terça-feira, 13 de abril de 2021

AS TRÊS FILHAS DA BÍBLIA[1]

 

Allan Kardec

 

Sob este título, o Sr. Hippolyte Rodrigues publicou uma obra, na qual prevê a fusão das três grandes religiões oriundas da Bíblia. Um dos escritores do jornal Le Pays faz a respeito as reflexões seguintes, no número de 10 de dezembro de 1866:

 

Quais são as três filhas da Bíblia? A primeira é judia, a segunda é católica, a terceira é maometana.

“Compreende-se logo que se trata de um livro importante e que a obra do Sr. Hippolyte Rodrigues interessa especialmente os espíritos sérios, que se comprazem nas meditações morais e filosóficas sobre o destino humano.

O autor crê numa próxima fusão das três grandes religiões, que chama as três filhas da Bíblia, e trabalha para levar a este resultado, no qual vê um progresso imenso. É desta fusão que sairá a religião nova, que ele considera como devendo ser a religião definitiva da Humanidade.

 Não quero aqui encetar com o Sr. Hippolyte Rodrigues uma polêmica inoportuna sobre a questão religiosa, que se agita desde tantos anos no fundo das consciências e nas entranhas da sociedade. Permitir-me-ei, contudo, uma reflexão. Ele quer que a crença nova seja aceita pelo raciocínio. Até hoje não há senão a fé que fundou e manteve as religiões, por esta razão suprema: quando se raciocina, não se crê mais, e quando um povo, uma época cessou de crer, logo se vê desmoronar-se a religião existente, mas não se vê surgir uma religião nova.

A. de Césena

 

Essa tendência, que se generaliza, de prever a unificação dos cultos, como tudo que se liga à fusão dos povos, à diminuição das barreiras que os separam moralmente e comercialmente, é também um dos sinais característicos dos tempos. Não julgaremos a obra do Sr. Rodrigues, já que não a conhecemos; também não há por que examinar, no momento, as circunstâncias pelas quais poderá ser atingido o resultado que ele espera, e que considera, com toda razão, como um progresso.

Queremos apenas apresentar algumas observações sobre o artigo acima.

O autor labora em grande erro ao dizer que quando se raciocina não se crê mais. Nós dizemos, ao contrário, que quando se raciocina sua crença, crê-se mais firmemente, porque se compreende. É em virtude desse princípio que dissemos: Fé inabalável só o é a que pode encarar frente a frente a razão, em todas as épocas da Humanidade.

O erro da maior parte das religiões é ter erigido, como dogma absoluto, o princípio da fé cega, e de ter, em favor desse princípio, que aniquila a ação da inteligência, feito aceitar, durante algum tempo, crenças que os progressos ulteriores da Ciência vieram contradizer. Disto resultou, em grande número de pessoas, a prevenção de que toda crença religiosa é incapaz de suportar o livre-exame, confundindo, numa reprovação geral, o que não passava de casos particulares. Esta maneira de julgar as coisas não é mais racional do que se se condenasse todo um poema, porque encerra alguns versos incorretos, mas é mais cômoda para os que em nada querem crer, porque, rejeitando tudo, se julgam livres para nada examinar.

O autor comete outro erro capital ao dizer: Quando um povo, uma época cessou de crer, logo se vê desmoronar-se a religião existente, mas não se vê surgir uma religião nova. Onde ele viu na História, um povo, uma época sem religião?

A maior parte das religiões surgiu nos tempos recuados, quando os conhecimentos científicos eram muito limitados ou nulos. Erigiram como crenças noções erradas, que só o tempo podia retificar. Infelizmente, todas se fundaram sobre o princípio da imutabilidade, e como quase todas confundiram, num mesmo código, a lei civil e a lei religiosa, disso resultou que, em dado momento, tendo avançado o espírito humano, enquanto as religiões ficaram estacionárias, estas não mais se encontraram à altura das ideias novas. Então caem pela força das coisas, como caem as leis, os costumes sociais, os sistemas políticos que não podem corresponder às necessidades novas. Mas como as crenças religiosas são instintivas no homem e constituem, para o coração e para o espírito, uma necessidade tão imperiosa quanto a legislação civil para a ordem social, não se aniquilam: transformam-se.

A transição jamais se opera de maneira brusca, mas pela mistura temporária das ideias antigas e das ideias novas; é, de início, uma fé mista, que participa de umas e de outras; pouco a pouco a velha crença se extingue, a nova cresce, até que a substituição seja completa. Por vezes a transformação é apenas parcial; então são seitas que se separam da religião-mãe, modificando alguns pontos de detalhe. Foi assim que o Cristianismo sucedeu ao paganismo, que o Islamismo sucedeu ao fetichismo árabe, que o protestantismo, a religião grega se separaram do catolicismo. Por toda parte veem-se os povos não deixar uma crença senão para tomar outra, apropriada ao seu adiantamento moral e intelectual; mas em parte alguma há solução de continuidade.

É verdade que hoje se vê a incredulidade absoluta fazer-se passar por doutrina e ser professada por algumas seitas filosóficas; mas seus representantes, que constituem uma ínfima minoria na população inteligente, erram por se julgarem todo um povo, toda uma época e, porque não querem mais religião, imaginam que sua opinião pessoal é a medida dos tempos religiosos, quando não passa de uma transição parcial a outra ordem de ideias.



[1] Revista Espírita – Fevereiro/1867 – Allan Kardec

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