Os jornais espanhóis não foram
tão sóbrios de reflexões quanto os jornais franceses sobre esse acontecimento.
Seja qual for a opinião que se
professe em relação às ideias espíritas, há no fato em si algo de tão estranho
para o tempo em que vivemos, que mais excita piedade do que cólera contra gente
que parece ter dormido durante vários séculos e haver despertado sem consciência
do caminho que a Humanidade percorreu, julgando-se ainda no ponto de partida.
Eis um extrato do artigo em
questão, publicado por Las Novedades,
um dos grandes jornais de Madrid:
O auto-de-fé celebrado há
alguns meses em La Coruña, em que foi queimado grande número de livros à porta
de uma igreja, tinha produzido no nosso e no espírito de todos os homens de ideias
liberais uma impressão muito triste. Mas é com indignação ainda bem maior que
foi recebida em toda a Espanha a notícia do segundo auto-de-fé em Barcelona,
nesta capital civilizada da Catalunha, em meio a uma população essencialmente
liberal, à qual sem dúvida fizeram este bárbaro insulto, porque nela reconhecem
grandes qualidades.
Depois de relatar os fatos,
conforme o jornal de Barcelona, acrescenta:
Eis o repugnante
espetáculo, autorizado pelos homens da união liberal, em pleno século dezenove:
uma fogueira em La Coruña, outra em Barcelona, e ainda muitas outras, que não faltarão,
em outros lugares. É o que deve acontecer, pois é uma consequência imediata do
espírito geral que domina o atual estado de coisas e que em tudo se reflete.
Reação no interior, relativa aos projetos de lei apresentados; reação no
exterior, apoiando todos os governos reacionários da Itália, antes e depois de
sua queda, combatendo as ideias liberais em todas as ocasiões, buscando por todos
os lados o apoio da reação, obtido ao preço das mais desastradas concessões.
Seguem-se longas considerações,
referentes aos sintomas e às consequências deste ato, mas que, pelo seu caráter
eminentemente político, não são da competência do nosso jornal.
O Diário de Barcelona, jornal ultramontano, foi o primeiro a anunciar
o auto-de-fé, dizendo:
Os títulos dos livros queimados
bastavam para justificar a sua condenação; que é direito e dever da Igreja
fazer respeitar a sua autoridade, tanto mais quanto se dá carta branca à
liberdade de imprensa, principalmente nos países que desfrutam da terrível
chaga da liberdade de cultos.
La Coruña, jornal de Barcelona, fez a respeito as seguintes
reflexões:
Esperávamos que nosso
colega (El Diário), que tinha dado a
notícia, tivesse a bondade de satisfazer a curiosidade do público, seriamente
alarmado por semelhante ato, incrível nos tempos em que vivemos; mas foi em vão
que esperamos as suas explicações. Desde então temos sido assaltados por
perguntas sobre esse acontecimento, e somos obrigados a dizer que os amigos do
governo com isso sofrem mais penas do que os que lhe fazem oposição.
Com vistas a satisfazer a
curiosidade tão vivamente excitada, pusemo-nos em busca da verdade;
infelizmente o fato é verdadeiro. O auto-de-fé foi celebrado nas seguintes
circunstâncias:
Os expedientes empregados para chegar a esse resultado não poderiam ter
sido mais diligentes nem mais eficazes.
Apresentaram ao controle da
Alfândega os livros supracitados.
Responderam ao comissário que
não podiam ser expedidos sem uma licença do senhor bispo. O senhor bispo estava
ausente; quando retornou, apresentaram-lhe um exemplar de cada obra; depois de
as haver lido ou mandado ler por pessoas de sua confiança, conformando-se com o
julgamento de sua consciência, ordenou que fossem lançados ao fogo, como
imorais e contrários à fé católica. Reclamaram contra tal sentença e pediram ao
governo, já que não permitiam a circulação de tais livros na Espanha, que pelo
menos fosse permitido ao seu proprietário reexpedi-los ao lugar de procedência;
mas até isto foi recusado, sob a alegação de que, sendo contrários à moral e à
fé católica, o governo não podia consentir que esses livros fossem perverter a
moral e a religião de outros países.
Malgrado isto, o proprietário
foi obrigado a pagar os direitos que, parece, não deveriam ser exigidos. Uma
grande multidão assistiu ao auto-de-fé, o que não é de admirar, se se levar em
conta a hora e o local da execução e, sobretudo, o inusitado do espetáculo. O
efeito produzido sobre os assistentes foi de estupefação entre alguns, de riso
em outros e de indignação no maior número, à medida que se davam conta do que
se passava. Palavras de ódio saíram de várias bocas, vindo depois as piadas, os
ditos grotescos e mordazes dos que viam com extremo prazer a cegueira de certos
homens. Nisto têm razão, porque nesta reação, digna do tempo da Inquisição, entreveem
o mais rápido triunfo de suas ideias; zombavam para que essa cerimônia não
aumentasse o prestígio da autoridade que, com tanta complacência, se presta a
exigências verdadeiramente ridículas. Quando esfriaram as cinzas dessa nova
fogueira, observou-se que as pessoas presentes, ou que passavam nas cercanias,
instruídas do fato, dirigiam-se para o local do auto-de-fé, ali recolhendo uma
parte das cinzas.
