Wilson Garcia – Recife, PE –
publicado em 31/03/2018
“Nenhuma fala monológica pode comunicar a um auditório algo com
sucesso, se os ouvintes não têm condições de, ao menos potencialmente,
tornarem-se parceiros dialógicos do falante”.
Lúcia Santaella
Em um sistema perverso, como o
prevalecente no planeta de forma geral, falar de justiça, ética e filosofia de
vida são coisas do idealismo utópico, embora o idealismo utópico ainda alimente
mentes e corações livres das peias dos sistemas. O pragmatismo nos impõe a
ousar nas brechas do perverso sistema, para não deixar morrer as belas letras
do sonho que alimenta a esperança de um futuro melhor. Lembra-me a insistente
conversa de Chico Xavier, nos anos 1970, com o livreiro Stig Roland Ibsen,
advertindo-lhe de que era preciso vender os livros com lucro sob pena de ver
sua livraria as portas da falência. A fala de Chico era extensiva ao espiritismo
brasileiro, especialmente àqueles que exerciam constante crítica aos valores
desses mesmos livros e os comercializavam a preço de custo, dentro da ideia de
torná-los mais acessíveis aos menos favorecidos socialmente.
Volto, pois, ao discurso da
razão do que está por trás dos atuais congressos ditos espíritas, que
implementam o sentido do espetáculo como forma de alcançar um grande número de
pessoas, enchendo salões e corredores dos imensos espaços custosos previamente
alugados para atrai-las. É o espetáculo, na sua formulação teórica, resultante
da densa crítica de que a espetacularização esconde uma questão ética de
fundamental importância, que é a justiça social. É ela uma das piores facetas
de um sistema dominante pendular apenas em aparência, pois que impõe o
permanente consumo de bens e serviços sob a capa da necessidade e do desejo de
tornar feliz a estada provisória do ser no planeta.
Uma vez que não se pode viver
fora do sistema, vamos raciocinar com ele e com as ferramentas que ele oferece
sorridente, com as quais ensina a ser vitorioso na vida, algo, acredita o
sistema, válido para todos, de forma que o discurso do “todos” é o discurso da
justiça social do sistema, ajustado à sua ética particular. Então, parte-se de
uma dúvida já posta: por que nossos congressos estão modelados na dimensão do
espetáculo? Será por conta do justo desejo de alcançar o grande público,
retirando das pequenas salas dos centros espíritas o desafio de lograr chegar a
ele, uma vez que, sendo pequenos, estes centros estão incapacitados de atender
ao discurso do espiritismo para as massas?
Veremos que não.
É preciso, em primeiro lugar,
verificar que a grande maioria dos atuais congressos espíritas é patrocinada
pelas federativas estaduais, elas que, não faz muito tempo, eram contra esse
tipo de evento, especialmente no formato em que estão sendo propostos. O que as
fizeram mudar de ideia é uma longa e pertinente discussão, que deve ser feita
em momento especial. O fato indiscutível é que o primeiro congresso espírita no
Brasil em nível nacional foi realizado em 1939, no Rio de Janeiro, sem o
patrocínio da balançante ideia do espetáculo, mas foi feito, como os demais 10
congressos que o seguiram, com o objetivo de exercitar a liberdade de
pensamento e expressão para bem do progresso da doutrina. Mas, então, o evento
sofreu por muitos anos a crítica do poder estabelecido, entre estes as
federativas. Em dado momento da história, as federativas, à frente a
brasileira, deixaram de lado sua postura e assumiram a realização dos congressos
espíritas, mas não no modelo inicial, senão como forma de controlar a opinião e
ampliar o alcance massivo deles.
Tomemos as ferramentas do
sistema para demonstrar com elas mesmas que a adaptação pelas federativas ao
sistema se dá apenas nos limites dos seus interesses. Se a ideia da
massificação do espiritismo só pode ser feita pela adoção de estímulos
presentes no sistema, logo a espetacularização se mostra eficiente às
finalidades, porque os diversos fragmentos sobre os quais a sociedade atual se
assenta são muito bem atendidos. Ou seja, a espetacularização do saber espírita
oferece meios e formas que atendem a massa diversa e fragmentada, incapaz de
acorrer ao espaço do conhecimento com a oferta única do próprio conhecimento.
Com isso, as federativas se veem justificadas duplamente: em oferecer o
espiritismo às massas e em ter a massa presente no espaço público que abrem.
Mas do ponto de vista
mercadológico, o que temos? Um eficiente modo de atrair a massa e, ao mesmo
tempo – eis o de se lamentar continuamente – um desvio de finalidade disfarçado
por uma ação que será elogiada insistentemente pelo público amante do
espetáculo. Qual a finalidade precípua das federativas? A resposta vem pelo
próprio sistema: o público alvo das federativas são os centros espíritas e a
“massa” de dirigentes que os compõem. Ora, se o sistema mostra como agir em
nível massivo para “vender” seu produto, o mesmo sistema faz questão de
afirmar, enfaticamente, que todo esforço mercadológico de sucesso parte da
clareza que se precisa ter do público alvo ao qual o produto deve ser
oferecido.
