Allan Kardec
(Por monsenhor Freyssinous, bispo de
Hermópolis)
Em resposta à opinião que
atribui a uma astúcia do demônio as transformações morais operadas pelo ensino
dos Espíritos, temos dito muitas vezes que o diabo seria muito pouco hábil se,
para chegar a perder o homem, começasse por o tirar do atoleiro da
incredulidade e o reconduzisse a Deus; que esta seria a conduta de um tolo e de
um simplório. A isto objetam que é precisamente aí que está a obra-prima da
malícia desse inimigo de Deus e dos homens. Confessamos não compreender a
malícia.
Um dos nossos correspondentes
nos dirige, em apoio ao nosso raciocínio, as palavras que seguem, de monsenhor
Freyssinous, bispo de Hermópolis, tiradas de suas Conferências sobre a religião, tomo II, página 341; Paris – 1825.
Se Jesus-Cristo
tivesse operado seus milagres pela virtude do demônio, o demônio teria
trabalhado para destruir o seu império e teria empregado seu poder contra si
mesmo. Certamente, um demônio que procurasse destruir o reino do vício para
estabelecer o da virtude, seria um demônio singular. Eis por que Jesus, para
repelir a absurda acusação dos judeus, lhes dizia: Se opero prodígios em nome do demônio, então o demônio está dividido
consigo mesmo; ele procura, pois, destruir-se, resposta que não sofre
réplica.
Obrigado ao nosso correspondente
pelo obséquio de nos assinalar esta importante passagem, da qual nossos
leitores saberão aproveitar oportunamente. Obrigado, também, a todos os que nos
transmitem o que encontram, em suas leituras, de interessante para a doutrina.
Nada é perdido.
Como se vê, nem todos os
eclesiásticos professam, sobre a doutrina demoníaca, opiniões tão absolutas
quanto as de certos membros do clero. Nestas matérias, o monsenhor de
Hermópolis é uma autoridade cujo valor não poderiam recusar. Seus argumentos
são precisamente os mesmos que os espíritas opõem aos que atribuem ao demônio
os bons conselhos que recebem dos Espíritos. Com efeito, que fazem os
Espíritos, senão destruir o reino do vício para estabelecer o da virtude?
Reconduzir a Deus os que o desconhecem e o negam? Se tal fosse a obra do
demônio, ele agiria como um ladrão profissional, que restituísse o que tinha
roubado e induzisse os outros ladrões a se tornarem honestos. Então deveria ser
cumprimentado por sua transformação. Sustentar a cooperação voluntária do Espírito do mal para
produzir o bem, não só é um contra-senso, mas é renegar a mais alta autoridade cristã:
a do Cristo.
Que os fariseus do tempo de
Jesus tivessem acreditado nisto de boa-fé, podia conceber-se, porque então não
se era mais esclarecido sobre a natureza de Satã do que sobre a de Deus, e que
entrava na teogonia[2]
dos judeus deles fazer dois grandes rivais. Mas hoje uma tal doutrina é tão
inadmissível quanto a que atribuía a Satã certas invenções industriais, como a
imprensa, por exemplo. Os mesmos que a defendem talvez sejam os últimos a nela
crer; já cai no ridículo e não amedronta a ninguém; em pouco tempo ninguém
ousará mais invocá-la seriamente.
A Doutrina Espírita não admite
poder rival ao de Deus, e ainda menos poderia admitir que um ser decaído,
precipitado por Deus no abismo, pudesse ter recuperado bastante poder para
contrabalançar os seus desígnios, o que tiraria de Deus a sua onipotência.
Segundo esta doutrina, Satã é a personificação
alegórica do mal, como entre os pagãos Saturno era a personificação do
tempo, Marte a da guerra, Vênus a da beleza.
Os Espíritos que se manifestam
são as almas dos homens e no número os há, como entre os homens, bons e
perversos, adiantados e atrasados; os bons dizem boas coisas, dão bons
conselhos; os perversos os dão maus, inspiram maus pensamentos e fazem o mal
como o faziam na Terra. Vendo a maldade, a velhacaria, a ingratidão, a
perversidade de certos homens, reconhece-se que não valem mais que os piores
Espíritos; mas, encarnados ou desencarnados, esses Espíritos maus um dia
chegarão a se melhorar, quando tiverem sido tocados pelo arrependimento.
Comparai uma e outra doutrina, e
vereis qual a mais racional, a mais respeitosa para com a divindade.
[1] Revista Espírita
– Fevereiro/1867 – Allan Kardec
[2] Teogonia - genealogia e filiação dos deuses; conjunto
de divindades cujo culto constitui o sistema religioso de um povo politeísta;
poema de Hesíodo de mais de 10 000 versos, acerca da genealogia dos deuses. (https://dicionario.priberam.org/teogonia [consultado em 18-0 4-2021].
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