sexta-feira, 29 de março de 2019

Congressos Espíritas: a massa e o diálogo ausente[1]




Wilson Garcia – Recife, PE – publicado em 31/03/2018

“Nenhuma fala monológica pode comunicar a um auditório algo com sucesso, se os ouvintes não têm condições de, ao menos potencialmente, tornarem-se parceiros dialógicos do falante”.
Lúcia Santaella

Em um sistema perverso, como o prevalecente no planeta de forma geral, falar de justiça, ética e filosofia de vida são coisas do idealismo utópico, embora o idealismo utópico ainda alimente mentes e corações livres das peias dos sistemas. O pragmatismo nos impõe a ousar nas brechas do perverso sistema, para não deixar morrer as belas letras do sonho que alimenta a esperança de um futuro melhor. Lembra-me a insistente conversa de Chico Xavier, nos anos 1970, com o livreiro Stig Roland Ibsen, advertindo-lhe de que era preciso vender os livros com lucro sob pena de ver sua livraria as portas da falência. A fala de Chico era extensiva ao espiritismo brasileiro, especialmente àqueles que exerciam constante crítica aos valores desses mesmos livros e os comercializavam a preço de custo, dentro da ideia de torná-los mais acessíveis aos menos favorecidos socialmente.
Volto, pois, ao discurso da razão do que está por trás dos atuais congressos ditos espíritas, que implementam o sentido do espetáculo como forma de alcançar um grande número de pessoas, enchendo salões e corredores dos imensos espaços custosos previamente alugados para atrai-las. É o espetáculo, na sua formulação teórica, resultante da densa crítica de que a espetacularização esconde uma questão ética de fundamental importância, que é a justiça social. É ela uma das piores facetas de um sistema dominante pendular apenas em aparência, pois que impõe o permanente consumo de bens e serviços sob a capa da necessidade e do desejo de tornar feliz a estada provisória do ser no planeta.
Uma vez que não se pode viver fora do sistema, vamos raciocinar com ele e com as ferramentas que ele oferece sorridente, com as quais ensina a ser vitorioso na vida, algo, acredita o sistema, válido para todos, de forma que o discurso do “todos” é o discurso da justiça social do sistema, ajustado à sua ética particular. Então, parte-se de uma dúvida já posta: por que nossos congressos estão modelados na dimensão do espetáculo? Será por conta do justo desejo de alcançar o grande público, retirando das pequenas salas dos centros espíritas o desafio de lograr chegar a ele, uma vez que, sendo pequenos, estes centros estão incapacitados de atender ao discurso do espiritismo para as massas?
Veremos que não.
É preciso, em primeiro lugar, verificar que a grande maioria dos atuais congressos espíritas é patrocinada pelas federativas estaduais, elas que, não faz muito tempo, eram contra esse tipo de evento, especialmente no formato em que estão sendo propostos. O que as fizeram mudar de ideia é uma longa e pertinente discussão, que deve ser feita em momento especial. O fato indiscutível é que o primeiro congresso espírita no Brasil em nível nacional foi realizado em 1939, no Rio de Janeiro, sem o patrocínio da balançante ideia do espetáculo, mas foi feito, como os demais 10 congressos que o seguiram, com o objetivo de exercitar a liberdade de pensamento e expressão para bem do progresso da doutrina. Mas, então, o evento sofreu por muitos anos a crítica do poder estabelecido, entre estes as federativas. Em dado momento da história, as federativas, à frente a brasileira, deixaram de lado sua postura e assumiram a realização dos congressos espíritas, mas não no modelo inicial, senão como forma de controlar a opinião e ampliar o alcance massivo deles.
Tomemos as ferramentas do sistema para demonstrar com elas mesmas que a adaptação pelas federativas ao sistema se dá apenas nos limites dos seus interesses. Se a ideia da massificação do espiritismo só pode ser feita pela adoção de estímulos presentes no sistema, logo a espetacularização se mostra eficiente às finalidades, porque os diversos fragmentos sobre os quais a sociedade atual se assenta são muito bem atendidos. Ou seja, a espetacularização do saber espírita oferece meios e formas que atendem a massa diversa e fragmentada, incapaz de acorrer ao espaço do conhecimento com a oferta única do próprio conhecimento. Com isso, as federativas se veem justificadas duplamente: em oferecer o espiritismo às massas e em ter a massa presente no espaço público que abrem.
Mas do ponto de vista mercadológico, o que temos? Um eficiente modo de atrair a massa e, ao mesmo tempo – eis o de se lamentar continuamente – um desvio de finalidade disfarçado por uma ação que será elogiada insistentemente pelo público amante do espetáculo. Qual a finalidade precípua das federativas? A resposta vem pelo próprio sistema: o público alvo das federativas são os centros espíritas e a “massa” de dirigentes que os compõem. Ora, se o sistema mostra como agir em nível massivo para “vender” seu produto, o mesmo sistema faz questão de afirmar, enfaticamente, que todo esforço mercadológico de sucesso parte da clareza que se precisa ter do público alvo ao qual o produto deve ser oferecido.
