Por Camille Flammarion
Senhores:
Aceitando com deferência o
convite simpático dos amigos do pensador laborioso cujo corpo terreno jaz agora
aos nossos pés, vem-me à mente um dia sombrio do mês de dezembro de 1865, em
que pronunciei palavras de supremo adeus junto à tumba do fundador da Livraria
Acadêmica, do honrado Didier, que, como editor, foi colaborador convicto de
Allan Kardec, na publicação das obras fundamentais de uma doutrina que lhe era
cara.
Também ele morreu subitamente,
como se o céu houvesse querido poupar a esses dois Espíritos íntegros do
embaraço fisiológico de sair desta vida por via diferente da comumente seguida.
A mesma reflexão se aplica à morte do nosso ex-colega Jobard, de Bruxelas.
Hoje, maior ainda é a minha
tarefa, porquanto eu desejara figurar à mente dos que me ouvem e à das milhões
de criaturas que na Europa inteira e no Novo Mundo se têm ocupado com o problema
ainda misterioso dos fenômenos chamados espíritas; — eu quisera, digo, poder
figurar-lhes o interesse científico e o porvir filosófico do estudo desses
fenômenos, ao qual se hão consagrado, como ninguém ignora, homens eminentes
dentre os nossos contemporâneos. Estimaria fazer-lhes entrever os horizontes
desconhecidos que a mente humana verá rasgar-se diante de si, à medida que ela
ampliar o conhecimento positivo das forças naturais que em torno de nós atuam;
mostrar-lhes que essas comprovações constituem o mais eficaz antídoto para a
lepra do ateísmo, de que parece atacada, principalmente a nossa época de
transição; dar, enfim, aqui, testemunho público do eminente serviço que o autor
de O Livro dos Espíritos prestou à
filosofia, chamando a atenção e provocando discussões sobre fatos que até então
pertenciam ao domínio mórbido e funesto das superstições religiosas.
Seria, com efeito, um ato
importante firmar aqui, junto deste túmulo eloquente, que o metódico exame dos
fenômenos erroneamente qualificados de supranormais, longe de renovar o
espírito de superstição e de enfraquecer a energia da razão, ao contrário,
afasta os erros e as ilusões da ignorância e serve melhor ao progresso , do que
as negações ilegítimas dos que não querem dar-se ao trabalho de ver. Mas, este
não é lugar apropriado a estabelecer uma arena às discussões desrespeitosas.
Deixemos apenas que das nossas
mentes desçam, sobre a face impassível do homem ora estendido diante de nós,
testemunhos de afeição e sentimentos de pesar, que lhe permaneçam ao derredor
em seu túmulo, qual embalsamamento do coração! E, pois que sabemos que sua alma
eterna sobrevive a estes despojos mortais, do mesmo modo que a eles preexistiu;
pois que sabemos que laços indestrutíveis unem o nosso mundo visível ao mundo
invisível; pois que esta alma existe hoje tão bem como há três dias e que não é
impossível se ache atualmente na minha presença; digamos-lhe que não quisemos
se desvanecesse a sua imagem terrena encerrada no sepulcro, sem unanimemente
rendermos homenagem a seus trabalhos e à sua memória, sem pagar um tributo de
reconhecimento à sua encarnação terrena, tão útil e tão dignamente preenchida.
Traçarei, primeiro, num esboço
rápido, as linhas principais da sua carreira literária. Morto na idade de 65
anos, Allan Kardec consagrara a primeira parte de sua vida a escrever obras
clássicas, elementares, destinadas, sobretudo, ao uso dos educadores da
mocidade. Quando, pelo ano de 1855, as manifestações, novas na aparência, das
mesas girantes, das pancadas sem causa ostensiva, dos movimentos insólitos de
objetos e móveis começaram a prender a atenção pública, determinando mesmo, nós
de imaginação aventureira, uma espécie de febre, devida à novidade de tais
experiências, Allan Kardec, estudando ao mesmo tempo o magnetismo e seus
singulares efeitos, acompanhou com a maior paciência e clarividência judiciosa
as experimentações e as tentativas numerosas que então se faziam em Paris.
Recolheu e pôs em ordem os resultados conseguidos dessa longa observação e com
eles compôs o corpo de doutrina que publicou em 1857, na primeira edição de O Livro dos Espíritos. Todos sabeis que
êxito alcançou essa obra, na França e no estrangeiro. Havendo atingido a 16ª
edição, tem espalhado em todas as classes esse corpo de doutrina elementar que,
na sua essência, não é absolutamente novo, porquanto a escola de Pitágoras, na
Grécia, e a dos druidas, em a nossa pobre Gália, ensinavam os seus princípios
fundamentais, mas que agora reveste uma forma de verdadeira atualidade, pelo
corresponder aos fenômenos. Depois dessa primeira obra apareceram,
sucessivamente, O Livro dos Médiuns,
ou Espiritismo experimental; O que é o Espiritismo? Ou resumo sob a
forma de perguntas e respostas; O
Evangelho segundo o Espiritismo; O
Céu e o Inferno; A Gênese. A morte
o surpreendeu no momento em que, com a sua infatigável atividade, trabalhava
noutra sobre as relações entre o Magnetismo e o Espiritismo. Pela Revista Espírita e pela Sociedade de
Paris, cujo presidente ele era, se constituíra, de certo modo, o centro a que
tudo ia ter, o traço de união de todos os experimentadores. Faz alguns meses,
sentindo próximo o seu fim, preparou as condições de vitalidade de tais estudos
para depois de sua morte e instituiu a Comissão Central que lhe sucede.
