Allan Kardec
No dia 10 de janeiro de 1865, um
dos nossos correspondentes de Lyon nos transmitiu o seguinte relato:
Numa localidade vizinha,
conhecíamos um indivíduo, cujo nome omitimos, para não sermos maledicentes e
porque o nome nada tem com o fato. Era espírita e, sob o domínio dessa crença
se melhorou, embora não a tivesse aproveitado tanto quanto poderia tê-lo feito,
devido à sua inteligência. Vivia com uma velha tia, que o amava como filho, e
que não poupava trabalhos nem sacrifícios por seu caro sobrinho. Por economia
era a boa mulher que cuidava da casa. Até aí tudo muito natural; o que o era
menos é que o sobrinho, jovem e em boa forma, a deixava fazer trabalhos acima
de sua força, sem que jamais lhe acudisse à ideia poupar-lhe marchas penosas
para a sua idade, o transporte de fardos e coisas semelhantes. Na casa não
mudava um móvel de lugar, como se tivesse criados às suas ordens; e mesmo que
previsse algum penoso serviço excepcional, arranjava um pretexto para se abster,
temeroso de que lhe pedissem um auxílio, que não poderia recusar.
Entretanto, havia recebido
várias lições a respeito, poder-se-ia dizer afrontas, capazes de fazer refletir
um homem de coração; mas era insensível. Um dia em que a tia se extenuava
rachando lenha, lá estava ele sentado, fumando tranquilamente o seu cachimbo.
Entrou um vizinho e, vendo isto,
lançou um olhar de desprezo sobre o rapaz e disse: “Isto é trabalho para homem,
e não para mulher”. Depois, tomando o machado, pôs-se a rachar a lenha, enquanto
o outro olhava. Era estimado como um homem decente e de boa conduta, mas porque
seu caráter não tivesse amenidade nem perseverança, não era apreciado e a
maioria dos amigos se haviam afastado. Nós, espíritas, nos afligíamos por essa
dureza de coração e dizíamos que um dia ele pagaria muito caro por isso.
A previsão realizou-se
ultimamente. Devo dizer que, em consequência dos esforços que fazia, a velha
senhora foi acometida por uma hérnia muito grave, que a fazia sofrer muito, mas
que ela tinha coragem para não se lamentar. Durante esses últimos frios,
provavelmente querendo esquivar-se a um trabalho penoso, o sobrinho saiu cedo e
não voltou. Ao atravessar uma ponte, foi atingido pela queda de uma viatura e
arrastado por uma encosta; morreu duas horas depois.
Quando fomos informados do fato,
quisemos evocá-lo, e eis o que nos foi respondido por um dos nossos guias:
Aquele a quem
quereis chamar não poderá comunicar-se antes de algum tempo. Venho responder
por ele e vos dizer o que quereis saber; mais tarde ele vo-lo confirmará. Neste
momento ele está muito perturbado pelos pensamentos que o agitam. Vê a tia e a
doença que ela contraiu em consequência das fadigas corporais e da qual ela
morrerá. É isto que o atormenta, pois se considera como o seu assassino. E o é,
com efeito, já que lhe podia poupar o trabalho que será a causa de sua morte.
Para ele é um remorso pungente que o perseguirá por muito tempo, até que tenha reparado
a sua falta. Ele queria fazê-lo; não deixa a tia, mas seus esforços são inúteis
e, então, se desespera. É preciso, para o seu castigo, que a veja morrer devido
à sua negligência egoísta, porque sua conduta é uma variedade do egoísmo. Orai
por ele, a fim de que possa manter o arrependimento, que mais tarde o salvará.
– Nosso caro guia
poderia dizer-nos se não lhe serão levados em conta outros defeitos de que se
corrigiu por causa do Espiritismo e se sua posição não se abrandou?
– Sem nenhuma
dúvida, essa melhora lhe é levada em conta, pois nada escapa ao olhar
perscrutador da divina Providência. Mas eis de que maneira cada boa ou má ação
tem suas consequências naturais, inevitáveis, conforme estas palavras do Cristo:
“A cada um segundo as suas obras.” Aquele que se corrigiu de algumas faltas se
poupa da punição que elas teriam acarretado e, ao contrário, recebe o prêmio
das qualidades que as substituíram; mas não pode escapar às consequências dos
defeitos que ainda ficaram. Assim, não é punido senão na proporção e conforme a
gravidade destes últimos; quanto menos os tiver, melhor a sua posição. Uma
qualidade não resgata um defeito; diminui o número destes e, por conseguinte, a
soma das punições.
Os defeitos dos
quais se corrigem primeiro, são os mais fáceis de ser extirpados, e aquele do
qual se libertam mais dificilmente é o egoísmo. Julgam ter feito bastante
porque moderaram a violência do caráter, se resignaram à sorte ou se livraram
de alguns maus hábitos; sem dúvida é algo que aproveita, mas não impede de
pagarem o tributo de depuração pelo resto.
Meus amigos, o
egoísmo é o que melhor se vê nos outros, porque sentimos o seu contragolpe e
porque o egoísta nos fere; mas o egoísta encontra em si mesmo sua satisfação,
razão por que dele não se apercebe. O egoísmo é sempre uma prova de secura do
coração; estiola a sensibilidade para os sofrimentos alheios. O homem de
coração, ao contrário, sente esse sofrimento e se emociona; é por isto que se
sacrifica para os poupar ou os mitigar nos outros, porque gostaria que fizessem
o mesmo por ele.
Assim, é feliz
quando evita uma pena ou um sofrimento a alguém; tendo-se identificado com o mal de seu semelhante, experimenta um
alívio real quando não mais existe o mal. Contai com o seu reconhecimento se
lhe prestardes serviço; mas do egoísta não espereis senão a ingratidão; o
reconhecimento em palavras nada lhe custa, mas em ação o fatigaria e lhe
perturbaria o repouso. Só age por outro quando forçado, e jamais
espontaneamente; seu apego está na razão do bem que espera das pessoas, e isto
algumas vezes mal grado seu. O rapaz de quem falamos certamente gostava da tia
e se teria revoltado se lhe tivessem dito o contrário; contudo, sua afeição não
chegava a ponto de fatigar-se por ela; de sua parte não era um desígnio
premeditado, mas uma repulsa instintiva, consequência de seu egoísmo nato. A
luz que não soubera achar em vida, hoje lhe aparece e ele lamenta não ter aproveitado
melhor os ensinamentos que recebeu. Orai por ele.
O egoísmo é o verme
roedor da sociedade, é mais ou menos o de cada um de vós. Em breve eu vos darei
uma dissertação, na qual ele será encarado sob seus diversos matizes; será um
espelho; olhai-o com cuidado, para ver se não percebeis num canto qualquer um
reflexo de vossa personalidade.
Vosso guia espiritual
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