Tal é o relato dos acontecimentos,
que não deixam de provocar comentários entre as pessoas que se encontram.
Indignam-se, lamentam,
alegram-se ou se regozijam, conforme a maneira de interpretar as coisas. Os
partidários sinceros da paz, do princípio de autoridade e da religião se afligem
com essas demonstrações reacionárias, porque compreendem que às reações se
sucedem as revoluções, e porque sabem que os que semeiam vento só podem colher
tempestades. Os liberais sinceros se indignam que semelhantes espetáculos sejam
dados ao mundo por homens que não compreendem a religião sem intolerância,
querendo impô-la como Maomé impunha o Alcorão.
Agora, abstração feita da
qualificação dada aos livros queimados, examinaremos o fato em si. Pode a
jurisprudência admitir que um bispo diocesano tenha uma autoridade sem apelo e possa
impedir a publicação e a circulação de um livro? Dirão que a lei de imprensa
assinala o que deve ser feito neste caso. Mas diz a lei que se os livros forem
maus e perniciosos, serão lançados ao fogo com tal aparato? Nela não
encontramos nenhum artigo que possa justificar um ato semelhante. Além disso,
os livros em questão foram publicamente declarados. Um comissário declara livros
à alfândega, porque poderiam estar arrolados na categoria dos assinalados no
artigo 6; passam a censura diocesana, o governo poderia proibir-lhes a
circulação e a coisa estava acabada. Os sacerdotes deveriam limitar-se a
aconselhar aos seus fiéis a abstenção de tal ou qual leitura, caso a julgassem
contrária à moral e à religião; mas não se lhes deveria conceder um poder
absoluto, que os torna juízes e carrascos. Não vamos emitir nenhuma opinião sobre
o valor das obras queimadas; o que visamos é o fato, suas tendências, o
espírito que ele revela. Doravante, em que diocese deixariam de usar, se não de
abusar, de uma faculdade que em nossa opinião o próprio governo não tem, se em
Barcelona, na liberal Barcelona, o fazem? O absolutismo é muito sagaz; ensaia
se pode dar um golpe de autoridade em alguma parte; se vencer, ousa mais.
Esperemos, todavia, que os esforços do absolutismo sejam inúteis e que todas as
concessões que lhe façam não tenham outro resultado senão desmascarar o partido
que, repetindo cenas como as de quinta-feira última, se precipite cada vez mais
no abismo para onde corre obstinadamente. É o que nos leva a esperar o efeito produzido
pelo auto-de-fé em Barcelona.
O amor da verdade deve
sempre fazer-se ouvir: ela rompe o véu e brilha ao mesmo tempo por toda parte.
O Espiritismo tornou-se conhecido de todos; logo será julgado e posto em
prática. Quanto mais perseguições houver, tanto mais depressa esta sublime
doutrina alcançará o apogeu. Seus mais cruéis inimigos, os inimigos do Cristo e
do progresso, atuam de maneira que ninguém possa ignorar a permissão de Deus,
dada àqueles que deixaram esta Terra de exílio, de voltarem aos que amaram.
Ficai certos: as fogueiras
apagar-se-ão por si mesmas; e se os livros são lançados ao fogo, o pensamento
imortal lhes sobrevive.
Dollet
Nota – Este Espírito,
tendo se manifestado espontaneamente, disse ser o de um antigo livreiro do
século dezesseis.
Era necessário que algo
ferisse violentamente certos Espíritos encarnados, a fim de que se decidissem a
ocupar-se desta grande doutrina que vai regenerar o mundo. Nada é feito inutilmente
em vossa Terra. Nós, que inspiramos o auto-de-fé de Barcelona, sabíamos
perfeitamente que assim agindo daríamos um grande passo à frente. Esse fato
brutal, inacreditável nos tempos atuais, foi consumado com vistas a chamar a
atenção dos jornalistas que se mantinham indiferentes diante da profunda
agitação que tomava conta das cidades e dos centros espíritas. Eles deixavam dizer
e fazer, mas, obstinados, faziam ouvidos de mercador, respondendo pelo mutismo
ao desejo de propaganda dos adeptos do Espiritismo. Queiram ou não, é preciso
que hoje falem; uns, constatando o histórico do caso de Barcelona, outros o desmentindo,
ensejaram uma polêmica que fará a volta ao mundo e da qual só o Espiritismo
aproveitará. Eis por que hoje a retaguarda da Inquisição praticou o seu último
auto-de-fé, porque assim o quisemos.
São Domingos
[1] Revista
Espírita – Dezembro/1861 – Allan Kardec
[2] Revista
Espírita – Novembro/1861 – Allan Kardec
Nenhum comentário:
Postar um comentário