Allan Kardec
É um fato constatado pela
experiência que os Espíritos agem sobre as pessoas mais estranhas às ideias
espíritas, mal grado seu. Já citamos vários exemplos nesta revista. Não
conhecemos um só gênero de mediunidade que não se tenha revelado espontaneamente,
mesmo o da escrita. Como explicariam o fato seguinte os que atribuem essas
manifestações ao efeito da imaginação ou da fraude?
Neste tempo de epidemia moral, a
cidadezinha de E..., no Departamento do Aube, tinha sido favorecida para ser preservada
do flagelo do Espiritismo. O próprio nome dessa obra satânica jamais havia
ferido o ouvido de seus tranquilos habitantes, graças, sem dúvida, ao cura[2]
do lugar, que julgara por bem não pregar contra. Mas quem conta sem seu
hóspede, conta duas vezes; não contaram com os Espíritos, que não precisam de
permissão.
Ora, eis o que aconteceu há
cerca de quatro meses.
Naquele vilarejo há uma mocinha
de dezessete anos, quase iletrada, filha de um pobre e honesto cultivador;
diariamente ela vai trabalhar nos campos. Voltando certo dia à sua choupana foi
tomada de completa perturbação; depois, teve a ideia de escrever, ela que não
escrevia desde que saíra da escola. Escrever o quê? Não sabia nada, mas queria
escrever. Outra ideia não menos bizarra veio-lhe à mente, a de procurar um
lápis, embora soubesse perfeitamente que não havia nenhum em sua cabana, e nem
mesmo uma folha de papel.
Enquanto procurava dar-se conta
da incoerência de suas ideias, esforçando-se por afastá-las, avistou na lareira
um tição carbonizado; sentiu uma atração irresistível para o pegar, mas, guiada
por uma força invisível, avançou para a parede caiada. De repente seu braço
ergueu-se maquinalmente e traçou na parede, em caracteres bem legíveis, esta
frase: “Arranja papel e penas para corresponder-te com os Espíritos”.
E, coisa singular, embora jamais
tivesse ouvido falar de manifestação de Espíritos, não ficou surpresa com o que
acabava de se passar. Preveniu seu pai, que falou do caso a um amigo, humilde
camponês como ele, mas dotado de grande perspicácia.
Este veio com prudência
constatar o fato; depois, como espírita experiente, embora tão ignorante do
assunto quanto a moça, fez perguntas ao Espírito que se tinha manifestado e que
assina o nome de um general russo. Este último os convidou a se dirigirem aos espíritas
de Troyes para ter instruções mais completas, o que fizeram. Desde então a
jovem é médium escrevente e, além disso, obtém efeitos físicos muito notáveis.
Formou-se um grupo espírita no vilarejo, e eis como o Espiritismo vem, gostem
ou não, sem ser solicitado.
A carta de nosso correspondente,
relatando este fato, termina dizendo:
Não se diria que,
quanto mais os trocistas se empenham em enganarem-se a si próprios, a
Providência, como se os quisesse confundir, faz jorrar diariamente
manifestações que desafiam todas as negações e todas as interpretações da incredulidade?
A propósito, a Sociedade de
Paris recebeu a seguinte comunicação:
(Sociedade de Paris, 27 de novembro de
1865 – Médium: Sr. Morin)
O poder de Deus é
infinito, e ele se serve de todos os meios para fazer triunfar uma doutrina que
está em tudo. Passou-se aqui um duplo fenômeno, cuja explicação tentarei vos
dar.
A jovem camponesa
foi subitamente envolvida por um fluído poderoso que a obrigou a abandonar
momentaneamente suas ocupações diárias. Antes da manifestação do fenômeno,
houve a preparação da paciente, que foi magnetizada e levada, pela vontade do
Espírito, a procurar um instrumento que sabia não existir na casa. Quando se
curvava sobre a lareira para retirar o carvão, que devia substituir o lápis
ausente, apenas realizava um movimento que lhe era imprimido pelo Espírito. Nem
era o seu instinto, nem a sua inteligência que agia, mas o próprio Espírito que
se servia da jovem como de um instrumento apropriado ao seu fluido.
Até aí ela não era,
propriamente falando, médium; só depois do primeiro aviso ela escreveu e
realmente se tornou médium, não sendo mais dominada pelo Espírito que a forçava
a agir. A partir desse momento a mediunidade tornou-se semimecânica, isto é,
ela sabia e compreendia o que escrevia, mas não podia explicá-lo verbalmente.
Depois os efeitos
físicos se manifestaram com tal força que toda ideia de embuste devia ser
excluída. Nada tinha vindo demonstrar essa aptidão para os efeitos físicos,
antes dos primeiros fenômenos. Se esses efeitos tivessem sido os primeiros a revelar
a mediunidade, poderiam ter sido desnaturados pela superstição.
O homem que, como um
espírita consumado, fazia as perguntas ao Espírito, era, ele próprio, conduzido
por uma força da mesma natureza que a que impelia o médium a escrever. Esta
força, cuja origem ele não podia compreender, dobrava o seu poder evocativo,
unindo o seu desejo de saber à lembrança das baladas supersticiosas, que faziam
falar e aparecer a alma dos mortos. Só um estudo sério dos princípios da
doutrina pode fazer que esses novos adeptos compreendam o lado real, positivo e
natural da coisa, afastando o que aí pudessem ver de sobrenatural e de maravilhoso.
Eis, pois, os dois
principais atores desses fatos que, mal grado seu, representaram o seu papel.
No que se passou, serviram de instrumentos tanto mais potentes quanto eram
ignorantes e sem ideias preconcebidas.
Como vedes, meus
amigos, tudo concorre para fazer resplandecer a luz, e os mais iletrados podem
dar lições aos mais sábios.
(O guia do médium)
[1] Revista Espírita
– Dezembro/1865 – Allan Kardec
[2] Sacerdote
que tem encargo de pastorear fiéis (ex.: foi falar com o senhor cura). = PADRE,
PÁROCO, PRIOR.
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