terça-feira, 25 de agosto de 2020

O ESPIRITISMO OBRIGA[1]

 

Allan Kardec

 

(Paris, abril de 1866 – Médium: Sra. B...)

 

O Espiritismo é uma ciência essencialmente moral. Desde logo, os que se dizem seus adeptos não podem, sem cometer uma grave inconsequência, subtrair-se às obrigações que ele impõe.

Essas obrigações são de duas sortes:

A primeira concerne ao indivíduo que, ajudado pelas claridades intelectuais que a doutrina espalha, pode compreender melhor o valor da cada um de seus atos, sondar melhor todos os refolhos de sua consciência, apreciar melhor a infinita bondade de Deus, que não quer a morte do pecador, mas que se converta e viva; e, para lhe deixar a possibilidade de erguer-se de suas quedas, deu-lhe uma longa série de existências sucessivas, em cada uma das quais, levando a pena de suas faltas passadas, pode adquirir novos conhecimentos e novas forças, fazendo-o evitar o mal e praticar o que é conforme a justiça, à caridade. Que dizer daquele que, esclarecido quanto aos seus deveres para com Deus, para com seus irmãos, permanece orgulhoso, cúpido e egoísta? Não parece que a luz o tenha enceguecido, porque não estava preparado para recebê-la? Desde então marcha nas trevas, não obstante em meio à luz; só é espírita de nome. A caridade fraterna dos que veem realmente deve esforçar-se por curá-lo dessa cegueira intelectual; mas, para muitos dos que se lhe assemelham, será preciso a luz que o túmulo traz, porque seu coração está muito preso aos gozos materiais e seu espírito não está maduro para receber a verdade. Em uma nova encarnação eles compreenderão que os planetas inferiores como a Terra não passam de uma espécie de escola mútua, onde a alma começa a desenvolver suas faculdades, suas aptidões, para em seguida as aplicar ao estudo dos grandes princípios de ordem, de justiça, de amor e de harmonia, que regem as relações das almas entre e si, e as funções que desempenham na direção do Universo; eles sentirão que, chamada a uma tão alta dignidade, qual a de se tornar mensageira do Altíssimo, a alma humana não deve aviltar-se, degradar-se ao contato dos prazeres imundos da volúpia, das ignóbeis cobiças da avareza, que subtrai de alguns filhos de Deus o gozo dos bens que deu a todos; compreenderão que o egoísmo, nascido do orgulho, cega a alma e a faz violar os direitos da justiça, da Humanidade, desde que gera todos os males que fazem da Terra uma estação de dores e de expiações. Instruídos pelas duras lições da adversidade, seu espírito será amadurecido pela reflexão, e seu coração, depois de ter sido massacrado pela dor, tornar-se-á bom e caridoso. É assim que o que vos parece um mal por vezes é necessário para reconduzir os endurecidos. Esses pobres retardatários, regenerados pelo sofrimento, esclarecidos por esta luz interior, que se pode chamar o batismo do Espírito, velarão com cuidado sobre si mesmos, isto é, sobre os movimentos de seu coração e o emprego de suas faculdades, para dirigi-los conforme as leis da justiça e da fraternidade. Compreenderão não apenas que eles próprios são obrigados a melhorar-se, cálculo egoísta que impede atingir o objetivo visado por Deus, mas que a segunda ordem de obrigações do espírita, decorrendo necessariamente da primeira e a completando, é a do exemplo, que é o melhor dos meios de propagação e de renovação.

Com efeito, aquele que está convencido da excelência dos princípios que lhe são ensinados, e a eles conformar a sua conduta, princípios que lhe devem proporcionar uma felicidade duradoura, não pode, se estiver verdadeiramente animado desta caridade fraterna, que está na essência mesma do Espiritismo, senão desejar que sejam compreendidos por todos os homens. Daí a obrigação moral de conformar sua conduta com sua crença e ser um exemplo vivo, um modelo, como o Cristo o foi para a Humanidade.

Vós, frágeis centelhas partidas do eterno foco do amor divino, certamente não podeis pretender uma tão vasta irradiação quanto à do Verbo de Deus encarnado na Terra, mas, na vossa esfera de ação, podeis espalhar os benefícios do bom exemplo. Podeis fazer amar a virtude, cercando-a do charme dessa benevolência constante, que atrai, cativa e mostra, enfim, que a prática do bem é coisa fácil, promove a felicidade íntima da consciência que se colocou sob sua lei, pois ela é a realização da vontade divina, que nos fez dizer por seu Cristo: Sede perfeitos, como perfeito é o vosso Pai celestial.

Ora, o Espiritismo é a verdadeira aplicação dos princípios da moral ensinada por Jesus, e é apenas com o objetivo de fazê-la por todos compreendida, a fim de que, por ela, todos progridam mais rapidamente, que Deus permite esta universal manifestação do Espírito, vindo explicar o que vos parecia obscuro e vos explicar toda a verdade. Vem, como o Cristianismo bem compreendido, mostrar ao homem a absoluta necessidade de sua renovação interior pelas consequências mesmas que resultam de cada um de seus atos, de cada um de seus pensamentos; porque nenhuma emanação fluídica, boa ou má, escapa do coração ou do cérebro do homem sem deixar uma marca em algum lugar. O mundo invisível que vos cerca é para vós esse Livro de Vida, onde tudo se inscreve com uma incrível fidelidade, e a balança da Justiça Divina não é senão uma figura, a exprimir que cada um de vossos atos, de vossos sentimentos, é, de certo modo, o peso que carrega vossa alma e a impede de se elevar, ou o que traz o equilíbrio entre o bem e o mal.

Feliz aquele cujos sentimentos partem de um coração puro; espalha em seu redor como uma suave atmosfera, que faz amar a virtude e atrai os Espíritos bons; seu poder de irradiação é tanto maior quanto mais humilde for, isto é, mais desprendido das influências materiais que atraem a alma e a impedem de progredir.

As obrigações que impõe o Espiritismo são, pois, de natureza essencialmente moral; é uma consequência da crença; cada um é juiz e parte em sua própria causa; mas as claridades intelectuais a quem realmente quer conhecer-se a si mesmo e trabalhar em sua melhoria são tais que amedrontam os pusilânimes, razão por que é rejeitado por tão grande número. Outros tratam de conciliar a reforma que sua razão lhes demonstra ser uma necessidade, com as exigências da sociedade atual. Daí uma mistura heterogênea, uma falta de unidade, que faz da época atual um estado transitório. É muito difícil à vossa pobre natureza corporal despojar-se de suas imperfeições para revestir o homem novo, isto é, o homem que vive segundo os princípios de justiça e de harmonia determinados por Deus; não obstante, com esforços perseverantes lá chegareis, porque as obrigações impostas à consciência, quando estiver suficientemente esclarecida, têm mais força do que jamais terão as leis humanas, baseadas no constrangimento de um obscurantismo religioso que não suporta o exame. Mas se, graças às luzes do alto, fordes mais instruídos e compreenderdes mais, também deveis ser mais tolerantes e não empregar, como meio de propagação, senão o raciocínio, pois toda crença sincera é respeitável. Se vossa vida for um belo modelo, em que cada um possa encontrar bons exemplos e sólidas virtudes, onde a dignidade se alia a uma graciosa amenidade, regozijai-vos, porque tereis, em parte, compreendido a que obriga o Espiritismo.

 

Luís de França



[1] Revista Espírita – Maio/1866 – Allan Kardec

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