Suscitou rivalidades; fez escola de feição um pouco pessoal, havendo ainda
alguns dissídios entre os “espiritualistas” e os “espíritas”. Doravante,
Senhores (tal, pelo menos, o voto que formulam os amigos da verdade), devemos
unir-nos todos por uma solidariedade fraterna, pelos mesmos esforços em prol da
elucidação do problema, pelo desejo geral e impessoal do verdadeiro e do bem.
Disseram, Senhores, do digno amigo a quem rendemos hoje as derradeiras
homenagens, que ele não era o que se chama um sábio, que não fora, primeiro, físico,
naturalista, ou astrônomo e que preferira constituir um corpo de doutrina
moral, antes de haver submetido à discussão científica a realidade e a natureza
dos fenômenos.
Talvez, Senhores, se deva
preferir que as coisas tenham começado assim.
Nem sempre se deve recusar valor
ao sentimento. Quantos corações já foram consolados por esta crença religiosa!
Quantas lágrimas hão secado!
Quantas consciências se abriram
às irradiações da beleza espiritual! Nem toda a gente é ditosa neste mundo.
Muitas afeições aí são despedaçadas!
Muitas almas têm adormecido no
cepticismo! Então, nada é o haver trazido ao espiritualismo tantos seres que
flutuavam na dúvida e que já não amavam a vida, nem a vida física, nem a
intelectual?
Fora Allan Kardec um homem de
ciência e de certo não houvera podido prestar este primeiro serviço e dilatá-lo
até muito longe, como um convite a todos os corações. Ele, porém, era o que eu
denominarei simplesmente “o bom-senso encarnado”. Razão reta e judiciosa,
aplicava sem cessar à sua obra permanente as indicações íntimas do senso comum.
Não era essa uma qualidade
somenos, na ordem de coisas com que nos ocupamos. Era, ao contrário, pode-se
afirmá-lo, a primeira de todas e a mais preciosa, sem a qual a obra não teria
podido tornar-se popular, nem lançar pelo mundo suas raízes imensas. A maioria
dos que se têm dado a estes estudos lembram-se de que na mocidade, ou em certas
circunstâncias, foram testemunhas de manifestações inexplicadas. Poucas são as
famílias que não contem na sua história provas desta natureza. O ponto de
partida era aplicar-lhes a razão firme do simples bom-senso e examiná-las
segundo os princípios do método positivo. Conforme o seu próprio organizador
previu, esse estudo, que foi lento e difícil, tem que entrar agora num período
científico. Os fenômenos físicos, sobre os quais a princípio não se insistia,
hão de tornar-se objeto da crítica experimental, a que devemos a glória dos
progressos modernos e as maravilhas da eletricidade e do vapor. Esse método tem
de tomar os fenômenos de ordem misteriosa a que assistimos para os dissecar,
medir e definir. Porque, meus Senhores, o Espiritismo não é uma religião, mas
uma ciência, da qual apenas conhecemos o abecê. Passou o tempo dos dogmas. A
Natureza abrange o Universo, e o próprio Deus, feito outrora à imagem do homem,
a moderna Metafísica não o pode considerar senão como um espírito na Natureza.
O sobrenatural não existe. As manifestações obtidas com o auxílio dos médiuns,
como as do magnetismo e do sonambulismo, são de ordem natural e devem ser
severamente submetidas à verificação da experiência. Não há milagres.
Assistimos ao alvorecer de uma ciência desconhecida. Quem poderá prever a que
consequências conduzirá, no mundo do pensamento, o estudo positivo desta nova
psicologia?
Doravante, o mundo é regido pela
ciência e, Senhores, não virá fora de propósito, neste discurso fúnebre,
assinalar-lhe a obra atual e as induções novas que ela nos patenteia,
precisamente do ponto de vista das nossas pesquisas. Que os que têm a vista
restringida pelo orgulho ou pelo preconceito não compreendam absolutamente os
anseios de nossas mentes ávidas de conhecer e lancem sobre este gênero de
estudos seus sarcasmos ou anátemas, pouco importa. Colocamos mais alto as
nossas contemplações!... Foste o primeiro, oh! Mestre e amigo! Foste o primeiro
a dar, desde o princípio da minha carreira astronômica, testemunho de viva
simpatia às minhas deduções relativas à existência das humanidades celestes,
pois, tomando do livro sobre a “Pluralidade dos Mundos Habitados”, o puseste
imediatamente na base do edifício doutrinário com que sonhavas. Muito amiúde
conversávamos sobre essa vida celeste tão misteriosa; agora, oh! Alma, sabes,
por visão direta, em que consiste a vida espiritual a que voltaremos e que
esquecemos durante a existência na Terra.
Voltaste a esse mundo donde
viemos e colhes o fruto de teus estudos terrestres. Aos nossos pés dorme o teu
envoltório, extinguiu-se o teu cérebro, fecharam-se-te os olhos para não mais
se abrirem, não mais ouvida será a tua palavra... Sabemos que todos havemos de
mergulhar nesse mesmo último sono, de volver a essa mesma inércia, a esse mesmo
pó. Mas, não é nesse envoltório que pomos a nossa glória e a nossa esperança.
Tomba o corpo, a alma permanece e retorna ao Espaço. Encontrar-nos-emos num
mundo melhor e no céu imenso onde usaremos das nossas mais preciosas
faculdades, onde continuaremos os estudos para cujo desenvolvimento a Terra é
teatro por demais acanhado.
É-nos mais grato saber esta
verdade, do que acreditar que jazes todo inteiro nesse cadáver e que tua alma
se haja aniquilado com a cessação do funcionamento de um órgão. A imortalidade
é a luz da vida, como este refulgente Sol é a luz da Natureza.
Até à vista, meu caro Allan
Kardec, até à vista.