Historicamente, as federativas
estaduais, junto à brasileira, ignoram de modo indisfarçável seu próprio
público, seja negando-lhe o direito de pensamento e expressão, seja agindo
segundo a filosofia do próprio sistema, que estabelece uma interatividade
dialógica na base de premissas que não coloquem em perigo o seu domínio, mas
que “pareçam” um esforço sério e honesto de dar voz à sua audiência. Um outro
dado histórico se mostra importante aqui: todas as federativas aceitas
oficialmente, menos uma, surgiram de ações e interesses individuais e ainda
mantêm, salvo exceções, a mesma estrutura baseada numa organização que confere
o poder do voto a eleitores escolhidos. A única federativa que teve no seu
nascedouro o voto decisivo das casas espíritas chama-se USE-SP, ela mesma que
hoje mostra à sociedade que, embora sua estrutura original ainda em vigor
filosoficamente, promove na prática desvios de finalidade e do seu público
alvo.
Ora, a eleição da massa como
objetivo no que toca aos congressos e ter a massa como destinatária do
conhecimento espírita faz com que o desvio de objetivo não seja percebido,
mesmo quando se entende, com clara ignorância dos instrumentos mercadológicos
ou por má fé, que a massa contempla também as lideranças dos centros espíritas.
Cientificamente, é impossível falar a dois públicos distintos ao mesmo tempo e
o próprio André Luiz, na sua singeleza, lembra que não se pode ter os pés em
duas canoas quando se lança às águas da vida. O espaço ideal da conversa com o
dirigente espírita não é o do espetáculo, ao mesmo tempo em que sem diálogo não
há como alcançar minimamente a massa. Ora, o que menos existe num congresso em
que o espetáculo é o modo de estar junto é o diálogo, pois o que se quer dar e
o que se quer receber não é a obrigação de pensar, mas o desejo de respostas
produzidas e muito bem embaladas por artistas-palestrantes. E quando, por um
deslize imperdoável, alguém resolve contrariar a tese e cria um momento
especial de diálogo, corre-se o perigo de situações grotescas, como ocorreu
recentemente em Goiânia, envolvendo a respeitável figura do grande batalhador
que é Divaldo Pereira Franco. Onde não há, permita-me a paródia, potencialmente
disposição para o diálogo, tudo o que se tem de fato é o monólogo, que mais não
é que o modo de ver particular de alguém. Em Goiânia, o exíguo momento do
diálogo foi organizado na base do “você pergunta isso, eu interpreto e dirijo a
alguém e esse responde com sua autoridade inquestionável”. Um disfarce com
aparências de diálogo e a crença de que a autoridade não será questionada.
Apesar do sufrágio pelos aplausos intensos da massa envolta pela emoção do
contexto, as coisas não saíram como planejado, pois fora do espaço do
espetáculo há pessoas independentes e críticas, prontas a exercer o seu direito
de opinar e expressar.
Em certos lugares do Brasil,
temos congressos organizados por grupos e não federativas, mas o que se vê é o
predomínio da ideia do espetáculo. Alguns desses grupos, que fugiram da
espetacularização, veem seu espaço cada vez mais reduzido, em vista da redução
constante da verba para sustentar as crescentes despesas. Outros, que levam a
espetacularização aos limites possíveis se encontram com o caixa cada vez mais
cheio, porque os eventos que promovem têm público garantido e ávido. Neste
ponto, os excessos do orgulho por uma obra que ingenuamente entendem invejável
leva os organizadores a cometerem absurdas formas de participação, incluindo
respeitáveis pensadores do mundo moral sem a mínima aderência aos fundamentos
espíritas. Não se pejam de lhes pagar polpudos cachês, pois sabem que a massa
não distingue o conhecimento espírita do não espírita. De outro lado, os
próprios palestrantes espíritas, ressalvadas as meritórias exceções,
acostumaram-se com a garantia de que não serão sacrificados com despesas de
locomoção e estadia para participar desses congressos espetáculos e massivos.
Todos, de certa maneira, se veem implicados com as finalidades elegidas pelos
organizadores e, não raras vezes, constrangidos pelo distinto convite que os
limita a repetir discursos que são desejáveis e esperados, pois, a liberdade
oferecida não é ampla o bastante para discursos críticos do sistema e dos
formatos.
As federativas, de modo geral,
assumiram-se como condutoras e serviçais da massa, esse contingente de pessoas
que percorrem diariamente os seus salões e corredores de sua sede, atendidas
com água fluidificada, preces repetidas, avisos, regras e formalidades. Seu
patrimônio cresce a olhos vistos com doações recebidas de pessoas que partem da
Terra ou de entidades governamentais. Chico Xavier viu-se envolvido nessas
artimanhas do destino e, livremente ou por conselho dos espíritos, resolveu
repassar as doações vultosas às entidades espíritas. Foi a maneira que
encontrou para evitar o desvio de finalidade. As federativas vivem situação
diferente, talvez movidas pelos traumas da falta de dinheiro do passado;
recebem doações patrimoniais e logo se sentem na obrigação de cuidar delas,
oferecendo-lhes destinação diversa daquela para a qual foram fundadas. Eis um
tipo frequente de desvio de finalidade que tende a esgotar os seus parcos
recursos de mão e mente de obra.
Enquanto isso…
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