela rompe o véu e brilha ao mesmo tempo por toda parte. O Espiritismo tornou-se conhecido de todos; logo será julgado e posto em prática. Quanto mais perseguições houver, tanto mais depressa esta sublime doutrina alcançará o apogeu. Seus mais cruéis inimigos, os inimigos do Cristo e do progresso, atuam de maneira que ninguém possa ignorar a permissão de Deus, dada àqueles que deixaram esta Terra de exílio, de voltarem aos que amaram.
Ficai certos: as fogueiras apagar-se-ão por si mesmas; e se os livros são lançados ao fogo, o pensamento imortal lhes sobrevive.
Dollet
Nota – Este Espírito, tendo se manifestado espontaneamente, disse ser o de um antigo livreiro do século dezesseis.
 OUTRA
Era necessário que algo ferisse violentamente certos Espíritos encarnados, a fim de que se decidissem a ocupar-se desta grande doutrina que vai regenerar o mundo. Nada é feito inutilmente em vossa Terra. Nós, que inspiramos o auto-de-fé de Barcelona, sabíamos perfeitamente que assim agindo daríamos um grande passo à frente. Esse fato brutal, inacreditável nos tempos atuais, foi consumado com vistas a chamar a atenção dos jornalistas que se mantinham indiferentes diante da profunda agitação que tomava conta das cidades e dos centros espíritas. Eles deixavam dizer e fazer, mas, obstinados, faziam ouvidos de mercador, respondendo pelo mutismo ao desejo de propaganda dos adeptos do Espiritismo. Queiram ou não, é preciso que hoje falem; uns, constatando o histórico do caso de Barcelona, outros o desmentindo, ensejaram uma polêmica que fará a volta ao mundo e da qual só o Espiritismo aproveitará. Eis por que hoje a retaguarda da Inquisição praticou o seu último auto-de-fé, porque assim o quisemos.
São Domingos
 




[1] Revista Espírita – Dezembro/1861 – Allan Kardec
[2] Revista Espírita – Novembro/1861 – Allan Kardec

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