Historicamente, as federativas estaduais, junto à brasileira, ignoram de modo indisfarçável seu próprio público, seja negando-lhe o direito de pensamento e expressão, seja agindo segundo a filosofia do próprio sistema, que estabelece uma interatividade dialógica na base de premissas que não coloquem em perigo o seu domínio, mas que “pareçam” um esforço sério e honesto de dar voz à sua audiência. Um outro dado histórico se mostra importante aqui: todas as federativas aceitas oficialmente, menos uma, surgiram de ações e interesses individuais e ainda mantêm, salvo exceções, a mesma estrutura baseada numa organização que confere o poder do voto a eleitores escolhidos. A única federativa que teve no seu nascedouro o voto decisivo das casas espíritas chama-se USE-SP, ela mesma que hoje mostra à sociedade que, embora sua estrutura original ainda em vigor filosoficamente, promove na prática desvios de finalidade e do seu público alvo.
Ora, a eleição da massa como objetivo no que toca aos congressos e ter a massa como destinatária do conhecimento espírita faz com que o desvio de objetivo não seja percebido, mesmo quando se entende, com clara ignorância dos instrumentos mercadológicos ou por má fé, que a massa contempla também as lideranças dos centros espíritas. Cientificamente, é impossível falar a dois públicos distintos ao mesmo tempo e o próprio André Luiz, na sua singeleza, lembra que não se pode ter os pés em duas canoas quando se lança às águas da vida. O espaço ideal da conversa com o dirigente espírita não é o do espetáculo, ao mesmo tempo em que sem diálogo não há como alcançar minimamente a massa. Ora, o que menos existe num congresso em que o espetáculo é o modo de estar junto é o diálogo, pois o que se quer dar e o que se quer receber não é a obrigação de pensar, mas o desejo de respostas produzidas e muito bem embaladas por artistas-palestrantes. E quando, por um deslize imperdoável, alguém resolve contrariar a tese e cria um momento especial de diálogo, corre-se o perigo de situações grotescas, como ocorreu recentemente em Goiânia, envolvendo a respeitável figura do grande batalhador que é Divaldo Pereira Franco. Onde não há, permita-me a paródia, potencialmente disposição para o diálogo, tudo o que se tem de fato é o monólogo, que mais não é que o modo de ver particular de alguém. Em Goiânia, o exíguo momento do diálogo foi organizado na base do “você pergunta isso, eu interpreto e dirijo a alguém e esse responde com sua autoridade inquestionável”. Um disfarce com aparências de diálogo e a crença de que a autoridade não será questionada. Apesar do sufrágio pelos aplausos intensos da massa envolta pela emoção do contexto, as coisas não saíram como planejado, pois fora do espaço do espetáculo há pessoas independentes e críticas, prontas a exercer o seu direito de opinar e expressar.
Em certos lugares do Brasil, temos congressos organizados por grupos e não federativas, mas o que se vê é o predomínio da ideia do espetáculo. Alguns desses grupos, que fugiram da espetacularização, veem seu espaço cada vez mais reduzido, em vista da redução constante da verba para sustentar as crescentes despesas. Outros, que levam a espetacularização aos limites possíveis se encontram com o caixa cada vez mais cheio, porque os eventos que promovem têm público garantido e ávido. Neste ponto, os excessos do orgulho por uma obra que ingenuamente entendem invejável leva os organizadores a cometerem absurdas formas de participação, incluindo respeitáveis pensadores do mundo moral sem a mínima aderência aos fundamentos espíritas. Não se pejam de lhes pagar polpudos cachês, pois sabem que a massa não distingue o conhecimento espírita do não espírita. De outro lado, os próprios palestrantes espíritas, ressalvadas as meritórias exceções, acostumaram-se com a garantia de que não serão sacrificados com despesas de locomoção e estadia para participar desses congressos espetáculos e massivos. Todos, de certa maneira, se veem implicados com as finalidades elegidas pelos organizadores e, não raras vezes, constrangidos pelo distinto convite que os limita a repetir discursos que são desejáveis e esperados, pois, a liberdade oferecida não é ampla o bastante para discursos críticos do sistema e dos formatos.
As federativas, de modo geral, assumiram-se como condutoras e serviçais da massa, esse contingente de pessoas que percorrem diariamente os seus salões e corredores de sua sede, atendidas com água fluidificada, preces repetidas, avisos, regras e formalidades. Seu patrimônio cresce a olhos vistos com doações recebidas de pessoas que partem da Terra ou de entidades governamentais. Chico Xavier viu-se envolvido nessas artimanhas do destino e, livremente ou por conselho dos espíritos, resolveu repassar as doações vultosas às entidades espíritas. Foi a maneira que encontrou para evitar o desvio de finalidade. As federativas vivem situação diferente, talvez movidas pelos traumas da falta de dinheiro do passado; recebem doações patrimoniais e logo se sentem na obrigação de cuidar delas, oferecendo-lhes destinação diversa daquela para a qual foram fundadas. Eis um tipo frequente de desvio de finalidade que tende a esgotar os seus parcos recursos de mão e mente de obra.
Enquanto isso…

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